01/05/17
DAS BOAS CAUSAS
Mário Martins
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“Sente a bílis a emergir/Do teu passado culposo/Com os teus nervos desfeitos/Como bocados de concha/E o bater dos martelos/A deitar abaixo a tua porta/É melhor correres!/É melhor correres todo o dia/E correres toda a noite/E guardar os teus sentimentos sujos bem dentro de ti/(…)/Vão mandar-te de volta para a tua Mãe/Numa caixa de cartão/É melhor correreres!
Pink Floyd
Run like hell/The Wall
1979
Corre! As boas causas querem-te matar. No mundo da política ou da religião, quem te quer dominar, perseguir, torturar, ou mesmo matar é sempre em nome de uma boa causa. Foi isso o que o século XX ensinou. Perseguiu-se, torturou-se e matou-se em grande escala, em nome das boas causas do homem socialmente novo ou racialmente puro. Corre! Apesar de as boas causas serem concorrenciais ou inimigas entre si, se não fores um adepto – e que sejas, se te matarem serás um dano co-lateral -, a tua soberania pessoal ou sequer o facto de seres, como os seus militantes ou governantes, um ser humano, não interessam nada. Corre! Afinal o século XXI, que - bêbados de tecnologia - imaginava-mos miraculoso, está-se a revelar muito pior do que a encomenda. Querem que tu ames um líder ou adores um deus, reverencies um regime ou advogues um imperialismo, cultives um interesse pátrio ou a grandeza de um povo. Sobretudo que desprezes a liberdade e a declaração universal dos direitos do Homem. O que tu e os estranhos à tribo pensam não interessa nada para quem, escudados numa boa causa, acham que têm o direito de dispor da vida dos outros. Por isso corre! O mais que puderes…
CARTAS DE SANTA MARIA
Lampaul, 30 de Abril
A lembrança dos dias luminosos de Abril encontrou-me em pleno Loire. Cruzei o rio através da bonita ponte de Langeais. Ao longo dos 300 metros da travessia, permiti-me olhar a França, ou talvez seja mais apropriado dizer, pensei a França com o olhar estendendo-se imaginariamente para os corredores dos palácios do poder. Se procurarmos o pormenor percebe-se o ruir lento e desagregador das estruturas sobre um chão pantanoso que a qualquer momento pode-se tornar volátil. Distantes estão os dias dos comunardes, do assalto à Bastilha. Na aparência é o regresso de uma França colonial com a sua agressividade sobre a Síria e o Norte de África, mas na realidade, o seu poderio militar está suportado em poderes que se diluem numa sociedade esfarrapada, à deriva, sem líderes. Os estropiadores financeiros já dispensam os seus empregados políticos e recorrem aos seus serviçais directos. Dispensam a oratória, chega-lhes o verbo, oco e vazio, fruta podre pintada de fresco. E a França arrasta-se atrás desta comitiva. José Régio ainda sabia por onde não ir mas esta França vai à bolina, consoante o vento e chega a acreditar no inacreditável. Invade-me uma intensa tristeza na manhã fria em que contemplo o Loire. Até o rio parece arrastar-se sem pressa em alcançar o oceano. Entro na Bretanha pela costa norte e forço-me a um desvio para alcançar o Monte Saint-Michel. Necessito de um banho de Idade Média. Reflectir sobre a França actual suja-nos a alma e o pensamento. Há uma certa leveza quando percorremos este antigo território beneditino. Tudo parece seduzir-nos, atrair-nos, inspirando-nos na forma de pensarmos e olharmos o mundo, o que vemos e o que desejaríamos encontrar. Deambulei várias horas e deixei que o entardecer me encontrasse em sereno deleite da vida no interior da abadia. A costa norte da Bretanha, refúgio de pintores pela luminosidade que faz realçar as cores é também uma espécie de abertura da Mancha ao Atlântico. Suponho as águas frias, alterosas vejo-as eu. Percorro as suas reentrâncias, as suas falésias, as pequenas aldeias, e os faróis que se agigantam perante a grandeza do mar. En Le Conquet enquanto aguardo, o navio que me levará até Port du Stiff, e tendo como horizonte o farol de Kermorvan, escrevo de novo à mulher do meu futuro. Que não tarde como lhe pedi em Juromenha, que apresse a sua vinda antes que chegue ao meu destino que apazigúe a falta que faz enquanto não navega no rio da minha vida. Lampaul parece conduzir-nos à infância, pelo encanto. Nas pequenas ruas e nas suas casas de pedra parece reinar um tempo mágico. Escolhi esta ilha de Ouessant para me despedir do continente. Na verdade vim à procura do Museu dos Faróis e Balizas albergado pelo farol do Creac’h. Os faróis transmitem-nos a ideia de grande isolamento, de enorme solidão. Silêncio não. O mar produz os seus próprios sons, os seus ruídos, o estertor das suas águas crepitando contra a penedia, o alvoroço da espuma em desintegração. Fazem-nos sentir abandonados e únicos, como que perdidos, receosos de voltar a caminhar. Quando passeamos pelo museu em observação é um pouco desse aroma marítimo que nos visita, nos atrai. Sentimo-nos singulares e protegidos. Para lá desta costa estende-se a longitude infinita do oceano. Sinto-me pequeno face à imaginação da sua grandeza. A ilha de Ouessant resiste há séculos há fúria do mar e do vento. Amanhã afasto-me para Norte.
Fernão Vasques*
* Por favor, não me confundam com o corajoso alfaiate que em 1371 ousou desafiar, em nome do povo, O Formoso e a futura rainha. Sou apenas um sonhador, digo eu, dos finais do século XX com endereço em Santa Maria das Júnias. São duas ruínas que se amparam, as minhas e as do mosteiro.
O MAL MENOR
Mário Faria
As eleições em França demonstram bem como vai a desordem político-partidária e como as suas estruturas são postas em causa por organizações emergentes, fruto da fractura social que decorre da intromissão das novas tecnologias no mundo do trabalho, da prevalência das redes sociais na formação da opinião, do efeito da globalização e das políticas neoliberais. O terrorismo e a xenofobia intrometem-se e o medo instalou-se: os muros e o fecho das fronteiras estão na agenda. A UE juntou muitos países com intenções diferentes, cada um jurando ser capaz de se ajustar ao modelo colectivo que se ia desenhando, mas sempre mais vocacionados para valorizar aquilo que mais os poderia beneficiar. O seu projcto aberto, civilizado e defensor do “estado social”, juntou povos com culturas muito diversas e com um potencial económico muito diferenciado. A coisa ia correndo normalmente e sem rupturas, até que o mundo entrou em colapso com a crise do subprime, a falência dos bancos e as dívidas soberanas. A partir daí, a UE nunca mais foi como dantes. E passou a ser uma saudade de uma coisa que se calhar nunca foi.
As eleições em França e na Alemanha prometem muito falatório. Serão o termómetro da UE e marcarão o seu futuro: a uma, duas ou três velocidades. Ou o seu descalabro. Na França já correu a primeira volta e Macron e Marie vão à luta para decidir quem vai ser Presidente. Em Portugal tem-se seguido o processo eleitoral de forma apaixonada. A queda brutal dos partidos tradicionais do sistema gera muita polémica, sobre o presente e o futuro. E o que devem fazer as esquerdas nestas circunstâncias. A profissão aconselhou-me, no quadro de decisões que integravam uma série de propostas bem diferenciadas, a definir ab-initio a que me parecia mais adequada e porquê, anotando cuidadosamente os princípios das minhas opções. Tive isso sempre em consideração em todas as discussões ou debates. Raramente vencia, mas dei sempre luta. No quadro das eleições francesas, confesso que o primeiro impulso foi que, se fosse francês ( e de esquerda como sou ), na segunda volta votaria Macron que me parece um rapaz desempoeirado, jovem, de mangas arregaçadas, amigo da Europa e adverso à xenofobia e ao nacionalismo exacerbado de Marie. Ultimamente, a nossa elite política de centro direita tem desancado forte e feio em Mélenchon porque este não deu indicações de voto para a segunda volta e entendeu o facto como uma forma de favorecimento à extrema-direita, seja pelo voto ou pela abstenção. Sobre este propósito, Tavares tem defendido algo muito semelhante, em nome do cosmopolitismo que Macron garante: repúdio a qualquer tipo de discriminação nacional, étnica, sexual e religiosa; pela defesa da globalização democrática e pela erradicação da pobreza. Tenho dúvidas e fico com urticária quando insistem neste tipo de loas, mas insisto: se me fosse dado o direito de participar nesta eleição continuaria a votar em Macron porque a Frente Nacional é uma ameaça muito séria, mas perfeitamente consciente dos “riscos” de sair enganado e não o faria com um espírito de missão e de confiança como quando votei em Mário Soares, também numa segunda volta.
E perceberia e respeitaria muito bem a abstenção.
MUROS
Manuel Joaquim
Notícias muito recentes dizem que o muro que os EUA estão a construir na fronteira com o México já não vai ser finalizado, não só por falta de dinheiro, mas também pelas crescentes contestações internas e externas e por alteração das posições do presidente Trump, que hoje já não é novidade. De facto o presidente, com cem dias de mandato, tem dito e feito o contrário do que prometeu no decurso da campanha eleitoral.
Reclamou a existência de duas Chinas, a China continental e Taiwan, mas passou a reconhecer uma só China, depois das palavras públicas desta. Pretendeu revogar os acordos de livre comércio, mas já declarou que são para manter. Tentou revogar o serviço de saúde criado por Obama, o ObamaCare, depois de derrotado internamente, vai mantê-lo. Pretendeu revogar os acordos de comércio com o México, mas já desistiu da ideia. Disse que tomava a iniciativa de resolver sozinho o problema da República Popular Democrática da Coreia. Fez deslocar para as suas costas, para a Coreia do Sul, para o Japão e outros países da região, uma quantidade enorme de material de guerra, incluindo três porta-aviões, mas até agora, aparentemente, não aconteceu nada. Ou, por outra, aconteceram “conselhos” da China e da Rússia, para não se meter em alhadas. Muito recentemente a China aconselhou a RPDC a não fazer mais testes nucleares para não dar pretextos e aconselhou os EUA a suspender simultaneamente os exercícios militares que estão a realizar com a Coreia do Sul e Japão para não serem considerados uma provocação. Se as partes em conflito aceitarem esta proposta, poderá resultar a Paz. Se não, é a guerra com consequências imprevisíveis para toda a humanidade.
São assuntos que se discutem superficialmente na comunicação social, acrescentados com as palavras polémicas de um ilustre dirigente da EU, com o terrorismo e com as eleições francesas, neste caso distorcendo a realidade social e política da França com o objectivo de servirem determinado candidato.
Falou-se no referendo na Turquia, não dizendo claramente o que estava em causa e os resultados foram notícia de momento. Não se falou nem se fala nas dezenas de milhares de turcos que estão nas cadeias, sem julgamento, no encerramento de dezenas de jornais, revistas e outros, nos saneamentos nas forças militares, nas escolas, na função pública, etc. O ministro dos Negócios Estrangeiros, Santos Silva, veio dizer que com o referendo estava em causa a adesão da Turquia à EU. Palavras tristes, esquecendo que Portugal fascista aderiu à Nato e à EFTA.
Deixou-se de falar nos refugiados, no cemitério que é o mar Mediterrâneo. Omite-se quanto dinheiro recebe a Turquia da EU para bloquear a passagem de refugiados e emigrantes para a Europa.
Nada se diz sobre quanto recebe Marrocos pela prisão de refugiados e emigrantes que tentam passar e o destino que dá a essas pessoas. Marrocos é aqui à nossa porta e muito pouco sabemos. Marrocos mantém a última colónia de África que é o Sahara Ocidental. Este território foi abandonado pela Espanha em 1976. Três anos antes a população fundou um partido político, a Frente Polisário, para obter a independência da Espanha. Mas Marrocos e Mauritânia repartiram o território entre si. A Frente Polisário foi para a guerra. Dezenas de milhar de pessoas exilaram-se e criaram acampamentos junto à fronteira com a Argélia. O rei de Marrocos iniciou a construção de um muro que tem 2.700 quilómetros de comprimento, com postos militares na sua extensão e todo o terreno armadilhado, pelo lado saharaui, dizem 7 milhões de minas. Milhares de presos políticos torturados e assassinados. Homens, mulheres e crianças. Em 1991 a Frente Polísário e Marrocos efectuaram um acordo de Paz com o apoio da ONU e um compromisso para organizarem um referendo de autodeterminação. Mas nunca foi cumprido e a comunidade internacional foi-se esquecendo. O muro continuou. É o chamado “Muro da vergonha”. Depois da muralha da China é o maior. Tanto barulho foi feito por um muro que não tinha 20 quilómetros de comprimento mas que certamente, na altura, evitou uma terceira guerra mundial. Tanto barulho tem dado o muro do Trump iniciado por anteriores presidentes. Sobre o “muro da vergonha” ninguém sabe. As grandes riquezas existentes, designadamente fosfatos, pesca, leva a muitos esquecimentos. António Guterres tem este processo para resolver.
PRESCRIÇÃO DE DIAGNÓSTICO
António Mesquita
A Greek physician at work (490 BC)
A identificação da doença permite ao médico "ler" alguns sintomas e antecipar outros, interpretando, sempre no mesmo sentido, indícios que podem parecer não ter qualquer relação com o mal.
Esta "crítica" não é possível no caso duma doença ainda desconhecida, ou quando os sinais são demasiado ambíguos.
Antes da filosofia hegeliana ter engendrado a sua prole no domínio da teoria política, a crítica tinha de cingir-se aos aspectos pontuais e às lições do senso comum. Denunciava-se a injustiça em pessoas e actuações concretas, mas era inconcebível a ideia de que a sociedade pudesse ser injusta no seu todo, sistematicamente.
A filosofia alemã criou a crítica sistemática. Tal como no caso do médico que já sabe o nome da doença, tudo pode ser interpretado como sintoma e manifestação do sistema.
Infelizmente, a política deixou de poder recorrer à farmácia do século XIX. E os que continuam a diagnosticar o sistema já não têm os meios da cura.
A pior consequência disto é que se perde assim o sentido natural da justiça e só o que corresponde à doença sistemática é valorizado.
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