Lampaul, 30 de Abril
A lembrança dos dias luminosos de Abril encontrou-me em pleno Loire. Cruzei o rio através da bonita ponte de Langeais. Ao longo dos 300 metros da travessia, permiti-me olhar a França, ou talvez seja mais apropriado dizer, pensei a França com o olhar estendendo-se imaginariamente para os corredores dos palácios do poder. Se procurarmos o pormenor percebe-se o ruir lento e desagregador das estruturas sobre um chão pantanoso que a qualquer momento pode-se tornar volátil. Distantes estão os dias dos comunardes, do assalto à Bastilha. Na aparência é o regresso de uma França colonial com a sua agressividade sobre a Síria e o Norte de África, mas na realidade, o seu poderio militar está suportado em poderes que se diluem numa sociedade esfarrapada, à deriva, sem líderes. Os estropiadores financeiros já dispensam os seus empregados políticos e recorrem aos seus serviçais directos. Dispensam a oratória, chega-lhes o verbo, oco e vazio, fruta podre pintada de fresco. E a França arrasta-se atrás desta comitiva. José Régio ainda sabia por onde não ir mas esta França vai à bolina, consoante o vento e chega a acreditar no inacreditável. Invade-me uma intensa tristeza na manhã fria em que contemplo o Loire. Até o rio parece arrastar-se sem pressa em alcançar o oceano. Entro na Bretanha pela costa norte e forço-me a um desvio para alcançar o Monte Saint-Michel. Necessito de um banho de Idade Média. Reflectir sobre a França actual suja-nos a alma e o pensamento. Há uma certa leveza quando percorremos este antigo território beneditino. Tudo parece seduzir-nos, atrair-nos, inspirando-nos na forma de pensarmos e olharmos o mundo, o que vemos e o que desejaríamos encontrar. Deambulei várias horas e deixei que o entardecer me encontrasse em sereno deleite da vida no interior da abadia. A costa norte da Bretanha, refúgio de pintores pela luminosidade que faz realçar as cores é também uma espécie de abertura da Mancha ao Atlântico. Suponho as águas frias, alterosas vejo-as eu. Percorro as suas reentrâncias, as suas falésias, as pequenas aldeias, e os faróis que se agigantam perante a grandeza do mar. En Le Conquet enquanto aguardo, o navio que me levará até Port du Stiff, e tendo como horizonte o farol de Kermorvan, escrevo de novo à mulher do meu futuro. Que não tarde como lhe pedi em Juromenha, que apresse a sua vinda antes que chegue ao meu destino que apazigúe a falta que faz enquanto não navega no rio da minha vida. Lampaul parece conduzir-nos à infância, pelo encanto. Nas pequenas ruas e nas suas casas de pedra parece reinar um tempo mágico. Escolhi esta ilha de Ouessant para me despedir do continente. Na verdade vim à procura do Museu dos Faróis e Balizas albergado pelo farol do Creac’h. Os faróis transmitem-nos a ideia de grande isolamento, de enorme solidão. Silêncio não. O mar produz os seus próprios sons, os seus ruídos, o estertor das suas águas crepitando contra a penedia, o alvoroço da espuma em desintegração. Fazem-nos sentir abandonados e únicos, como que perdidos, receosos de voltar a caminhar. Quando passeamos pelo museu em observação é um pouco desse aroma marítimo que nos visita, nos atrai. Sentimo-nos singulares e protegidos. Para lá desta costa estende-se a longitude infinita do oceano. Sinto-me pequeno face à imaginação da sua grandeza. A ilha de Ouessant resiste há séculos há fúria do mar e do vento. Amanhã afasto-me para Norte.
Fernão Vasques*
* Por favor, não me confundam com o corajoso alfaiate que em 1371 ousou desafiar, em nome do povo, O Formoso e a futura rainha. Sou apenas um sonhador, digo eu, dos finais do século XX com endereço em Santa Maria das Júnias. São duas ruínas que se amparam, as minhas e as do mosteiro.
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