02/04/17
01/04/17
30 ANOS DEPOIS
Mário Martins
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“Eu nunca desmenti o PREC; o sempre assumido PREC.”
29 de Janeiro de 1983
Coliseu dos Recreios – Lisboa
José Afonso
Trinta anos depois da morte de José Afonso, o que posso dizer é que cresci politicamente ao som do seu canto. Em finais de 1973, na oposição semi-clandestina levada a cabo por uma Comissão de Freguesia do MDP-CDE, trauteávamos a recente “Venham mais cinco”. E poucos dias depois do 25 de Abril tive a sorte de assistir ao I Encontro Livre da Canção Popular, no Palácio de Cristal, no Porto, onde proferiu a frase premonitória: “Agora vão surgir outros vampiros”.
É realmente justo dizer que o grande compositor e poeta da canção popular é, ou foi, o rosto da utopia, tanto nos fins como nos meios. Combateu política e, sobretudo, culturalmente, a ditadura e o capitalismo amparado pelo regime; sempre defendeu uma sociedade livre e igualitária; e avesso a comandos partidários - disse um dia que “o meu comité central sou eu” – privilegiava a participação e a organização política de base.
Três décadas volvidas sobre a sua morte, o socialismo partidariamente dirigido deu no que deu e a alternativa do “poder popular” nunca foi experimentada nem é fácil vislumbrá-la num futuro previsivelmente dominado pela aceleração do novo PREC (processo revolucionário de automatização e robotização em curso), que constitui uma ameaça sem precedentes ao valor do trabalho, enquanto base das condições materiais de existência e aglutinador social.
Para lá do seu incontornável exemplo e da inegável valia do seu legado artístico, ficou a utopia que, por definição, é o que não pertence a nenhum lugar mas que, segundo a escritora Joanna Russ, “representa a parte de sonho indispensável a quem quer autenticamente construir o real”.
CARTAS DE SANTA MARIA
Aigues-Mortes, 31 de Março
Atravessei Carcassone como uma lança atravessa um corpo, de um só golpe e de um grito apenas. A cidade antiga impressiona. O Château Comtal, a Porte Narbonnaise, aparecem como símbolos de um passado de glória. Mas não parei, pois uma dor imensa afogava-me o pensamento. Quando as sombras da noite me envolvem chega uma música, serena, magoada, soando a eternidade e ocorre-me pensar nos tempos negros dos cátaros nos corredores sombrios das masmorras inquisitoriais vogando ao sabor dos humores de figuras sinistras. Sei que é a música de Jordi Savall que me visita, que toca no interior da minha memória no concerto célebre da Abadia de Fontfroid em Narbona dedicado À Tragédia Cátara. Agora estou sentado na Place Saint-Louis desta pequena cidade mediterrânica. Caminhei longo tempo em volta da praça. Alimento sempre a ideia utópica de que vou encontrar o Café certo para escrever. Sei que não encontro, mas nunca desisto de procurar. Por fim, acabei nas cadeiras cor-de-rosa do L’ Express. Esta mistura do branco total com o vermelho vibrante, arrepia-me, é uma cor deslavada, é como se não me conseguisse sentar bem, mas pareceu-me o melhor lugar. Pergunto-me o que faço aqui, porque me desviei da rota que levava. É uma história antiga de uma outra ocasião que por aqui passei, num desses dias em que tudo nos acontece. Tinha madrugado e aos primeiros alvores despedi-me da pessoa que me recebera na véspera e com quem havia tentado durante minutos encontrar palavras para nos entendermos até descobrirmos que falávamos a mesma língua. Quando as primeiras imagens do sol rastejavam pelo chão, seguia pelas ruas estreitas de Narbona em perseguição de um aroma de pão fresco. No fim da manhã tudo se começou a complicar. Levava um programa daqueles em que acreditámos poder ver tudo, sabendo de antemão que são sempre preferíveis as escolhas por mais dolorosas que sejam, pois ver tudo, simplifica o olhar, ver o exterior e não chegar a conhecer o suficiente. Foi em Montpllier que durante duas horas procurei quem não queria ser encontrado. É muito difícil encontrar quem nos foge continuadamente, é uma espécie de utopia, quando chegamos, saiu um pouco antes. Levava um sonho comigo que me seguia desde a adolescência, visitar a Camargue. Tinha sido numa das primeiras edições do Reader’s que visionara os cavalos selvagens a percorrer os terrenos alagados do delta do Ródano. Mas aquele atraso, complicou tudo e foi desta forma, em velocidade que na estrada vi a placa a indicar Aigues-Mortes. Não podia parar, mas compreendi que estava a perder de visitar um espaço medieval e gravei no pensamento o nome, mas traduzindo. Sabemos como a pressa não ajuda a uma leitura correcta do que vemos e interiorizei, Águias Mortas. Aguçou ainda mais o desejo da visita. Porquê um lugar com esta toponímia. O atraso devia-me ter levado a refazer o objectivo, como não o fiz, o resto do dia foi feito a vencer quilómetros de estrada com uma única paragem em plena Camargue para seguir o tropel dos cavalos que arrastava na memória ao longo dos anos. Há um ano atrás quando iniciei esta caminhada com destino ao nada incluí as Águias-Mortas no roteiro e só então reparei que o nome tinha origem na língua occitana e é mais precisamente, Águas-Mortas, as águas estagnadas, sujas, do pântano, os restos do delta do Ródano que aqui chegam. No século XIII, o mar estava aqui junto a esta fortaleza imponente e daqui partiram as cruzadas, ao assalto da terra Palestina, ao massacre de Jerusalém. Mas o Homem conquista espaço, ao mar também e o Mediterrâneo que outrora bordejava a cidade está agora a 5 kms de distância. As águas sujas, afastaram-se, espalharam-se pelo mundo e em qualquer lugar em que os nossos olhos se levantem, o que vemos são pântanos, lamaçais, águas sujas, nojentas e obscenas por vezes. Sente-se a podridão a rodear-nos, nos gestos, nas acções, nas intenções e nos actos malignos. O poder é encantatório, sedutor, malicioso e o ser humano que se divide entre a virtude e a maldade, deixa-se arrastar, insidiosamente, quantas vezes pelo único prazer do exercício de mandar, de um poder, sempre temporal, mas esmagador. O nosso pensamento procura o futuro e só encontra o passado. Evoluímos, afirmamos nós, em frente ao espelho para convencimento próprio, no mesmo instante que traçamos projectos que vão sepultar alguém pelo caminho. Os que procuram não se sujar neste lamaçal onde caminha a humanidade, são uns românticos, idealistas a quem dizem, com ar de conselho, que não sabem observar a realidade. Vagabundear por Aigues-Mortes tem servido para isso, deixar o pensamento solto a percorrer a humanidade. Abandonamos a história que nos falava de guerras e reis, descemos ao quotidiano e o que encontramos é o mesmo, em escala microscópica, o universo no seu todo, o ínfimo e o infinito. Foi num desses instantes que me chegou a poesia da Sophia, «há mulheres que trazem o mar nos olhos, não pela cor, mas pela vastidão da alma». Mar esse que, quantas vezes nos abraça, nos enlaça, nos protege e outras tantas nos afoga, nos desencaminha. Sinto-me cansado. A Primavera aproxima-se e a temperatura ameniza. Amanhã regresso ao rumo para norte, para o destino que procuro.
Fernão Vasques*
* Por favor, não me confundam com o corajoso alfaiate que em 1371 ousou desafiar, em nome do povo, O Formoso e a futura rainha. Sou apenas um sonhador, digo eu, dos finais do século XX com endereço em Santa Maria das Júnias. São duas ruínas que se amparam, as minhas e as do mosteiro.
A CRISE EUROPEIA
Manuel Joaquim
Quem leu o jornal Público do passado dia 29, ficou a saber, que, a partir deste mês de Abril, vai iniciar-se uma grande campanha de comunicação, paga pela Comissão Europeia, para influenciar a opinião pública contra o eurocepticismo, que vai envolver empresários, académicos, autarcas, jornalistas e empresas especializadas, que vai decorrer até Março do próximo ano. Não vai faltar dinheiro para tantos papagaios, na rádio, nas televisões, nos jornais, nos outdoors que vão inundar muitos locais.
No mês de Março foram feitas comemorações ao 60º aniversário do Tratado de Roma. Muito se falou sobre o assunto, contrabalançando notícias sobre o início das negociações do Reino Unido para sair da União Europeia, o chamado Brexit. O Presidente da República, sobre isto, disse que seria "o momento para um novo começo”, não se sabendo muito bem a que começo se estava a referir.
Também em Março, Cavaco Silva deu uma entrevista ao jornal Público, onde referiu que “só se Portugal enlouquecesse é saía da zona do euro”. Isto, no seguimento de uma declaração sua, escrita, efectuada em Fevereiro, que teria “consequências dramáticas de uma ruptura da união monetária”. Preocupações que estão à flor da pele de alguém que tenta negar o rumo dos acontecimentos e o mais que provável desastre que se aproxima em termos económicos, sociais e políticos.
Os aprendizes de feiticeiro, continuam a governar a sua vidinha, defendendo já, sem vergonha, a Europa a várias velocidades, a destruírem os bancos nacionais, provocando a aceleração da concentração e centralização do grande capital transnacional, tendo como bandeira o chamado federalismo, com a ilusão de que com saltos em frente resolverão os problemas (deles).
Entretanto, aumentam as vozes críticas sobre a situação e o rumo da União Europeia, independentemente das suas posições políticas.
Curiosamente, a campanha que a EU vai fazer para influenciar a opinião das pessoas, coincide com o prazo da campanha de esclarecimento que o PCP vai fazer sobre o Euro, a Divida, Banca, defendendo uma política para “romper com os constrangimentos, desenvolver o País” para a qual acabou de publicar um livro, que mereceu elogios de Clara Ferreira Alves, no programa Eixo do Mal.
João Ferreira do Amaral, professor catedrático do ISE, da área da economia e das matemáticas, que publicou já em 2013 o livro “ Porque devemos sair do euro, o divórcio necessário para tirar Portugal da crise”, além de outros publicados anteriormente sobre o tema, e que sempre se manifestou contrário à integração de Portugal, fundamentando cientificamente as suas posições, publicou em 24 de Março passado, um artigo intitulado “Sessenta anos depois – A reserva de soberania e o futuro de Portugal, denunciando que “a União Europeia não é um mero prosseguimento da CEE sob outro nome. A União é algo de novo e o seu estabelecimento, em 1992, com a ratificação do tratado de Maastricht, representou um corte em relação ao que tinha sido até aí a evolução da integração europeia ocidental pós-II Guerra Mundial. Por isso, mais do que a comemoração dos 60 anos da CEE, o que deveríamos estar a assinalar (não a comemorar) são os 25 anos do Tratado de Maastricht”.
Depois de descrever de forma muito clara todo o processo e as suas consequências, diz: “A pertença ao euro – um dos maiores desastres da nossa história – tem de ser revertida como primeiro passo fundamental para repor a reserva de soberania. Por isso, é urgente que a nova união defina um conjunto de procedimentos para a saída de um país da zona euro” …”A questão da reserva de soberania é nos tempos actuais a mais importante que o País tem de enfrentar. Nela se joga a possibilidade de Portugal continuar a existir”.
Quem leu o discurso do Papa, aquando da recepção no Vaticano aos representantes da EU, nas comemorações dos ditos 60 anos? Muito poucas pessoas. A comunicação social desvalorizou-a completamente. É que o Papa manifestou o seu grande pessimismo com a continuação da EU.
Neste momento, já quase que não há notícias sobre imigrantes e refugiados, ou sobre os pormenores da guerra em Mosul, no Iraque, como houve sobre Allepo, na Síria.
É preciso avisar toda a gente, como dizia o Cantor, que os jornais não dizem o que sabem.
A JOVEM INTELIGÊNCIA
António Mesquita
(MRI scan could replace IQ test for measuring human intelligence | Genetic Literacy Project) |
"Aproveitai os vossos anos de juventude para serdes inteligentes. Depois dos trinta, já não há imbecis."
(Alain)
A posição, o prestígio, o ordenado fecham os horizontes; quando muito, os felizes contemplados 'desenvolvem', como diziam os admiradores de Debussy sobre o velho Brahms. Conhecem a emulação dos pares, o casulo de um poder sempre relativo, mas eloquente.
Kant chamava de 'sono dogmático' a essa complacência dos jovens velhos. O museu das competências cheira a naftalina.
Haverá então uma idade, um momento para roubar a chave da inteligência? Seja como for, passado esse tempo, a máscara e o traje, a 'importância' expulsam o inconformismo e o pensamento livre que têm sempre o mau hábito de expor as nulidades.
Mas claro que a crítica 'à Molière' não nos ajuda muito a compreender a situação. Os importantes prestam-se ao ridículo como nos mostra o teatro. Mas a inteligência não esgota o seu papel na defesa das posições conservadoras. Para lá do 'status quo', a inteligência procura o seu suplemento de alma. É como quando se diz que o revolucionário começou a trair desde o momento em que pensa pela sua cabeça e tem fins próprios independentes da causa.
Esse suplemento, na lógica da 'catequese', é no fundo 'diabólico'. É por isso que o destino de tantas grandes e generosas ideias é o de acabaram a fazer o contrário do que prometiam e serem parte do ominoso obstáculo que a jovem inteligência tem de vencer, apenas armada pela sua coragem.
AS MÁQUINAS
Mário Faria
(Queer Sci Fi) |
A terceira geração das Máquinas Inteligentes (MI) está cada vez mais próxima do ser humano, numa representação híbrida para não ferir suscetibilidades. Foi recebida de forna entusiástica pelas elites que as projectaram, as distribuíram e pela maioria dos utilizadores. Têm uma gama de aplicações muito diversificada e a sua utilização é bastante frendly. Esta tendência de aproximar a máquina à imagem do homem já era perceptível nas MI da segunda geração, mas ultrapassou as mais optimistas perspectivas. A ideia de criar dois olhos extras nos indicadores das mãos, foi recebida de forma muito entusiástica dadas as vantagens que a nova aplicação vai potenciar. Além do mais, há uma diferenciação inteligente conforme os alvos a que se dirigem. As MI de primeira geração mantêm-se a operar na produção em linha, mas ensaios e novos produtos são testados e algumas novas máquinas estão já em fase de produção e vão revolucionar os transportes e a exploração do espaço. Obviamente, que os protótipos de uso pessoal têm uma dimensão de um micro interruptor que liga os utilizadores à “nuvem” e põe à sua disposição um número ilimitado de aplicações. O trabalho já era e os humanos dedicam-se a algumas tarefas cívicas que lutam por manter. As artes e as actividades desportivas mantêm-se com algum fulgor. O futebol está vivo apesar de todos os esforços das autoridades para o estrangular, dada a sua natureza demasiado conflitual, mas que acabaram por abandonar, “não fora a populaça dirigir esses impulsos a outras actividades, nomeadamente políticas”. A prática religiosa está reduzida a pequenos núcleos pouco representativos, embora Fátima e os Pastorinhos mantenham uma interessante notoriedade; as de origem islâmica têm sido muito perseguidas e com algum êxito: o uso da burka há muito foi extinto e a cor invadiu os trajos outrora negros como a noite. Há (ainda) muito caminho a percorrer, nomeadamente nas zonas em que a implantação das máquinas ainda não cobre as necessidades a muitos povos, de forma sustentável. Mas, o FMI (Fundo de Máquinas Inteligentes) está a tratar bem da coisa.
Os homens e mulheres têm como principal ocupação, a continuidade da espécie, a família e o lazer. Com todos os serviços garantidos a moeda é distribuída de acordo com a dimensão familiar e serve para animar a iniciativa privada em “serviços que prestam pouco valor ao produto”. Têm apenas de cumprir uma série de serviços cívicos que exigem prestar e não ultrapassam as 20 horas semanais, por cidadão. Os Directórios que dirigem e supervisionam toda a actividade dos homens e das máquinas, são os donos de tudo. Os cidadãos estão domados, as máquinas são uma ameaça controlada, por enquanto. A sociedade da felicidade perfeita, está bem encaminhada, segundo reza a informação política dirigida pela poderosa Confederação dos Directórios. A administração territorial está dividida da seguinte forma: Europa, Ásia, África, Oceânia, América e pelos seguintes estados independentes: USA, Rússia e China. Cada uma tem o seu Directório independente e a Confederação estabelece as linhas políticas gerais e decide os conflitos entre as partes. Embora com diferentes velocidades, há um surto de desenvolvimento e paz. Alguns conflitos regionais, particularmente no mundo Islâmico, ainda preocupam. O debate que os cidadãos mais cuidam, prende-se com o poder crescente da máquina em muitas áreas, nomeadamente na segurança e na justiça. As MI da última geração cada vez mais tendem a copiar o homem num estado de perfeição, a que adicionam alguns pormenores menos estáveis para simular uma falsa fragilidade. Querem ser o prometido Homem Novo. Para dar conta da capacidade e poder robótico, repare-se neste pormenor ao nível de decisão a que as máquinas podem aceder no momento da sua própria programação. Repare-se nesta delícia: a língua oficial que cobre todo o território é o inglês a que todos estão obrigados; as línguas indígenas são toleradas, só que os cidadãos de cada região não abdicaram de a fazer a língua de utilização permanente no espaço familiar. O Directório entendeu dar às MI pessoais da da terceira geração o nome de “Saudade” para todo o espaço historicamente reconhecido como Portugal, só que a máquina na sua lógica brutal constatou que a palavra mais usada pelos indígenas era ainda e de forma muito clara, a expressão, Foda-se, e vai daí “resolveram” que essa devia ser a palavra que acharam mais popular e adequada para as novas MI pessoais. Esta ocorrência tem gerado um intenso debate. O povo gostou da mudança. As máquinas aproximaram-se das gentes pela aplicação da lógica pura e dura e os que inundam os corredores dos Directórios estão muito preocupados e anunciam os perigos deste populismo conduzido pela realidade virtual. E vão ao baú da história e lembram as desgraças após o Brexit. E assim vai o mundo em 2517.
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