Aigues-Mortes, 31 de Março
Atravessei Carcassone como uma lança atravessa um corpo, de um só golpe e de um grito apenas. A cidade antiga impressiona. O Château Comtal, a Porte Narbonnaise, aparecem como símbolos de um passado de glória. Mas não parei, pois uma dor imensa afogava-me o pensamento. Quando as sombras da noite me envolvem chega uma música, serena, magoada, soando a eternidade e ocorre-me pensar nos tempos negros dos cátaros nos corredores sombrios das masmorras inquisitoriais vogando ao sabor dos humores de figuras sinistras. Sei que é a música de Jordi Savall que me visita, que toca no interior da minha memória no concerto célebre da Abadia de Fontfroid em Narbona dedicado À Tragédia Cátara. Agora estou sentado na Place Saint-Louis desta pequena cidade mediterrânica. Caminhei longo tempo em volta da praça. Alimento sempre a ideia utópica de que vou encontrar o Café certo para escrever. Sei que não encontro, mas nunca desisto de procurar. Por fim, acabei nas cadeiras cor-de-rosa do L’ Express. Esta mistura do branco total com o vermelho vibrante, arrepia-me, é uma cor deslavada, é como se não me conseguisse sentar bem, mas pareceu-me o melhor lugar. Pergunto-me o que faço aqui, porque me desviei da rota que levava. É uma história antiga de uma outra ocasião que por aqui passei, num desses dias em que tudo nos acontece. Tinha madrugado e aos primeiros alvores despedi-me da pessoa que me recebera na véspera e com quem havia tentado durante minutos encontrar palavras para nos entendermos até descobrirmos que falávamos a mesma língua. Quando as primeiras imagens do sol rastejavam pelo chão, seguia pelas ruas estreitas de Narbona em perseguição de um aroma de pão fresco. No fim da manhã tudo se começou a complicar. Levava um programa daqueles em que acreditámos poder ver tudo, sabendo de antemão que são sempre preferíveis as escolhas por mais dolorosas que sejam, pois ver tudo, simplifica o olhar, ver o exterior e não chegar a conhecer o suficiente. Foi em Montpllier que durante duas horas procurei quem não queria ser encontrado. É muito difícil encontrar quem nos foge continuadamente, é uma espécie de utopia, quando chegamos, saiu um pouco antes. Levava um sonho comigo que me seguia desde a adolescência, visitar a Camargue. Tinha sido numa das primeiras edições do Reader’s que visionara os cavalos selvagens a percorrer os terrenos alagados do delta do Ródano. Mas aquele atraso, complicou tudo e foi desta forma, em velocidade que na estrada vi a placa a indicar Aigues-Mortes. Não podia parar, mas compreendi que estava a perder de visitar um espaço medieval e gravei no pensamento o nome, mas traduzindo. Sabemos como a pressa não ajuda a uma leitura correcta do que vemos e interiorizei, Águias Mortas. Aguçou ainda mais o desejo da visita. Porquê um lugar com esta toponímia. O atraso devia-me ter levado a refazer o objectivo, como não o fiz, o resto do dia foi feito a vencer quilómetros de estrada com uma única paragem em plena Camargue para seguir o tropel dos cavalos que arrastava na memória ao longo dos anos. Há um ano atrás quando iniciei esta caminhada com destino ao nada incluí as Águias-Mortas no roteiro e só então reparei que o nome tinha origem na língua occitana e é mais precisamente, Águas-Mortas, as águas estagnadas, sujas, do pântano, os restos do delta do Ródano que aqui chegam. No século XIII, o mar estava aqui junto a esta fortaleza imponente e daqui partiram as cruzadas, ao assalto da terra Palestina, ao massacre de Jerusalém. Mas o Homem conquista espaço, ao mar também e o Mediterrâneo que outrora bordejava a cidade está agora a 5 kms de distância. As águas sujas, afastaram-se, espalharam-se pelo mundo e em qualquer lugar em que os nossos olhos se levantem, o que vemos são pântanos, lamaçais, águas sujas, nojentas e obscenas por vezes. Sente-se a podridão a rodear-nos, nos gestos, nas acções, nas intenções e nos actos malignos. O poder é encantatório, sedutor, malicioso e o ser humano que se divide entre a virtude e a maldade, deixa-se arrastar, insidiosamente, quantas vezes pelo único prazer do exercício de mandar, de um poder, sempre temporal, mas esmagador. O nosso pensamento procura o futuro e só encontra o passado. Evoluímos, afirmamos nós, em frente ao espelho para convencimento próprio, no mesmo instante que traçamos projectos que vão sepultar alguém pelo caminho. Os que procuram não se sujar neste lamaçal onde caminha a humanidade, são uns românticos, idealistas a quem dizem, com ar de conselho, que não sabem observar a realidade. Vagabundear por Aigues-Mortes tem servido para isso, deixar o pensamento solto a percorrer a humanidade. Abandonamos a história que nos falava de guerras e reis, descemos ao quotidiano e o que encontramos é o mesmo, em escala microscópica, o universo no seu todo, o ínfimo e o infinito. Foi num desses instantes que me chegou a poesia da Sophia, «há mulheres que trazem o mar nos olhos, não pela cor, mas pela vastidão da alma». Mar esse que, quantas vezes nos abraça, nos enlaça, nos protege e outras tantas nos afoga, nos desencaminha. Sinto-me cansado. A Primavera aproxima-se e a temperatura ameniza. Amanhã regresso ao rumo para norte, para o destino que procuro.
Fernão Vasques*
* Por favor, não me confundam com o corajoso alfaiate que em 1371 ousou desafiar, em nome do povo, O Formoso e a futura rainha. Sou apenas um sonhador, digo eu, dos finais do século XX com endereço em Santa Maria das Júnias. São duas ruínas que se amparam, as minhas e as do mosteiro.
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