04/11/16
UMA SEMANA DE GREVE!
Mário Faria
Entrei em greve. Modesta como a idade obriga. Continuei a comer e beber. Apenas deixei de ver a TV e de ler jornais. À socapa, fiquei-me por espreitar as notícias desportivas e a sorte do homem mais procurado de Portugal. E sobre este, já não sei por quem sou. Criei uma simpatia pelo tipo que tendo a disfarçar. Cheguei a este ponto sem retorno. E sem critério. Por outro lado, não sei o que dizer. E dá jeito para fugir da escrita. E da controvérsia. E dos figurões e das figurinhas. Falo muito comigo. E a intervenção é cada vez mais escassa, embora tenha a minha experiência em muito boa conta. Poderia ser de outra maneira? Podia e devia, mas era outra coisa. Falo e escrevo da forma que me dá mais jeito. E tenho sempre razão quando discuto com os meus botões. Felizmente, a minha mulher tem-me ajudado muito neste período de privação e não se cansou de me pôr ao corrente de tudo o que é importante, sendo muito meticulosa na descrição meteorológica cá da nossa terra e de todo o planeta. Num ápice, sentia calor, frio, chuva, as tempestades e a terra a tremer. Cheguei a este estado de negação, de fuga para a frente ou o que seja, por três motivos principais: a reeleição do Kadafi dos Pneus e o bombardeamento de directos de propaganda ao acontecimento, sempre a favor do figurão que é presidente do SLB e as notícias do Público e, em especial, do génio que dá pelo nome de João Miguel Tavares. Ele denuncia, julga, condena e perdoa. Um liberal à moda de Thatcher. A terceira, a gota que entornou o frasco, foi a aparição nas pantalhas da TV de Teodora Cardoso, a senhora UTAO. Não há pachorra. Não posso com a mulher, nem com “sus muchachos”. A lengalenga sobre o défice estrutural, tornou-se viral na direita. E estes vírus são resistentes. Repetem a receita de Schäuble, ad nauseam. E com a mesma arrogância. Sem repelentes eficazes, resta o desabafo injurioso. E insultei-os com os palavrões da ordem. Para ficar completamente deprimido, vi com os meus olhos que a Livraria Torres fechou. Muitos anos viveu e sempre próxima. Não era tão antiga, nem tão bonita como a Lello, mas cumpria dignamente a sua função e era lá que ia espreitar e folhear as revistas de cinema nos meus tempos de adolescente, disfarçadamente, antes de comprar o lápis ou esferográfica, conforme a disponibilidade financeira e a necessidade do momento. E depois, sempre que o disfarce resultou, ficava deslumbrado com os belos corpos das estrelas. E sonhava. Como pode ser: tanta loja de perfume e tanta pomba assassinada? Fico triste ao assistir à “morte lenta” do nosso comércio tradicional. Pieguices. Fugi. Refugiei-me em San Agustin del Guadalix. Por lá, não faltou entretimento. Em conversa com familiares e amigos, dei conta do meu desgosto. Confortaram-me e explicaram-me que o comércio vai voltar em força ao centro das cidades, que as lojas serão simples expositores de produtos, as compras feitas on-line e entregues em casa. Tudo direitinho. E que os grandes centros comerciais dos subúrbios, têm os dias contados. E que as lojas tradicionais têm de se actualizar ou morrem. Perguntei: e os saldos vão acabar? Sorriram de forma condescendente e não responderam. Este admirável mundo novo, veio para ficar. Asseguram-me. Não consegui ficar feliz. Regressei ao Porto. Fui ao Lidl: apalpei os figos, comprei laranjas e o pão acabado de sair, quentinho, quentinho, que devorei num ápice. Reflecti e decidi levantar a ordem de greve a que me impus. O debate sobre o orçamento reclama toda a atenção, ansioso que a esquerda dê uma “tareia” à direita que anda a pedi-las.
OS POSSESSOS
António Mesquita
(Ernst Hanfstaengl à direita)
"Para ele (Hitler), falar era um modo de satisfazer um desejo violento e esgotante. De repente, o fenómeno da sua eloquência tornou-se-me compreensível. Os oito ou dez minutos finais de um discurso assemelhavam-se a um orgasmo de palavras."
(Ernst Hanfstaengl, chefe do serviço de imprensa do partido)
Nada disto é novo. Freud abriu a porta das interpretações auto-referentes. O mundo perdeu a impenetrabilidade da natureza que reclamava os seus próprios deuses, e a palavra separou-se da sua origem mágica para se adaptar à perfeição do discurso científico.
A ideia que o chefe de imprensa nazi viu no seu führer entusiasmado (à letra, possuído pelo deus) não era totalmente 'alienada'. Hanfstaengl era um homem do seu tempo e, aqui, permite-se uma espécie de juízo crítico, senão blasfemo, sobre o líder, ao 'denunciar' a natureza sexual do fascínio que exercia nos comícios. Há então uma destruição de valor simbólico, na área religiosa, como a visada por alguns que contestam a 'pureza' (aqui a ausência de um interesse ou de um prazer próprios) na vida dos santos.
Por outro lado, Hitler é visto não como um homem inteiramente responsável pelos seus actos, em razão da dita possessão, e antes como uma energia auto-destruidora. Como um 'medium', no momento supremo, engasgado pela serpente da metamorfose.
Se se pode falar em fascínio é precisamente por que por detrás da violência das palavras e dos gestos, a multidão pressente que o 'possuído' se encontra num altar onde ele e a Alemanha romântica vão ser, de facto, sacrificados.
Pode compreender-se este fenómeno unicamente com as categorias da política?
Esta 'história alemã' vive uma quase-repetição nas eleições americanas. Mas, aí, o demagogo não está possuído, razão por que o elemento trágico está completamente afastado. É, sem dúvida, uma ideia da democracia e da história do país que já foram sacrificados por um apoio massivo. Mas tudo se passa, como disse Marx, sob o modo da farsa.
O que, apesar de tudo, nos dá alguma esperança...
NUNCA COMO NO OUTONO
Mário Martins
Nunca como no Outono
os telhados são tão oblíquos
a luz tão coada
tão românticos os jardins e as fontes
a paisagem tão quieta
o éter tão propício a uma balada de Chopin
As árvores mais atrevidas
indiferentes a gripes e constipações
despem-se na praça pública
lançando a roupa mais secreta
aos pés de quem passa
Tonificados pelas viagens
pelo sal do mar
pelo ar das serras
ou pela festa da aldeia
reentramos no habitual
onde, diz Agustina, o amor é invisível
Chopin e George Sand
http://www.polishnews.com/index.php?option
Nunca como no Outono
os telhados são tão oblíquos
a luz tão coada
tão românticos os jardins e as fontes
a paisagem tão quieta
o éter tão propício a uma balada de Chopin
As árvores mais atrevidas
indiferentes a gripes e constipações
despem-se na praça pública
lançando a roupa mais secreta
aos pés de quem passa
Tonificados pelas viagens
pelo sal do mar
pelo ar das serras
ou pela festa da aldeia
reentramos no habitual
onde, diz Agustina, o amor é invisível
NOVOS POETAS
Ainda a propósito de Tavira, para além do movimento contra a exploração de petróleo e gás que observei em todo lado, conforme referi no artigo do passado mês de Outubro, registei, com curiosidade e simpatia, o nome de Álvaro de Campos em restaurantes, em lojas, numa associação cultural, que tem precisamente esse nome, em sessões de poesia e a preparação de uma iniciativa cultural para comemorar o seu aniversário.
Como se sabe, Álvaro de Campos, filho do fingimento do poeta fingidor, nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890, pela uma e meia da tarde, engenheiro naval, tipo vagamente judeu português, estudou na Escócia e viajou pelo Oriente. Segundo dizem os entendidos, seu pai, deu-lhe mais 26 irmãos. Sendo, provavelmente, o mais culto de todos, vale a pena conhecer as suas obras: Opiário, Ode Marítima, Ode Triunfal, Passagem das Horas, Tabacaria, Aniversário, Lisbon Revisited.
O pai, considerava que, naquela época, havia uma grande falta de literatura, pelo que, através dos filhos, poderia ser ele a própria literatura.
Assim, através de fingimentos, nasceu em Tavira um movimento cultural muito interessante com resultados muito positivos.
E novos poetas vão realmente nascendo em Tavira, como é o caso de:
URGÉLIA SANTOS
Tavira
No seu ventre corre o Séqua e o Gilão
Pelas suas encostas, escorre a tradição
Tesouros escondidos nos seus telhados
Onde gaivotas espalham os seus gritos
molhados
As águas do rio espelham o colorido
casario
Onde se está tão bem, no calor do verão
ou no inverno frlo
La no alto de Santa Maria, o relógio
espreita
Comunhão com o Castelo, que tão bem o
aceita
Terra de tanta história e lendas
encantadas
E tanta Fé...
Vê-se nas suas inúmeras igrejas caiadas
As suas pontes ligam as gentes e as
margens
Os turistas passeiam e roubam as suas
imagens
Tavira, esculpida entre a Serra e o Mar
No Sul, luz e calor, de braços abertos... a
vos esperar
CARTAS DE SANTA MARIA
(Mértola) |
Mértola, 31 de Outubro
O Outono alcançou-me a meio do mês entre a chuva branda e a torrencial, esta breve mas mais caudalosa, arrastando na sua força a terra que resistia, e quantas vezes as construções humanas que se erguem a eito a mando dos interesses abjectos e gananciosos de gente que entende que o mundo deve viver sem lei e sem normas, acabam alagadas ou destruídas. A lei do Mercado, dizem alguns, plenos dessa sapiência bacoca que além de apalhaçarem a comunidade colectiva do território, demonstram, quantas vezes, que ainda não chegaram a estrear a cabeça. Depois, chegam estas águas, reclamando espaço e leito que lhe foi subtraído. Mas por agora, ressalta mais a amenidade do tempo. As folhas vão tombando nessa dor final de se transformarem, e como alento definitivo da sua amargura, emulam-se em cores sobrenaturais, adquirindo uma beleza que nos deixa também nessa melancolia amarga e bela do que se está a alterar à nossa volta. Já tombadas arrastam-se ainda pelo chão, numa recusa em partir que só a acção do vento e humana consegue por fim vencer. Estou sentado na esplanada do “Terra Utópica”, como se estivesse numa varanda sobre o rio, a meio da encosta. Invade-me um desses encantamentos de serenidade que certos locais nos proporcionam. O Guadiana, vencido o Alqueva, deixa-se ir, vagaroso, sem pressa, contemplando a paisagem das margens. Ainda tem sessenta quilómetros de passeio até que o mar lhe salgue as águas. Esta pequena cidade, oferece-nos também assim um momento de placidez, de devaneio das ideias ou, se o desejarmos, de profunda reflexão do tempo dos Homens. E este espaço brinda-nos com razões acrescidas para isso. Há visitas que deviam constituir obrigação e aqui, nesta terra onde me encontro, o Museu Municipal, com os seus núcleos romano e de arte sacra e o campo arqueológico, devem fazer parte desse conhecimento que não devemos, nem rejeitar nem ignorar. Não há presente sem passado. Há três polos a que chamo, com um pouco de elasticidade académica, civilizacionais, que atravessaram Mértola, como aliás parte substancial do país que hoje somos. Os Romanos deixaram-lhe Mirtilis Júlia como testemunho da sua presença. Dos Visigodos que planaram sobre a Península ao longo de duzentos anos e ainda menos na parte ocidental, pouco ficou. Serviram-se das estruturas romanas e ajustaram-se ao que encontraram. Algo me diz e se retém no meu pensamento que os Visigodos não eram propriamente um povo que se recomendasse. Diz-nos Eduardo Manzano que desde que se instalaram na Hispânia, entre 507 e 711, 14 dos seus monarcas, entre 27, foram depostos por, conspirações, assassinatos ou mortos em batalhas pelo poder. Por fim, chegaram os Árabes à península e para além de representarem um avanço civilizacional, transportavam uma nova religião, um outro Deus que muito se ajustava à intensa luz que a Sul se usufrui. Assim se instalaram na sua Martulá por quinhentos anos. Os trabalhos arqueológicos das últimas décadas com destaque para a acção de Cláudio Torres, permitiram trazer ao presente essa herança islâmica que viaja em nós e que ao longo dos séculos, viveu afundada pelos diversos regimes que se assumiam com esse catolicismo intolerante. Esse renascimento do árabe que também somos, permitiu que hoje uma das figuras da cidade, seja, Ibn Qasi, um sufista que chegou a liderar uma Taifa de Mértola que teve vida breve e morreu com o seu criador. A travessia do Alentejo, as pequenas ruas de Mértola, a tranquilidade arrebatadora destes espaços, impelem-nos naturalmente para o pensar reflexivo. Por todo este espaço territorial a que chamamos «o nosso país», passaram vários Deuses, únicos e verdadeiros. Ao longo da nossa história, encontramos 500 anos de um Deus islâmico, levamos 700 anos de um Deus cristão, além de um Deus judeu mais tímido, mais guetizado. Na óptica de cada crente, o seu Deus sobrepõe-se a todos os restantes, pela verdade que assume, pela prática que aponta, pela razão dos seres humanos que o seguem. Mas a grande questão é que qualquer um destes Deuses fala com os seus cordeiros por interposta pessoa, através daqueles que se dizem intérpretes das suas vontades e desejos e aí temos o início de uma saga que nos vem conduzindo a estradas sem saída. No contexto português, o Deus cristão sobrepôs-se aos restantes e literalmente varreu-os do território e aos que teimaram em desobedecer, em permanecer na terra que os viu nascer e crescer ao longo de gerações, imolou-os em girândolas de fogo. Nunca tremeu a mão aos torturadores inquisitoriais no seu trabalho de açaimar os relapsos. Hoje atravessa-nos o horizonte o que chamamos de «fundamentalismo islâmico». De novo e em nome de Deus as cabeças rolam decapitadas do Sael ao Iraque. Para nosso descanso, o democratíssimo clã Saud, uma casta que se apodera, em proveito próprio, das riquezas da península arábica, distribui o seu tempo entre a vergasta e a decepação dos que não se acolhem debaixo do seu mundo protector. Os seguidores do outro Deus destas terras de paisagem árida e quase estéril, não se detêm na sua euforia salvífica e na sua intolerância e inclemência semearam a Palestina de pequenos Auschwitzs, mais lentos, menos gasosos mas suficientemente mortíferos, enquanto dolentemente abanam a cabeça junto ao Muro. Vivo entre o canto dos monges que a Norte acordam a solidão ao amanhecer e a luminosidade do Sul que arrasta o canto que chama à oração. Na perseguição da perfeição, os seres humanos na sua versão masculina criaram Deuses para um melhor acolhimento dos valores, da ética e da moral que entenderam como justas e correctas para a Humanidade. Seguiram-se-lhe os intérpretes e Deus ficou cada vez mais longe, mais alto, impossibilitado de escutar as maldades daqueles, praticadas em seu nome. Por onde passaram, sempre levaram, a espada e o Livro, e o registo que deixaram, nas Américas e em África, cabe no conceito de genocídio. Hoje, levam bombas e democracia, mas a intolerância e a mortandade é a mesma e no que chamam a grande nação democrática, escolhe-se em breve entre os tambores da guerra e os tambores da loucura. E a nossa passividade segue este cortejo fúnebre da História. Quando me é possível olhar em redor, facilmente encontro a Beleza da Vida e ocorre-me de imediato a frase chave de Duby, «Deus é luz». O escritor Victor Serge numa das suas obras (1), oferece-nos a imagem de Deus na versão simples de um diálogo entre dois proletários da revolução russa: «- És crente, Maria? (…). – Não acredito em beatices, Kostia, tenta entenderme. Acredito em tudo o que é. Olha à nossa volta, olha! O seu rosto de lábios bem recortados voltou-se impulsivamente para ele, para lhe mostrar o Universo: aquele céu simples, as planícies, o rio invisível sob os juncos, a amplidão. – Não sei dizer em que é que eu acredito, Kostia, mas acredito. Talvez acredite apenas na realidade. Tens de me entender. (…). – Tens razão, Maria, sou crente como tu, vejo… A terra, o céu e a própria noite, onde as trevas não existem, uniram-nos inexprimivelmente, testa com testa, misturando-lhes os cabelos, olhos nos olhos, boca contra boca, os dentes entrechocando-se levemente. – Maria, amo-te…». À minha volta o dia apagou-se, do horizonte restam apenas as luzes, as que rompem pelas janelas das casas e as que dão um ar de magia às ruas da pequena cidade. Ao longe, num traço minúsculo, a ponte que amanhã me leva para Leste. Deus está em toda a parte, mas os fanáticos, não o vêem, permanecem cegos numa estrada estreita onde apenas vislumbram o seu endeusado Eu.
Fernão Vasques*
As guerras são tapetes.
Por debaixo deles se ocultam
as imundícies dos poderosos.
Mia Couto
(1) O Caso do Camarada Tulaev, Letras Errantes, Lda., Silveira, Junho de 2016.
* Por favor, não me confundam com o corajoso alfaiate que em 1371 ousou desafiar, em nome do povo, O Formoso e a futura rainha. Sou apenas um sonhador, digo eu, dos finais do século XX com endereço em Santa Maria das Júnias. São duas ruínas que se amparam, as minhas e as do mosteiro.
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