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01/10/16

CARTAS DE SANTA MARIA


(Miróbriga)

Santiago do Cacém, 30 de Setembro 

Sinto-me cansado, pelo que esta será uma carta breve. De tanto verem, os olhos já não conseguem exprimir-se em palavras. Atravessei o Alentejo sob um calor tórrido, o que me fez lembrar Juan Rulfo no conto sobre Pedro Páramo quando o almocreve Abundio diz ao narrador que em Comala o calor é tão abrasador que os que ali morrem e vão para o inferno levam um agasalho para se protegerem. Escolhi sempre o fim da tarde e a madrugada para caminhar. Evitava as labaredas do sol e espantava-me com a luz da paisagem, com as cores do silêncio e a suavidade dos sons. Cheguei a percorrer a estrada de noite para ver esse esplendor de estrelas desenhando galáxias, mundos infinitos, enchendo o céu e os nossos olhos. A fantasia transformada em êxtase. Santiago não me entusiasma, mas vim à procura de Miróbriga. Todos os dias percorro o quilómetro que me leva até às ruínas e deixo-me vadiar a aguardar pelo crepúsculo. Reflicto sobre o Império, sobre os impérios. A grandeza a desmoronar-se no fim do ciclo. Roma surge do quase nada, mas o espaço evolutivo onde cresce, dá-lhe dimensão como quem ganha asas. Criou instituições, organizou o que podemos chamar uma forma de Estado e militarizou a defesa. Em redor, os povos estavam retidos pelo tempo e esse tornou-se o factor decisivo. Quinhentos anos depois o Império sucumbia às mãos das tribos bárbaras. Não, Roma não foi conquistada, simplesmente caiu por si própria, desintegrou-se por esgotamento do sistema de poder, económico e político. Nos últimos cem anos, tudo se desagregava, desde as instituições, o sistema de valores, a ordem social. Ruiu com o estrondo de um iceberg no fim da Primavera. Com a sua queda, arrastou o mundo mediterrânico a norte e a sul. Tombaram os homens, mas as estruturas, aguentaram-se. Os povos que chegaram, compreenderam que do reaproveitamento, resultaria o seu próprio enriquecimento. Miróbriga, como tantas outras ruínas imperiais, ajudam a compreender os saltos civilizacionais que ocorrem em certos espaços, repetindo-se noutros. Procuro a sombra dos cedros e deixo que a memória vá com o olhar na procura do passado. A História, permite-nos essa viagem analítica através do tempo. As pedras testemunham a vivência humana, pois o estudo da história é sempre a vida dos seres humanos. Fazem parte e constroem a história. Como tantas vezes ocorre, espreitar o passado, seja o mais longínquo ou o mais próximo, torna-se num auxiliar precioso para a compreensão dos gestos, das atitudes, das acções humanas. Olhando os tempos pretéritos, interrogo-me se, como expressou Pessoa, evoluímos ou apenas viajámos. Roma moribunda parece repetir-se no presente, com a pretensa civilização branca, assediada pela servidão periférica, com as instituições estremecendo, a estrutura económica imobilizada, os exércitos desvairados, o sistema de valores em mutação profunda e os avanços da ciência e da tecnologia, ao mesmo tempo que nos prolongam a vida, fazem-nos aproximar da possibilidade da extinção. Ao contrário de Roma, podemos prolongar-nos no espaço, mas se o Império pôde sobreviver ainda mil anos a oriente, creio que já não teremos a nossa Constantinopla. Há seis meses que não me aproximava do mar. Está a escassos onze quilómetros em linha recta, mas amanha regresso ao interior.

*Fernão Vasques


* Por favor, não me confundam com o corajoso alfaiate que em 1371 ousou desafiar, em nome do povo, O Formoso e a futura rainha. Sou apenas um sonhador, digo eu, dos finais do século XX com endereço em Santa Maria das Júnias. São duas ruínas que se amparam, as minhas e as do mosteiro.

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