(Alcázer de Toledo) |
Toledo, 31 de Maio
Escrevo ao fim da manhã já na saída da cidade. Na Ronda de Toledo, no Mirador del Valle com os 19º que a temperatura já alcançou deixo o olhar pousar sobre o centro histórico, enquanto o pensamento percorre o passado procurando respostas que não existem. Choveu na travessia da Guadarrama. Chuva e frio levaram-me a memória até aos anos medonhos da Guerra Civil, da resistência em plena sierra. Creio que essas lembranças me magoaram a alma e geraram esta quase anestesia com que percorri as calles toledanas e ainda me deixa o olhar postado nas pedras centenárias caladas na margem direita do Tejo. O espaço histórico é um labirinto de estreitas ruas e imensas praças. Na parte alta, majestoso, o alcácer, palácio fortificado com raízes numa antiguidade anterior à nossa era. Visto daqui, onde me encontro, aparece imponente, dominador, desafiando à altura da Catedral de Santa Maria, a casa de Deus. No primeiro olhar da história onde encontrei Toledo, as palavras falavam-me de uma cidade medieval de tolerância religiosa. Era um exemplo da época, mas sabemos como, por vezes, a história trai a realidade quando não a procuramos em profundidade, tanto mais que a ciência histórica evolui no seu conhecimento e no método de análise e compreensão, mesmo no campo tão inseguro como o das mentalidades. Reavivando a memória, desço à internet e o articulista escreve palavras de intolerância respeitante à presença muçulmana ao longo dos quase 400 anos que por aqui esteve. O meu pensamento sorri quando me ocorre a ideia de reconquista cristã. A Península, ao longo de quase dez séculos foi um espaço de passagem. Os romanos deixaram marcas mas, no declínio da sua presença, seguiram-se Alanos, Vândalos, Suevos e, por fim, os Visigodos. É possível que os hispano romanos fossem católicos, mas questiono-me sobre que catolicismo teriam encontrado os Visigodos no século V à sua chegada! E ainda mais me questiono se quando Recaredo I em 589 proclama o catolicismo como religião oficial o fez por crença ou movido por interesse de poder! Certo é que quando chegam os árabes em 715, os visigodos eram cristãos há pouco mais de cem anos, pelo que duvido imenso do seu fervor, tanto mais que é um facto que parece já não ter contestação que os árabes foram tolerantes com as populações que encontraram e nenhuma das religiões foi proibida ou coartada na prática da sua fé. Pagavam impostos, é certo, mas quem não os pagava? Isto são as minhas reflexões em devaneio nesta manhã temperada ao contemplar as pedras queimadas por um sol tórrido de Verão e por um frio agreste de Inverno e não o rigor das investigações e da análise histórica. De resto quanto à tolerância das religiões estamos entendidos até ao presente. Pode parecer estranho que os seres humanos elejam para seu exemplo um Deus perfeito, mas apesar dessa perfeição, o Deus não é igual para todos e, sobretudo, traçam para si próprios, na perseguição dessa perfeição, um caminho de martírio, de flagelados, de açoitados, aparentemente acreditando que só assim se abrirão para cada um, as portas majestosas do paraíso. E como é cómodo pecar seis dias e ser absolvido ao sétimo, para recomeçar de novo, sem que, em momento algum, corrijam os seus defeitos e vivam os valores éticos e morais do Deus que dizem acreditar. É certamente o pensamento fragilizado a levar-me por estas veredas perigosas da religiosidade. Acredito que Afonso VI quando entra em Toledo em 1085 terá sido mesmo tolerante com judeus e árabes, dizem até que era um rei culto, algo raro nos reis da chamada reconquista. Não deixo porém de pensar que a igreja de Santa Maria la Blanca é adulteração da anterior sinagoga entregue à Ordem de Calatrava no século XV, convertida em beataria para prostitutas no ano de 1550 por ordem do cardeal Siliceo, quartel no século XVIII, foi entregue já na segunda metade do século XX, à Igreja Católica, por esse excremento que deu pelo nome de Francisco Franco. Seriam ainda os magnânimos Reys Católicos a expulsar centenas de milhares de judeus e árabes como se o facto de estes povos terem permanecido 800 anos neste espaço ibérico não lhes concedesse direito algum. Afasto as minhas lembranças destas intolerâncias enquanto deixo o olhar vadear pela grandeza gótica da Catedral de Santa Maria de Toledo, considerada a obra magna do gótico no espaço do Estado espanhol, engrandecida pela capela moçárabe e a arte mudéjar. Hesito entre a beleza do gótico e da arte árabe. É um fascínio quando ambas se complementam e se completam sem atropelo. Foi com imensa curiosidade que entrei no Museu da Espanha Mágica. Tenho uma visão negra daquilo a que chamamos Espanha. Talvez o horror da inquisição ou as mentes diabólicas de uma Direita política que mais do que conservadora, é intolerante, violenta e miserável, nascida dessa guerra monstruosa que gerou um milhão de mortos e cujo poder ditatorial cresceu ao abrigo de consignas como «Viva la Muerte». É interessante o espólio do museu. Como nos dizem à entrada, é uma viagem no tempo do sagrado e do profano. Objectos, símbolos e marcas que balizaram as mentalidades do ser hispânico ao longo do tempo. Toledo é uma cidade onde nos podemos perder em sucessivas visitas e descobertas. Preferi a observação, a tentativa de reconstrução imaginária do Homem medieval no labirinto da história, nessa tentativa de compreensão da vida. Talvez por isso, ainda por aqui esteja, sentado, olhando, num aparente desleixo contemplativo, o núcleo histórico e memorial desta cidade nas margens do Tejo, tentando sentir o pulsar da História, e o evoluir da vida nessa permanente batalha entre o delírio do sangue e a magia do sonho. É tempo de partir que a temperatura promete chegar aos 25º até às 16:00 e torna-se então mais difícil caminhar. Rumo para oeste em direcção à fronteira.
Fernão Vasques*
* Por favor, não me confundam com o corajoso alfaiate que em 1371 ousou desafiar, em nome do povo, O Formoso e a futura rainha. Sou apenas um sonhador, digo eu, dos finais do século XX com endereço em Santa Maria das Júnias. São duas ruínas que se amparam, as minhas e as do mosteiro.
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