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01/06/16

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CARTAS DE SANTA MARIA

(Alcázer de Toledo)


Toledo, 31 de Maio 

Escrevo ao fim da manhã já na saída da cidade. Na Ronda de Toledo, no Mirador del Valle com os 19º que a temperatura já alcançou deixo o olhar pousar sobre o centro histórico, enquanto o pensamento percorre o passado procurando respostas que não existem. Choveu na travessia da Guadarrama. Chuva e frio levaram-me a memória até aos anos medonhos da Guerra Civil, da resistência em plena sierra. Creio que essas lembranças me magoaram a alma e geraram esta quase anestesia com que percorri as calles toledanas e ainda me deixa o olhar postado nas pedras centenárias caladas na margem direita do Tejo. O espaço histórico é um labirinto de estreitas ruas e imensas praças. Na parte alta, majestoso, o alcácer, palácio fortificado com raízes numa antiguidade anterior à nossa era. Visto daqui, onde me encontro, aparece imponente, dominador, desafiando à altura da Catedral de Santa Maria, a casa de Deus. No primeiro olhar da história onde encontrei Toledo, as palavras falavam-me de uma cidade medieval de tolerância religiosa. Era um exemplo da época, mas sabemos como, por vezes, a história trai a realidade quando não a procuramos em profundidade, tanto mais que a ciência histórica evolui no seu conhecimento e no método de análise e compreensão, mesmo no campo tão inseguro como o das mentalidades. Reavivando a memória, desço à internet e o articulista escreve palavras de intolerância respeitante à presença muçulmana ao longo dos quase 400 anos que por aqui esteve. O meu pensamento sorri quando me ocorre a ideia de reconquista cristã. A Península, ao longo de quase dez séculos foi um espaço de passagem. Os romanos deixaram marcas mas, no declínio da sua presença, seguiram-se Alanos, Vândalos, Suevos e, por fim, os Visigodos. É possível que os hispano romanos fossem católicos, mas questiono-me sobre que catolicismo teriam encontrado os Visigodos no século V à sua chegada! E ainda mais me questiono se quando Recaredo I em 589 proclama o catolicismo como religião oficial o fez por crença ou movido por interesse de poder! Certo é que quando chegam os árabes em 715, os visigodos eram cristãos há pouco mais de cem anos, pelo que duvido imenso do seu fervor, tanto mais que é um facto que parece já não ter contestação que os árabes foram tolerantes com as populações que encontraram e nenhuma das religiões foi proibida ou coartada na prática da sua fé. Pagavam impostos, é certo, mas quem não os pagava? Isto são as minhas reflexões em devaneio nesta manhã temperada ao contemplar as pedras queimadas por um sol tórrido de Verão e por um frio agreste de Inverno e não o rigor das investigações e da análise histórica. De resto quanto à tolerância das religiões estamos entendidos até ao presente. Pode parecer estranho que os seres humanos elejam para seu exemplo um Deus perfeito, mas apesar dessa perfeição, o Deus não é igual para todos e, sobretudo, traçam para si próprios, na perseguição dessa perfeição, um caminho de martírio, de flagelados, de açoitados, aparentemente acreditando que só assim se abrirão para cada um, as portas majestosas do paraíso. E como é cómodo pecar seis dias e ser absolvido ao sétimo, para recomeçar de novo, sem que, em momento algum, corrijam os seus defeitos e vivam os valores éticos e morais do Deus que dizem acreditar. É certamente o pensamento fragilizado a levar-me por estas veredas perigosas da religiosidade. Acredito que Afonso VI quando entra em Toledo em 1085 terá sido mesmo tolerante com judeus e árabes, dizem até que era um rei culto, algo raro nos reis da chamada reconquista. Não deixo porém de pensar que a igreja de Santa Maria la Blanca é adulteração da anterior sinagoga entregue à Ordem de Calatrava no século XV, convertida em beataria para prostitutas no ano de 1550 por ordem do cardeal Siliceo, quartel no século XVIII, foi entregue já na segunda metade do século XX, à Igreja Católica, por esse excremento que deu pelo nome de Francisco Franco. Seriam ainda os magnânimos Reys Católicos a expulsar centenas de milhares de judeus e árabes como se o facto de estes povos terem permanecido 800 anos neste espaço ibérico não lhes concedesse direito algum. Afasto as minhas lembranças destas intolerâncias enquanto deixo o olhar vadear pela grandeza gótica da Catedral de Santa Maria de Toledo, considerada a obra magna do gótico no espaço do Estado espanhol, engrandecida pela capela moçárabe e a arte mudéjar. Hesito entre a beleza do gótico e da arte árabe. É um fascínio quando ambas se complementam e se completam sem atropelo. Foi com imensa curiosidade que entrei no Museu da Espanha Mágica. Tenho uma visão negra daquilo a que chamamos Espanha. Talvez o horror da inquisição ou as mentes diabólicas de uma Direita política que mais do que conservadora, é intolerante, violenta e miserável, nascida dessa guerra monstruosa que gerou um milhão de mortos e cujo poder ditatorial cresceu ao abrigo de consignas como «Viva la Muerte». É interessante o espólio do museu. Como nos dizem à entrada, é uma viagem no tempo do sagrado e do profano. Objectos, símbolos e marcas que balizaram as mentalidades do ser hispânico ao longo do tempo. Toledo é uma cidade onde nos podemos perder em sucessivas visitas e descobertas. Preferi a observação, a tentativa de reconstrução imaginária do Homem medieval no labirinto da história, nessa tentativa de compreensão da vida. Talvez por isso, ainda por aqui esteja, sentado, olhando, num aparente desleixo contemplativo, o núcleo histórico e memorial desta cidade nas margens do Tejo, tentando sentir o pulsar da História, e o evoluir da vida nessa permanente batalha entre o delírio do sangue e a magia do sonho. É tempo de partir que a temperatura promete chegar aos 25º até às 16:00 e torna-se então mais difícil caminhar. Rumo para oeste em direcção à fronteira.  

Fernão Vasques*

* Por favor, não me confundam com o corajoso alfaiate que em 1371 ousou desafiar, em nome do povo, O Formoso e a futura rainha. Sou apenas um sonhador, digo eu, dos finais do século XX com endereço em Santa Maria das Júnias. São duas ruínas que se amparam, as minhas e as do mosteiro.














O CHEIRO DA HORTELÃ


Mário Martins



https://www.google.pt/imgres?imgurl=http%3A%2F%2F4.bp.blogspot.com%2F


“Morrer é mais difícil do que parece”*
Paulo Varela Gomes 
10 de Abril de 2015




O texto de Paulo Varela Gomes, escrito já em pleno agravamento do seu estado de saúde, é um extraordinário testemunho sobre a vida, o sofrimento e a morte; também sobre o amor e a dedicação, em que sua mulher, Patrícia, ocupa um lugar central. Mais do que pungente é um lúcido relato sobre a tragédia e, no fundo, a incompreensibilidade da condição humana. Tem-se a sensação, ao lê-lo, que sempre, de algum modo, se experimenta ao entrar num templo ou num cemitério: a sensação de corte com o ruído e a velocidade da vida quotidiana. Ele coloca tantas questões que é difícil escolher uma ponta. Por todo o texto perpassa o exercício da vontade nas circunstâncias mais adversas: na recusa de devastadores tratamentos químicos e radioterápicos para uma esperança de vida de poucos meses; na decisão de morrer em casa; na escolha da homeopatia à qual, nas suas palavras, “devo a qualidade dos mais de mil dias de vida que levo de vantagem sobre os médicos oncologistas”; na decisão de suicídio face a um posterior agravamento do estado de saúde; finalmente, na decisão de se apegar à vida. Mas, como em geral acontece, a este exercício da vontade não foram alheios factores condicionantes: o acaso do cheiro da hortelã-pimenta que, combinado com um raio de sol, esvaziou, no último momento, a vontade de premir o gatilho; e a fé religiosa, no caso a cristã, que justificou um fim de vida sofrido. Por mim, só posso dizer que nunca mais olharei da mesma maneira para a hortelã-pimenta que tenho no quintal…  


*http://www.caritas.pt/site/lisboa/index.php/destaques-principais/620-morrer-e-mais-dificil-do-que-parece-o-texto-de-paulo-varela-gomes


  


ESPELHO MEU, ESPELHO MEU, HÁ PRESIDENTE TÃO BOM COMO EU?

Mário Faria




Ando rapidinho, normalmente e se as atrozes me deixarem. Fui ao cinema. Atravessei ruas a fugir dos carros, apesar das zebras, sprintei para o autocarro para não ter de esperar 30 minutos pelo próximo, comi apressadamente uma sandes porque a sessão começava às 13,15h: vi o filme acompanhado de um parceiro que na fila de trás atendeu uma série de chamadas que teve o bom senso de remarcar para o intervalo. O filme era bastante interessante, mas não fugia à moderna tendência de ter de ser rápido e cheio de acção: imagens e diálogos corriam cheios de pressa, como se todas decisões tivessem de ser para ontem. A urgência tomou conta do quotidiano e o cinema apanhou o comboio, desvalorizando a arte do silêncio e do recolhimento, capaz de ajudar a pensar sobre as coisas e questionar as ofertas do pronto-a-vestir. A sabedoria tem de se expressar a um ritmo intenso e a arte como se obriga a acompanhar essa pressa (e pressão), sob a pena de perder actualidade. E os que se servem das legendas, passam um martírio para entender o enredo e acompanhar a qualidade da realização e o trabalho dos actores. Os homens importantes andam depressa e os políticos não podem parecer vagarosos. Tal, retirar-lhes-ia credibilidade: são sinais exteriores de fragilidade na liderança e de incapacidade para a tomada  de decisões. 

O actual Presidente da República, segue a vertigem e não pára. O homem está em todas. Despreza a máxima de quem muito aparece, muito aborrece. A política de proximidade e o tom afectivo como se relaciona com o bom povo português, tem resultado e tornou-o imprescindível como mediador no confronto entre direita e esquerda ou entre Costa e Passos. Sabe que, de momento, é o último reduto para o regresso da direita ao poder. Foi a Berlim, com a corda na garganta, pedir perdão e misericórdia. O presidente é bipolar. Além disso, é hipocondríaco e faz da ocupação a terapia para combater a doença. Dorme poucas horas, depressa e não tem vida privada. A presidência da república é una espécie vacina. E como tem resultado:nunca andou tão feliz. E se não há casos, inventa factos. O povo agradece. Vai ficar na história, como o presidente-monarca. Pela minha parte, deixei de ter paciência para o aturar.

Cristas seguiu o guião: visitou igualmente a capital alemã para pedinchar o mesmo e garantiu que se Costa se portar bem, no futuro próximo, não haverá sanções. Recente no comando do CDS, não poupa gritos para se fazer ouvir. E tentar impor-se. O Opus Dei está bem representado e agradece os bons ofícios.  

A política educativa em geral e os contratos de associação em particular, o aumento dos combustíveis, a economia, a quebra das exportações e Centeno, serão os principais alvos, a esta distância, da direita nas eleições autárquicas de 2017. O companheiro Assis já se posicionou para animar a constituição de uma ampla coligação de centro direita, para acabar com os bolcheviques, de vez. Mas se a esquerda deve estar preocupada com a Marcelo-dependência ao permitir e apoiar a intervenção do Presidente em áreas que o Governo deveria liderar, sem hesitações, a direita (ou parte dela) está a ver o filme e não está tranquila: teme que com um governo frágil (como o actual) Marcelo encontre o melhor cenário para reformular o papel de Presidente da República no sistema político português. Escreve João Miguel Tavares a este propósito: “Preparem-se: ou muito me engano, ou a presidencialização do regime já começou”.



O MUNDO DOS RELÓGIOS

antónio mesquita

The Clockwork Universe: Isaac Newton, the Royal Society (...)




"Todos ou quase todos aceitámos a ideia da máquina universal newtoniana como expressão da verdadeira imagem do Universo e a encarnação da verdade científica, pois, durante mais de duzentos anos, foi esse o credo comum, a 'communis opinio' da ciência moderna e da humanidade esclarecida."
(Alexandre Koyré)

A ideia de uma 'máquina universal' ofende os ouvidos modernos, quanto mais não seja, porque não co-existe, desde há muito, com a crença no Grande Relojoeiro. Um 'relógio' desses entregue a si próprio e funcionando com a corda que só Deus sabe quem lha deu é um portentoso absurdo.

No entanto, tal crença guiou um interminável cortejo de cegos, ao longo de 'duzentos anos', para o barranco em que hoje nos encontramos.

Podia ter sido de outro modo? Ou segundo uma lógica, também devedora do hegelianismo, de esquerda ou de direita, depois da tese da religião natural dever-se-ia ter seguido, como seguiu, a antítese do materialismo ingénuo (e até mecânico) aplicado ao Cosmos?

Se a ciência moderna e a 'humanidade esclarecida' têm sido, em toda a linha, fiéis à Crítica da religião natural (ou à sua antítese abstracta, como pensava já o pai da sociologia, Auguste Comte), parece estar por cumprir a famosa 'síntese' da 'Lógica'. O mesmo não se poderia dizer, com igual certeza, da etapa positivista da primeira sociologia. Porque - não é verdade? - nunca acreditámos tanto nos factos como neste nosso tempo dominado pelos meios de comunicação, apesar de, ao mesmo tempo, nos termos vindo a confrontar com a sua crescente 'fabricação' e irrealidade.

O que sobressai deste tempo de espera pela nova Síntese (dando de barato que aquela que foi imaginada por Marx para o sistema capitalista foi a primeira), e em relação à ciência depois de Einstein, é que, segundo Oliver Sacks ("Awakenings"): "(...) é neste ponto, enquanto procura aqui e ali, com tão dolorosa urgência, que pode ser levado a cometer um erro súbito e grosseiro; que pode (nas palavras de Donne) confundir 'a loja dos Boticários' com a 'Divindade Metafórica': um erro que o boticário ou o físico são tentados a encorajar." 


O QUE SE ESTÁ A PASSAR?

Manuel Joaquim

(Fernando Pessoa)


Os comentadores de serviço da dita comunicação social, os do costume, que tanto falam de política, como de economia e de futebol, ciclicamente, dizem sempre a mesma coisa, sobre o crescimento da economia, sobre o deficit, sobre as exportações, sobre o consumo interno, sobre os investimentos e sobre o que lhes vem à cabeça. Bombardeiam as pessoas com as décimas do “crescimento para cima” ou com as décimas do “crescimento para baixo”, comparando números de trimestres, utilizando uma linguagem carregada de comentários ideológicos para servirem os seus interesses e, principalmente,  de quem lhes paga.  

Sobre os gravíssimos prejuízos que a economia nacional e a economia europeia estão a ter em consequência da retaliação da Rússia às políticas europeias para com aquele país, apesar das movimentações de altos dirigentes da EU e de vários países para tentarem acabar com a política de sanções, esses comentadores não dizem nada.  Entretanto a Rússia vai prolongar a retaliação por mais dois anos. 

Há uns tempos atrás, os mesmos comentadores, juntamente com os banqueiros, diziam que   a banca nacional estava toda sólida, não precisava de ser capitalizada,  fazia inveja à banca estrangeira, quase toda ela dirigida por irresponsáveis. 

O governo anterior, do PSD/CDS, teve os valores disponibilizados pela troika para capitalizar os bancos, mas só alguns  é que se socorreram de parte desses valores, apesar de dizerem que estavam bem.

Entretanto, alguns bancos ficaram  pelo caminho, até que aquele que respirava saúde por todos os lados faliu. Muitas pessoas, muitas famílias, muitas empresas, muitas instituições perderam os seus mealheiros, os seus bens, os seus capitais, os seus investimentos, e milhares de trabalhadores perderam os seus postos de trabalho.  O último, o Banif,  seguiu o mesmo caminho, apesar do Estado deter mais de 60% do seu capital social. Agora é a CGD que precisa urgentemente de muito dinheiro, quando já se sabia há muito tempo das suas necessidades.

Os tempos que estamos a viver são muito estranhos.

Onde se viu banqueiros, com importantes e graves responsabilidades na gestão directa da banca e de intervenção em todos os sectores da economia nacional, designadamente nos processos de privatização de sectores básicos e fundamentais para o crescimento do país, juntamente com outros, muitos ligados ao que chamaram Compromisso Portugal, que fugiam, todos eles,  a sete pés, quando ouviam falar em nacionalizações, defenderem a nacionalização de bancos?

O governo de Sócrates/Teixeira dos Santos, foi acusado, e bem, de condicionar a sua política a ciclos eleitorais. O anterior governo do PSD/CDS fez exactamente a mesma coisa para conseguir ganhar as eleições. Os problemas fundamentais  do  país  nunca  foram   tratados com responsabilidade e com inteligência.

Internacionalmente nota-se uma azáfama de dirigentes da EU, dos EUA, do Japão, do FMI,  com declarações de muita preocupação sobre a situação económica mundial e particularmente dos sectores financeiros dos respectivos países. 

O que se estará a passar que ninguém fala claramente? Como são governadas as nossas empresas, as nossas instituições associativas, culturais e desportivas? Quem as fiscaliza?

 Em 1925 deu-se o caso do Banco Angola e Metrópole com o famoso  Alves dos Reis. A Revista de Comércio e Contabilidade, de Junho de 1926, publicou um artigo de autoria de Fernando Pessoa, com  o título “A inutilidade dos Conselhos Fiscais e dos Comissários do Governo nos Bancos e nas Sociedades Anónimas”, que, pela sua actualidade, permito-me  transcrever.

“Escândalos ainda recentes, que se tornaram conhecidos do público através dos relatórios publicados no Diário do Governo, vieram pôr mais uma vez em evidência a inutilidade prática dos Conselhos Fiscais e dos Comissários do Governo – inutilidade reconhecida no estrangeiro pela substituição a essas entidades, realmente fictícias, de outras mais susceptíveis de se desempenhar do mister que a nossa legislação impõe àquelas. Os Conselhos Fiscais e os Comissários do Governo – aqueles mais do que estes – são pontos de apoio da confiança do accionista, que julga que neles encontra o controle da aplicação e a salvaguarda dos capitais que confiou ao Banco ou à Sociedade Anónima adentro, ou junto, da qual eles funcionam.

Reconhecendo as Sociedades Anónimas que a melhor forma de chamar o capital é a distribuição ruidosa de grandes dividendos, procuram frequentemente, por meio de lançamentos artificiais, encobrir um estado verdadeiro de pouco desafogo; publicam, para dar uma aparência de prosperidade, relatórios de prosa literária no fim dos quais os accionistas são definitivamente ludibriados pela confiança que lhe traz o inevitável «parecer» do Conselho Fiscal, com o costumado voto de louvor à Direcção, e a indicação aos accionistas que aprovem o Relatório de contas e a distribuição de dividendos que ele consigna.

Os accionistas aprovam tudo – umas vezes porque o dividendo é magnífico, outras porque simplesmente confiam na indicação que lhes é dada. E a Direcção e o Conselho Fiscal recebem os respectivos louvores. São homens hábeis, uns; são homens sérios, outros. Tudo está, pois, necessariamente certo.

Acontece, porém, que muitas vezes está errado. E é isso que os relatórios recentemente publicados põem em evidência.

Quando se cai na suspensão de pagamentos, os accionistas acordam. Mas, como esperavam que o Conselho Fiscal os acordasse, e o Conselho Fiscal dorme por natureza, acordam sempre tarde e perdem…não o comboio, mas o dinheiro. Há Sociedades Anónimas em que não acontece isto. Mas há porventura alguma Sociedade Anónima em que, tanto quanto o sabe o accionista, não possa acontecer isto? Que elementos tem o accionista para poder saber ao certo que isso lhe não pode acontecer? A prosperidade do Banco ou da Companhia? Mas a prosperidade é a que lhe é dada pelos dividendos, e que sabe ele se esses dividendos não são o seu próprio capital e o dos credores da Sociedade Anónima, em vez do lucro autêntico da prosperidade verdadeira de uma sociedade progressiva? Sabe o accionista ao certo se não é assim? Não sabe, porque aqueles elementos em quem delega a fiscalização, 1º não fiscalizam, 2º mesmo que fiscalizem, não sabem fiscalizar. Quantos são os membros dos Conselhos Fiscais que examinam a valer as contas da Sociedade Anónima? Quantos são os membros dos Conselhos Fiscais que têm as habilitações precisas, de contabilistas, para esse exame? Salvo casos excepcionais, os membros dos Conselhos Fiscais são escolhidos por serem homens sérios e de boa posição social. Não consta, porém, que a seriedade seja a contabilidade, nem que a boa posição social seja um curso intuitivo de guarda-livros.

Escolhem-se homens sérios para os Conselhos Fiscais. Mas os homens sérios podem ser estúpidos – há muitos-; os homens sérios podem ser confiados – há muitíssimos-; os homens sérios podem ser desleixados – há imensos -; e o accionista perde o seu dinheiro, sem que os homens muito sérios deixem de ser muito sérios, o que é uma consolação insuficiente para quem perdeu o dinheiro que fiou da fiscalização incompetente, se não inexistente, dos homens de muita seriedade.

Tudo isto, no fundo, é uma comédia sem graça. A Direcção de uma Sociedade Anónima é, por natureza, um conselho técnico de gerência; o Conselho Fiscal de uma Sociedade Anónima é, por natureza, um conselho técnico de fiscalização. A Direcção produz resultados; o Conselho Fiscal verifica esses resultados. E como os resultados se traduzem por números, isto é, por contas, parece que o Conselho Fiscal deve ser constituído por gente especializada no exame e conferência de contas. E parece também que o Conselho Fiscal deve ser constituído por gente suficientemente independente da Gerência para poder fiscalizar essas contas com independência. O que se faz entre nós? Elege-se um Conselho Fiscal de pessoas de probidade e incompetência e,  é claro, de pessoas em magnificas relações de amizade com a Gerência, e portanto com toda a confiança nela. Em resumo: o melhor fiscal dos actos de alguém é um amigo incompetente. É ou não uma comédia?

Dos Comissários do Governo nem é bom falar. ….”

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