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01/03/16

A RENOVAÇÃO

Manuel Joaquim



Na minha rua estão a demolir um prédio que me fez recordar tempos de menino. Era ali a padaria Âncora, do Senhor José, que tinha forno de cozer o pão a lenha, com muitas padeiras que, com as suas canastras à cabeça, bem carregadas com centenas de pães, logo pela manhã,   iam vender o pão pelas  casas das pessoas. Os padeiros e forneiros trabalhavam todo o dia.  De manhã coziam sêmea, bijou e cantos. De tarde coziam carcaças, bicos de pato e velhotes. Ao sábado era o dia das regueifas, grandes e pequenas. Recordo-me de ir à padaria sozinho  buscar o pão para casa. Foi dos primeiros recados que fiz para a minha Mãe.

Quem estava no negócio da padaria todo o dia era a esposa do Senhor José, pois este quase sempre saía, ora para o café ora para outras vidas. Tinham três filhas, mais novas do que eu. Viviam  no próprio prédio no primeiro andar por cima da zona da fabricação e do forno.

Numa parte independente do prédio, com entrada própria, vivia no primeiro andar o pai da Senhora, já muito velho, que usava sempre um chapéu preto que lhe dava distinção. Andava sempre carregado com uma grande pasta de cabedal. A sua actividade era fabricar, na sua própria habitação, graxa para o calçado que depois vendia na cidade pelos engraxadores e pelos mercadores, que vendiam solas e cabedais. Um dia, ao derreter as ceras, teve um incêndio com algumas consequências. A família, a partir daí, dificultou-lhe a continuação da actividade. Pouco tempo depois faleceu.

O filho mais novo de uma das padeiras, a Madalena, que morava na Ilha das Pulgas, o Edmundo, teve como padrinhos o Senhor José e a esposa. Era um menino da minha idade. Brincávamos juntos muitas vezes, jogando a bola, ao bate-fica, às escondidas, corridas de arco e até corridas com carros de madeira, juntamente com outros meninos. A escola primária foi a mesma para os dois.

Mas o que a demolição do prédio me fez lembrar foram os tempos de brincadeira na padaria quando utilizávamos, como carros, as canastras das padeiras, uns, dentro delas, outros a empurrar, para fazer corridas ao longo do corredor que ligava o estabelecimento ao local da fabricação, junto ao forno. Acabava quando alguém dava por ela.

Recordo-me das emoções que sentia ao ver as enormes batedeiras a misturar a farinha e a bater a massa que depois ficava em repouso para levedar. O padeiro a fazer da massa grandes bolas  para meter nas máquinas de cortar para fazer os moletes, com feitio de cantos, de bijou ou de  carcaças.  Com perícia, o forneiro colocava-os nas enormes pás de madeira que as metia no forno em chamas e descarregava-os de forma a não ficarem queimados. Passado pouco tempo a porta do forno era aberta e as pás entravam novamente, agora para tirar o pão cozido que traziam um cheiro maravilhoso. Algumas vezes, ainda o pão quente, mas não a escaldar, tínhamos direito a um.

Com o aparecimento do chamado pão-quente as padarias tradicionais deixaram de ser rentáveis. Apareceu uma cooperativa de padeiros na tentativa de criar condições de  sobrevivência  para  muitos. O senhor José foi um dos primeiros a entrar para a cooperativa, mas, no tempo, os resultados não foram positivos. A Âncora deixou de cozer pão e, entretanto,  foi desactivada. Hoje a cooperativa já não existe, apesar de manter o nome. Mas o senhor José, que também já não está cá, ainda teve tempo de voltar à actividade e criar uma casa de renome à saída da cidade, que é dirigida pelas filhas.

O prédio em demolição, que se encontrava abandonado, vai dar lugar a uma construção nova. É o progresso em toda a sua extensão. É a renovação da vida.



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