01/06/15
ESCAPADINHA
Mário Faria
Algures numa praia, em dia solheiro, de vento moderado e com o mar calmo, matava o tempo a observar o que se passava nas redondezas. Muita gente e imensos turistas misturados com pessoal da região. Foquei a minha atenção nos vizinhos ocasionais e na exploração que me era permitida quando ia dar umas braçadas rapidinhas, porque o mar rolava, fresquinho, fresquinho.
Na área do meu poiso, três famílias distintas:
1- um casal com quatro filhos, num território de 3 “assoalhadas” suficientemente espaçosas para conter uma enorme caixa térmica, três chapéu-de-sol e muita toalha generosamente espalhada pela areal para garantir um bom nível de conforto ao grupo que não era falador nem animado, salvo quando ia ao pote buscar mantimentos. Os pais eram exóticos, se atentarmos nas tatuagens que cobriam os corpos de ambos; os miúdos eram simpáticos e com um comportamento educado. A dada altura, o pai afastou-se e voltou muito tempo depois. Quando regressou, a filha mais velha perguntou-lhe: “Porque demoraste tanto, papi? Onde foste?”. O pai encolheu os ombros; a mãe explodiu e mandou-o (supostamente) foder: foi a única palavra que consegui perceber naquele castelhano super-rápido da senhora furiosa. Depois disso, a normalidade voltou.
2- mais abaixo, uma família imensa com uma dúzia de pessoas, comandada pelo patriarca, espalhou-se também por uma vasta área para cobrir todo o pessoal e demais convidados que foram chegando, bem como o mobiliário para montar a “casa” da praia. O chefe da banda, sentou-se na sua cómoda poltrona indiferente ao bulício da ganapada e das palradoras mulheres que o acompanhavam, e aproveitou o tempo para comer amendoins ou coisa semelhante e só por uma vez mereceu a atenção de uma jovem que o encheu de creme solar, apesar de ter estado sempre à sombra. Passei perto, por coincidência ou talvez não, e pude observá-lo melhor: idoso, moreno, bem-parecido, cabelo branco, cuidadosamente penteado e um olhar frio e distante. Um solitário ou um homem só? Mais tarde, um jovem casal chegou à tenda e cumprimentou-o: ele com um beijo respeitoso na mão? Fiquei a pensar se seria, afinal, um padrinho lá do sítio, reformado. Gostaria que fosse na medida que enriqueceria o imaginário de um escapadinha, demasiado rotineira.
3- um trio alemão, um homem e duas mulheres: eram criaturas avantajadas e sem medo da exposição ao sol; conversavam muito alto e não poupavam na cerveja. O homem enorme e vetusto para além de beber, disse quase nada; as duas mulheres em monoquíni conversavam alegremente, detonavam gargalhadas a todo o momento e davam a ver os rostos feios e os corpos em que era muito complicado desvendar onde acabavam as mamas e começava a barriga. Louve-se a coragem de quem se desnuda, apesar da fealdade. Depois de uma ligeira pausa para reabastecimento de cerveja, sossegaram e adormeceram ao sol, na paz do senhor. E, para nosso sossego, assim ficaram até darmos corda aos pés.
Foi boa a coscuvilhice, para final de festa. Saímos bem antes do fecho da praia, porque nesse dia, ao fim da tarde, regressávamos, num voo da Ryanair. Lotação esgotada e muito corpo bronzeado. Foi um voo excelente e animado. Muita rizada e gritos de crianças, mais compras que o habitual, palavras e gestos de alguns cromos grosseiros, nada que a tripulação não ultrapassasse com bom senso e óptima disposição. Enfim, como é bom voltar.
CARTA DE VIAGEM AO TEU PAÍS
Quando cheguei à fronteira do teu país, acolheram-me com palavras que continham o sabor aromático das especiarias mais desejadas e com que deliciamos as melhores ementas. A carta que levava como orientação logo se revelou inútil. Não que estivesse desactualizada, mas compreendi que o território onde habitas tem lugares que não constam de nenhum mapa, apenas existem nos olhares daqueles que sabem amar. Mais do que um roteiro, necessitava de perceber os sinais que me podiam levar a um património coberto com manto de seda que esvoaça com essa brisa que nas tardes calmas acolhe os nossos cansaços tardios. Desisti de um itinerário, da escolha de um destino. Preferi seguir no prazer dessa onda com que nos atraem os recantos imperceptíveis dos lugares, a melodia dos espaços onde habita, quantas vezes, refugiada a ternura. Segui para norte, onde as pequenas montanhas do rosto desenhavam um sorriso aberto, amplo, apelativo, como se incendiassem as manhãs em que o sol, preguiçoso se ergue no horizonte transportando energia duplicada. Como foi difícil passar por aquelas elevações com linhas de rosto, por aquele sorriso! Prossegui nessa ânsia de tudo conhecer, como se fosse possível à observação deixar algo por contemplar, tanta a beleza que surgia a cada curva daquela estrada, como se fosse impossível, voltar de novo a olhar, para reinventar o já conhecido. Os lugares descobrem-se continuadamente, a cada nova observação, para que nunca se esgote o que nos seduziu. A descoberta do teu país deve ser como a dos espaços amados, um caminho sem fim e sem destino, em que a cada jornada, saibamos encontrar o que, já visto, proporcione novos prazeres. Com a alma aberta, acampei na imensa baía do olhar do teu país. Na serenidade dos dias encontrei o descanso que procurava. Havia mar, azul, cristalino, navios de sonhos voando nesse oceano que transbordava de pureza, e um rio, desaguando em delta, como uma mão estendendo os dedos para as águas que o recebiam. Os pássaros chegavam pela tarde e espalhavam-se pela marginal entre o sorriso e o olhar. Rumei então às planícies quentes que se abriam no território a sul desse teu país. Ondulantes, silenciosas, sedentas da água que sobrava a norte e ficava retida nas florestas quase virgens onde me perdi em noites sem luz, guiado apenas pelo luar crescente que me protegia e guardava dos medos nocturnos e das aves malignas que nidificavam nas muralhas sombrias de castelos há muito derrubados. O meu olhar perdeu-se então entre as montanhas e os bosques centrais e só o apitar agudo de um comboio que já não passava me acordou desse estremecer feliz que encontramos nos país que atravessamos aos quais só conhecíamos ao longe, em imagens que a imaginação engrandecera. Há países assim, que nos entontecem a alma só pela contemplação distante da sua geografia e da sua beleza e quando um dia por eles viajámos, compreendemos que a idealização aparece superada pela realidade observada. Entre silêncios eremitas e rios solitários, cheguei por fim ao sul extremo do território do teu país, onde se juntam as estradas e caminhos e ao ver o espaço percorrido, os lugares visitados, tive esse pressentimento viajante, do recomeçar de novo, na descoberta do muito que ficou por ver e das delícias ainda por encontrar. Agora já tenho um mapa do teu país, preenchido de olhares e de sonhos ansiados, e os meus dedos suavemente percorrem as estradas do seu corpo e em cada lugar de observação, admiro de novo o que já vi e procuro em cada recanto, o que ainda não encontrara, para que as mãos sintam e os olhos não esqueçam. A nave que me leva corre agora estremecidamente pela longa pista do aeroporto e sinto a potência das turbinas a romper a gravidade terrena. Vou sobre a asa, de olhos fechados, a voar sobre o teu país.
Afonso Anes Penedo.
QUESTÕES DE UMA EXPOSIÇÃO
Mário Martins
Iguana-marinha. Galápagos, Equador. 2004.
http://www.expogenesis.pt/
É admirável a exposição “Génesis”, a decorrer até Agosto no edifício da Cordoaria Nacional, em Lisboa. As fotografias de Sebastião Salgado são extraordinárias.
Em causa está a relação da humanidade com a natureza. Quase metade do planeta continuará intocada pela acção humana, mas teme-se o pior dessa acção.
Não é fácil falar da natureza e da nossa relação com ela. O dicionário de filosofia de Jacqueline Russ refere que é “um termo polissémico e, frequentemente, equívoco”, e o dicionário da língua portuguesa Houaiss apresenta nada menos do que 18 significados para o vocábulo.
Quando falamos da natureza que podemos mudar assumimos que estamos fora dela, que lhe somos estranhos, e que somos culpados se lhe fazemos mal, mas quando falamos da natureza enquanto universo, ou enquanto ordem universal, estamos dentro dela, somos, como as iguanas, produto dela, nessa medida não sendo responsáveis, em última análise, pelo bem ou mal que façamos. Nesta perspectiva, os defeitos da espécie humana passam a ser defeitos da natureza e o bem e o mal qualidades naturais. Esta é uma conclusão perigosa mas logicamente necessária.
Parafraseando Marx, a história da vida na Terra é a história da luta de espécies ou, dito de outro modo, a história da extinção de espécies*. Recém-“chegados” ao planeta, os seres humanos são, porém, uma espécie de novo tipo para a qual não há padrão nos cerca de 3.600 milhões de anos de vida que estão para trás. Em todo o caso a nossa história, recheada de violência e destruição ambiental, justifica todas as cautelas, apesar de o nosso livre-arbítrio ser mais aparente do que real.
*“É um fenómeno curioso que a morte das espécies na Terra seja, no sentido mais literal, um modo de vida. Ninguém sabe quantas espécies de organismos já existiram desde que a vida começou (…) Seja qual for o total, 99,99 por cento das espécies que alguma vez viveram na Terra já não estão entre nós (…) No que respeita aos organismos complexos, a duração média de vida de uma espécie é apenas de uns quatro milhões de anos (…).
Bill Bryson, in Breve História de Quase Tudo. Quetzal Editores.
PÉGASO MECÂNICO
T.E.Lawrence |
"O trágico deveria ser como um grande pontapé na infelicidade."
(T.E. Lawrence)
Camus, que faz a citação, confronta-a com o 'comunismo aristocrático' do autor de "Os Sete Pilares da Sabedoria". Esta mescla, na aparência contraditória, é, de facto, o segredo do nominalmente agente dos serviços secretos. A 'causa árabe' não surge nele como um instrumento, o que seria, sem dúvida, o caso num verdadeiro espião.
Para Lawrence, essa causa é como a côr da sua pele entre os revoltosos, o motor de um estranhamento junto dos seus. No final, o quer que se pense do sucesso da estratégia do 'Foreign Office' e do papel do tenente-coronel na sua missão secreta, a lenda de Lawrence da Arábia, lenda em grande parte encenada pelo próprio, suplantou a questão político-militar, por ter passado a fazer parte da imaginação dos povos.
Era interessante saber o que permanece desse mito, ou que conversão sofreu na religião política anti-ocidental de algumas nações árabes.
Lawrence acabou 'tragicamente'. Os anos que sobreviviu ao triunfo da causa árabe foram torturantes para este arcanjo da revolta, reduzido ao anonimato. A imagem do pontapé no destino não podia ser mais justa, perante a última tentativa de 'descolagem'.
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