StatCounter

View My Stats

01/03/15

CARTA A JOSÉ MATTOSO

(José Mattoso)

 

Estimado José Mattoso


As primeiras palavras desta minha missiva quase foram no sentido de dizer que lhe venho falar de História, mas uma braçada em falso, fez-me saltar o remo, neste caso a pena, e deixou-me a pensar, sobre como pode a minha infância no estudo da história pretender dirigir-se a um Professor Emérito para lhe falar de história? Desta vez a lucidez chegou atempada e, na verdade o que desejo escrever-lhe é um deleite encantado proporcionado pela leitura dos seus escritos. Persiste ainda a ideia de menorizar a História, o seu estudo, as conclusões das investigações em torno dos seus objectos. Como é difícil memorizar a história, as batalhas, as datas, os reis!, dizem. Quão longe de nós vai esta forma de estudo, mas como o estigma perdura. Como muito bem nos diz, «Hoje, o que é consistente em história, não são, portanto os factos, em si mesmos, mas a sua repetição». A crítica desgostosa pela investigação do passado, diz-nos que a história não é uma ciência, esquecendo que, como todas as ciências a investigação história tem uma linguagem, um método e um comprovativo, empírico é verdade, mas não deixa de ser uma confirmação, sobretudo, porque validada por fontes que resultam, pertinentes, suficientes e representativas. Falta-lhe esse elemento das ciências exactas de transformar em leis as conclusões, mas sobra-lhe a riqueza do comportamento humano, na sua grandeza e na sua miséria. Como escreveu na riqueza e sabedoria das suas palavras, «ficamos a saber não propriamente números exactos, mas certas ordens de grandeza» sem prescindir, como acrescenta, «que o texto histórico terá de ser rigoroso, objectivo e bem fundamentado.» É verdade que o meu Caro José Mattoso também diz que a história é mais um saber do que uma ciência, mas num sentido de representação de representações, mas isso, creio eu, porque a história não é apenas esse mergulhar no passado, na complexidade das relações humanas, na estrutura social e de poder, nos pilares institucionais, é necessário também reconstruir, encontrar os laços, os fios que unem e aqueles que se quebram e por esta razão, nos diz também «que a escrita da história é do domínio da arte», essa arte que nos ajuda e permite, escolher e tratar as fontes documentais, selecionar, interpretar, «descobrir o sentido enigmático de muitos textos,» como escreveu, encaminhando-nos para o que define como, «o sentido poético da História» e é no praticar deste sentido poético como fazendo parte dessa arte, que a História acaba por se distinguir no quadro do conhecimento humano. É possível que encontremos no descritivo de outras ciências, mesmo exactas como a Física, sobretudo no domínio do estudo do universo, essa capacidade de utilizar a poesia como descrição, utilizar a arte de interpretar as descobertas para uma explicação acessível, mas creio, estimado José Mattoso que é a História que utiliza a literatura com sentido poético para construir a descrição do que investigou e das conclusões que extraiu. E se dúvidas para mim houvesse o parágrafo que aparece no seu livro A Escrita da História, eliminavam-nas por completo. Ao explicar-nos o quanto a nossa atenção e observação devem estar concentradas no objecto e que este pode aparecer-nos nas mais variadas situações e fontes, fá-lo através de um naco de arte literária que não resisto a citar, «A apreensão do real em todas as suas facetas implica que ponham em jogo todas as faculdades de observação, não apenas as racionais, mas também as volitivas, o que corresponde a dizer que os sentidos do corpo e do espírito se deverão abrir de tal modo ao real, que ele seja como interiorizado, absorvido, captado em nós mesmos. Este exercício é, por isso, um acto de amor. Um amor na plena acepção da palavra, isto é, que não é contaminado pela tentação de possuir, dominar ou destruir, mas que mantém intacta a alteridade, a radical separação do sujeito e do objecto, e que tenta estabelecer a relação com ele através do verbo interior, em todas as suas dimensões: o cântico de admiração, o diálogo do gesto, a descoberta do símbolo, o desencadeamento da palavra poética.» A História como acto de amor, esse encantamento que nos leva a deixar o presente, viajar ao passado, procurando observar, interrogar, compreender, sem alterar o objecto de estudo, sem interferir, amar pela beleza e não pela posse como Umberto Eco nos fala na sua História da Beleza, «a Beleza grega é expressa pelos sentidos que deixam manter a distância entre o objecto e o observador: a visão e a audição mais do que o tacto, o paladar e o olfacto.» Certamente por tudo isto, a História tem essa distinção maior de trazer o passado ao presente, para uma melhor e mais aprofundada percepção do conhecimento e do acto de compreender a razão da viagem e como continuá-la.

Receba, estimado José Mattoso os meus cordiais cumprimentos,


Afonso Anes Penedo.

 

Sem comentários:

View My Stats