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01/06/13

COMPANHEIRO DE VIAGEM

Alcino Silva




“A harmonia e a paz, são é claro, situações precárias, vulneráveis, provisórias. Na nossa época parecem mais ameaçadas do que nunca. Muitos fenómenos do mundo actual produzem efeitos que, se não forem corrigidos por acções de sentido contrário, ameaçam a sobrevivência da Humanidade. Os mais graves resultam, em última análise, do excesso de poder nas mãos de uma pequena minoria de homens. Directa ou indirectamente, comandam as técnicas e utilizam-nas para acumular mais poder, indiferentes às consequências descontroladas do seu uso irresponsável.” (1)
Sempre apreciara viajar, esses momentos em que levamos o olhar de um lugar para o outro, procurando as diferenças, apreciando o contraste entre o que conhecemos e o que descobrimos e quando o fazia só, aproveitava para viajar também pelo interior de si próprio na procura incessante de respostas a perguntas que inventava. Quando tinha de escolher um meio de transporte, o comboio era o seu preferido. Assim fora naquela tarde que se aproximava do fim. Encontrada a carruagem, procurou o lugar na expectativa de conhecer quem se sentaria ao seu lado. Lá estava, junto à janela com olhar interrogativo e uma idade que já tinha avançado pela vida. Não parecia nervoso, apenas agitado como aquelas crianças que não conseguem manter os pés fixos no chão. Percebeu que a sua viagem não iria ser sossegada, no entanto, sentou-se e abriu um livro procurando concentrar-se na leitura. Ainda a composição não tinha adquirido velocidade quando uma voz ao seu lado comentou, «cá vamos, afastando-nos deste lamaçal». Insistiu na leitura fazendo supor que o comentário não o tinha como destinatário, mas segundos volvidos, a voz prosseguiu, «não acha que nesta cidade vive um poder putrefacto, manejado por uma canalha pérfida que dirige o país como salteadores?» Já não era possível continuar alheio, a afirmação pedia uma resposta, mas ainda assim, olhou apenas, deixando um sorriso a meio da intenção. «Para mim, a grande responsabilidade é desse cabeça de halloween com ar de idiota e cara de Magalhães Lemos que 23% dos portugueses colocaram no palácio dos descobrimentos.» Olhou de novo, muito mais atento, pois os comentários começavam a ter interesse e não resistiu ao acicate, «quem, o cara de néscio que não sabe distinguir um poema de um conto?». «Esse mesmo», foi a resposta pronta. Desta vez, a companhia prometia, pelo que deixou o ouvido expectante. O comboio rolava, sonolento pela planície ribatejana e quilómetros volvidos, a voz regressou, sem excitação, mas animada, aqui e ali com alguma melancolia. «Ai!, senhor para onde nos estão levando, já viu que puseram as nossas vidas a bailar sobre o abismo? Não se contentam em retirar-nos o futuro, roubaram-nos até a esperança! Quantas vezes me recordo daqueles dias frios de 1383. Tinha vindo a Lisboa nessa semana num barco de Bruges e naquela manhã espantosa quando subia para a alcáçova ouço aquele estribilho das gentes e os cascos do cavalo de Álvaro Pais esporeado até mais não. Que revolução aquela, senhor, quantos sonhos, quantos dias sem dormir, quantos trabalhos, mas acreditávamos em tudo e nada nos detinha na fantasia de homens livres. Então naquela noite nomosteiro de S. Domingos, Afonso Anes fez estremecer aquelaburguesia acobardada e a nobreza esponjosa que já se preparava para fugir para Castela. Foi aí que a conheci e não voltei a ser o mesmo. Pressenti-a antes de a ver. Vinha do bairro árabe e tinha a pele do rosto macia como a seda e o olhar era bordado com as cores do deserto e contemplá-la era como saciar a sede num oásis. E agora, veja o que fizeram de nós, neste fascismo democrático com que nos cercam, vivemos num campo de concentração das ideias». A leitura repousava pousada nas mãos e a sua atenção concentrava-se naquele discurso que lhe chegava em tom calmo, mas onde se sentia a revolta pelas injustiças que se cometiam. «Viemos naquela madrugada inesquecível, empoleirados em blindados que não sabíamos se chegavam a Lisboa, mas nada nos detinha, nada nos prendia. Eram só sonhos que viajavam connosco, o pensamento vinha carregado de um mundo novo para construir, e como pusemos mãos à obra». Nascia em si essa incompreensão do que parece não se ajustar e questionou, «mas então, esteve em 1383 e no 25 de Abril, quem é o senhor?». «Claro que estive e ainda vivi esses dias tristes e difíceis do Cerco do Porto, “sete flores de limão para lutar até vencer”, estive em todos os lugares, onde se erguia um mundo de liberdade, uma época de mudança, um espaço onde as quimeras que vivem na alma dos Homens desabrocham e crescem sem temor. O meu nome é Tempo e vivo na História, atravessando a história. Foi assim que estive presente nessa gesta libertadora do século XIV e naqueles gélidos dias de Dezembro, lutava com as mãos cheias de nada, construindo futuro e aquela mulher jovem foi o meu astrolábio nos caminhos a percorrer. Com o seu olhar, havia um espaço para mim no universo. Quantos não hesitaram como agora, acomodados, assobiando para o ar, fazendo que não é nada com eles, preparando-se para pactuar e encobrir o Andeiro. Finórios destes aparecem sempre ao longos dos tempos, veja só essa miudagem que se instalou no governo, não passam de patifes sem lei nem grei que fazem mergulhar os velhos no inferno da pobreza e da carência, na dependênciaservil, quebrando-lhes a dignidade de uma vida de trabalho e lançando-os nas filas da caridade, na pedinchice de uma sopa ou deixando-os morrer sozinhos. Dizem que naquela época cometemos excessos. Talvez, quando lançamos o bispo da torre, mas mereceu, como estes estão merecendo agora, pois como aquele, também nos vão vendendo para cuidar dos seus interesses e daqueles que lhes vão pagando». «Acha que isto vai acabar assim?», perguntou a medo. «Não sei senhor, mas com a paciência a esgotar-se, não sei se vai acabar bem, se não caírem da torre é bem possível que o chão vá ter com eles. O Mestre também estava indeciso e caso não lhe tivéssemos ajudado com aquele impulso era bem capaz de se ter ido embora, mas depois lá foi, e que geração nos deu, senhor, que ínclitos rapazes nos apareceram e os nossos sonhos desabrocharam Atlântico fora e só paramos no Pacífico. Que grande epopeia, senhor! E que proeza nos apresentam agora estes mercenários do dinheiro? Nenhuma, senhor, apenas sabem roubar e quando o saque não chega, apresentam-se de novo com novo plano de pilhagem. Para onde nos levam, senhor? Despediu-se de mim na Porta do Mar, naquela Lisboa que crescia e se preparava para se agigantar na Europa e ser conhecida no Oriente. Deixou-me um beijo que me fez dar a volta ao mundo. Não voltei a ver aquele olhar que me desfraldava as velas da alma e punha a navegar todas as minhas utopias. Ainda é a recordação da sua passagem que me vale neste tempo de maldade e perfídia, contínuo a vê-la e a senti-la como naquela noite nas portas de S. Domingos. Deixemos o comboio seguir, senhor que outros tempos virão, tenho a certeza». Assim fez. Procurou o livro para regressar à sua leitura, mas não conseguiu. Um olhar que saciava a sede, pensava. Até ele se teria perdido nessa revolução longínqua.  
“Que aconteceria se a circulação de bens cessasse e só houvesse acumulação, se o raciocínio matasse a emoção, se a Palavra deixasse de ser o fundamento da comunicação, se os senhores da técnica se convencessem de que podiam fazer o que Prometeu não conseguiu? Podemos deixar de «rezar na era da técnica»? renunciando por completo a fazer contas, é bom acreditar que merece a pena «Levantar o Céu», e lembrarmo-nos de que não estamos sozinhos. Felizmente há muitas mulheres e homens neste mundo a tentar unir esforços para manter o contacto entre o Céu e Terra. É esse o caminho que a sabedoria ensina a percorrer para encontrar a saída do labirinto em que a vida nos coloca.” (1)
(1) José Mattoso, in “Levantar o Céu – os labirintos da sabedoria

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