A pátria faliu, saiu da UE e, como um mal nunca vem só, foi dizimada por uma pandemia de tuberculose que abalou o país: devastado, sem técnicos, nem meios, vive-se uma situação de caos organizado em que a lei do mais forte impera, num território esquartejado, ao sabor da influência dos que têm o ouro e as armas. No espaço público (incluindo o virtual) dificilmente se distinguem os “bons” dos “maus”.
O Homem precisa urgentemente de sair em busca de um medicamento de que não pode prescindir.Como sempre, vai armado: a pistola, bem “colada” ao corpo, transmite-lhe alguma segurança, se seguir os trilhos recomendados como menos sujeitos à lei dos bandos armados que pululam pela cidade. Chegado à farmácia, encontra-a fechada, como habitualmente, porque não há medicamentos. Tem que recorrer ao mercado paralelo. O recolher obrigatório funciona a partir das 22 horas e, desde esse momento, a iluminação púbica é escassa e apenas nos múltiplos controlos distribuídos pela cidade é suficiente. O movimento é diminuto: os (poucos) carros passam a alta velocidade e não respeitam a sinalização. Os combustíveis são um bem demasiado escasso e o consumo sujeito a apertadas restrições. O Homem passa pelo controlo de Paranhos e, depois de identificar-se, segue para a gabinete do oficial de serviço, e lá encontra um velho amigo do peito que o recebe de braços abertos. Tal circunstância vale ouro nos tempos que correm. Não lhe concede o salvo conduto para poder circular àquela hora, porque representa um risco colossal. Em contrapartida, faz uma busca na net, estabelece um contacto por telemóvel e deixa-lhe um nome, a morada e “uma carta de recomendação” endereçada a um tal Saraiva que é o mais reputado vendedor de fármacos, mezinhas, drogas e afins e tem uma alargada influência no mercado negro. Sai levemente esperançado: amanhã, há sempre um amanhã, talvez consiga o que procura há tantos dias, se Deus ajudar e o Saraiva quiser.
O Homem acorda cedo, ainda o dia segue escuro. Levanta-se e prepara-se para ir em busca do loja do Saraiva: pelo endereço, e depois da pesquisa que faz, conclui que se localiza no Cidade do Porto. Está agitado, porque uma saída àquela hora mete medo. Toma um frugal pequeno almoço e na dieta não dispensa o café que lhe custa os olhos da cara. Está um frio intenso que se entranha pelas frestas da casa e que o aquecimento racionado não consegue disfarçar. Sai aconchegado por um sobretudo puído e caminha rapidamente, atento que nem um batedor e armado, como sempre. O comércio na zona alta raramente abre as portas e todos os edifícios estão trancados e gradeados. À medida que vai percorrendo a Rua da Constituição nota-se mais movimento de cidadãos a caminho do trabalho. Menos inseguro, vence o trajecto que lhe falta percorrer, tão próximo quanto possível de pequenos grupos que seguem o mesmo rumo. À medida que se aproxima da Rotunda da Boavista a cidade retoma a imagem do cosmopolitismo de antanho, o que lhe traz muita saudade e algum optimismo.
Cidade do Porto, Península e Bom Sucesso regurgitam de vida: são uma espécie de bazares,onde tudo se pode comprar, vender e trocar. Nessa zona, estende-se uma série de condomínios fechados onde vivem os poderosos, protegido pelo arame farpado e por homens bem armados na sua defesa.
O Homem entra receoso, mas encontra, finalmente, alguma luz no meio da penumbra de quem vive para sobreviver. Gente, bulício, prazer, riso, negociação eo ambiente amigo, emprestam-lhe um ânimo que sabe fugaz e, talvez por isso, deseja saborear demoradamente. Um enorme reclame luminoso identifica a loja do Saraiva e, para lá se encaminha. Um nervoso miudinho invade-o. É uma tenda enorme, com uma gama alargada de produtos e uma enorme área apenas dedicada àcomercialização de fármacos e produtos de higiene, o core business da SARAIVA OUTLET. Dirige-se àmoça, vestida a preceito com uma farda azul distintíssima, e apresenta-lhe a carta de recomendação que o chefe de posto lhe tinha passado. A pequena pede-lhe para esperar e, depois, encaminha-se para um gabinete fechado. A espera demora uma eternidade. Do gabinete não sai o Saraiva: quem se dirige ao seu encontro, com ar decidido e sorridente, é uma senhora muito elegantee bela que sabe conhecer de algum lado. À medida que se aproxima alarga o sorriso e já muito próxima, abre os braços e só então a reconheceu: deram um enorme abraço. Quem diria : Svetlana voltou, queenorme surpresa e que imensa alegria. Puseram a conversa em dia: o Homem falou das suas desgraças, a Svetlana das suas aventuras e como chegou cá. É companheira do Saraiva: pastor,comendador, presidente do Fórum Evangélico que apoia um conjunto alargado de programas sociais, orientados nos “bons costumes” recomendados peloEvangelho. É no quadro dessa intensa actividade, religiosa, social e política que desenvolve o seuimpério comercial em regime de monopólio, que domina com mão de ferro. Consegue o fármaco que o levou lá. Svetlana tem, para além das visíveis qualidades físicas, uma alma do tamanho do mundo: em nome do passado, promete-lhe o futuro. Ficaaberta a possibilidade de trabalho numa das muitas instituições que o Saraiva comanda. Quando a esmola é grande o pobre desconfia e o Homem aprendeu a gerir as expectativas com a maior prudência. Despede-se de Svetlana, prometendo voltar. Bisa o abraço: mais não fora, leva o sabor, o cheiro e as formas daquele corpo. Não tem dúvidas, havia de voltar.
Sai alegremente, mas rapidamente toma os cuidados habituais: não há territórios, seguros. No regresso segue um rumo idêntico do que tinha feito. Junta-se a um grupo de jovens que caminha alegre e despreocupadamente. Segue-os, mas deixa uma distância avisada. Um carro que circunda a Boavista em alta velocidade, trava a fundo, produzindo um barulho alarmante e dele saem quatro embuçados que disparam furiosamente contra o grupo quediscretamente acompanhava. Sente um forte impacto e cai. Sente um frio intenso e tem as mãos cobertas de sangue, Tenta levantar-se e não consegue. Uma enorme dormência invade-lhe o corpo. Pressente que foi gravemente ferido. Fecha os olhos, sonha com Svetlana e sorri. Adormece, sem saber que vai a caminho do nada.
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