Alcino Silva
Será
certamente um lugar-comum escrever que a sociedade humana é complexa, tanto pela
diversidade dos seres que a compõe como pela diferença dos interesses que os
movem. Essencialmente a partir do momento em que os grupos humanos se
sedentarizaram, criaram raízes e ergueram estruturas, essa complexidade
ampliou-se e teceu os fios de conflitos que não mais deixaram de se acentuar.
Ao mesmo tempo que organizava a vida em comum em espaços e territórios
definidos, criava disposições que separavam com clareza os que se encontravam
na posse dos bens e os termos em que os restantes podiam usufruir dos mesmos.
Nos momentos da história em que os avanços do conhecimento e o domínio do saber
impuseram, exigiram uma fractura na sociedade, ao nível da economia e da
política, a estrutura organizacional da comunidade alterou-se e mudou de certa
forma a relação entre os detentores do poder e os restantes. A cada nova
mudança, os direitos dos últimos evoluíam de forma positiva, mas o poder não
mudava de grupo, modificava-se apenas a relação entre ambos, existindo direitos
que passaram a papel escrito, pese embora nem sempre, ou muitas vezes, não se
cumprirem. Na última grande mudança histórica, as relações sociais voltaram a
sofrer alterações e nos últimos cem anos o grupo desapossado, adquiriu
capacidades de cidadania como antes a história não conhecera, mas o essencial
manteve-se inalterável, o poder permanece na posse de um grupo restrito de
pessoas que dele usufrui nos termos que decide e condiciona a vida dos restantes
de acordo com esse seu interesse. O desejo mais legítimo de um ser humano
consciente das suas responsabilidades e deveres é que a sua relação com os
outros assente um dia numa democracia que seja uma forma superior de
organização social, onde os interesses divergentes se coadunem com o dever
colectivo e prevaleça esse princípio imutável de que a liberdade de cada um
termina onde começa a dos outros. Por enquanto, nesta sociedade de fingimento
em que vivemos, a democracia, como a definiu João Pedro Mésseder num dos seus
últimos livros, não passa de um «regime que permite aos pobres escolher uma
entre várias servidões». É verdade que muita gente séria exulta de alegria com
a frase de Winston Churchill de que a democracia é o pior dos regimes, mas não
há outro melhor, contentando-se assim, e na aparência definitivamente, com a
frase desse aristocrata e conservador britânico que na vida nada fez que não
fosse viver do trabalho dos outros. Mas nesta democracia de aparências e de
interesses tão opostos é natural que cada grupo se organize para melhor se
defender na repartição da riqueza. Em cada actividade assim acontece. Os
trabalhadores unem-se em Sindicatos, os seus patrões em associações. Foi no
interior desta necessidade que terá um dia nascido uma entidade denominada
A.P.S.(1). Como é natural, sobretudo no tempo em que vivemos, para além de
organizar princípios e normas comuns para os seus associados, procura servir-se
do poder através de jogos de bajulação, de transferência de interesses, de
traficâncias espúrias, para que os seus intentos saiam beneficiados de alguma
forma e os seus lucros possam crescer sem qualquer contenção. Tem ainda como
missão, essa ingrata tarefa de aparentar que negoceia com os representantes dos
trabalhadores das suas associadas, um contrato de trabalho. Os sucessivos
presidentes desta associação simulavam todos, aquele ar sério de gente acima de
qualquer suspeita, rosto grave, fato a condizer, de preferência de marca que
não deixe dúvidas quanto à diferença de nível, distanciamento no falar.
Extraindo este visual, em quase todos eles, interiormente sente-se essa
ausência de dignidade que caracteriza aqueles que a tudo se ajustam em nome da
sua narcísica ambição. Mas a última escolha teve de ser apurada, para
corresponder aos sinais do tempo. Num momento em que se vive um criminoso
processo de concentração e acumulação de capital com origem na injusta
apropriação da mais-valia, na exploração, roubo empobrecimento e miséria dos
povos e das nações, num tempo em que se apregoa a necessidade de despedir como
forma de criar emprego ou de reduzir o salário mínimo como forma de combater o
desemprego houve a necessidade de nomear alguém que se encontrasse à altura e
sobretudo sem escrúpulos para abraçar este desafio. Certamente pelos seus
imensos méritos, foi apresentado como homem credível no sector, elemento mais
que abonatório para o lugar, pois se há algo que devem vestir as criaturas do
poder, é a credibilidade, sentimo-la no bafo quando se aproximam, vêmo-la
gotejar nas pequenas partículas de água que lhes afagam o rosto naqueles
momentos em que têm de tomar decisões que passam por algo parecido com
competência, atributo que os perturba, os enerva, pois com dificuldade
distinguem a estupidez da inteligência, mas escrevia sobre os seus extensos e
amplíssimos méritos, foi designada essa figura ímpar essa criatura entre o
entroncado e o gordito, com o colarinho da camisa a aparecer como elo
estrangulador da garganta, deixando a entender que a qualquer momento, a cabeça
se vai separar do resto, isto naquela admissão ingénua de que o resto tenha
cabeça. Figura de longo percurso, dessas caminhadas que, como eles dizem foram
feitas a pulso, o que quase sempre quer dizer com pés e mãos sobre os outros,
abraçou o lugar e essa missão de transformar as relações laborais numa mistura
de sujeição e servidão. Percebeu ou disseram-lhe, certamente disseram-lhe pois
não tem muito cara de quem entende seja o que for, que se vive o momento certo
para destruir o equilíbrio desejável em democracia, regulador da diferença de
interesses no interior do mesmo espaço. A este anafado Pedrinho pouco
interessou as questões de organização nas empresas, apenas lhe tocava na mente
esse desejo que há vinte anos atrás procurou impor aos trabalhadores da empresa
que acreditava dirigir, se encontrassem disponíveis, como ele, vinte e quatro
horas por dia. Foi este bombeiro que na mesa de negociações rasgou tudo o que
pudesse assemelhar consenso e certamente com o sopro da vontade dos que lhe
pagam requisitou a ajuda de um petit guru sindical, o qual, sabe-se lá a que
preço, se disponibilizou para esse assalto infame aos direitos daqueles que são
os verdadeiros e únicos criadores de riqueza. Consumado o esbulho, sentindo escorrer
uma baba gordurosa de prazer, nessa alegria que a impunidade concede aos tolos,
saíram ambos, o inefável economista e o petit guru, para a estrada para
mostrarem que o roubo que tinham acabado de produzir de comum acordo era um
manancial de bondade da parte patronal e para aqueles relapsos que pudessem ter
dúvidas, traziam no forro do casaco um prémio para atrair as almas. Habituado a
construir o seu mundo na mentira, pensava certamente que podia apregoar a
intrujice como banalidade e que todos o acreditariam. No entanto, iludiu-se o
Pedrinho e quando lhe chamaram o que sempre foi, aldrabão, remeteu-se cobardemente
ao curral de onde tinha saído, com orelhas baixas e palavra mansa. Há instantes
na vida que nem a gordura nem o tamanho tornam grandes as criaturas, os actos
que realizam mostram-nos a sua verdadeira dimensão. Este Pedrito faz parte
dessa insigne malta que enriqueceu fazendo mergulhar o país na miséria e acredita
que o mundo obsceno que defende terá uma vivência milenar, mas não passa de um
George Willis Jr. da sua actividade(2). Vai ver que se ilude, pois cada vez
mais se sente no ar essa pergunta romana de «até quando vais tu, Catilina,
abusar da nossa paciência?». Percebe-se no ambiente de euforia deste Pedrinho
que se sente como alguém que acaba de saltar de um avião sem para-quedas e
acredita que vai aterrar incólume ao som do Hino da Alegria de Beethoven. Vai
ver que se engana e quando pensar que vai começar a 9ª sinfonia, há-de
rebentar-lhe nas ventas o Dies Irae, do Requiem de Mozart.
(1)
A.P.S. – sigla de Associação dos Portugueses Safados. Safados não deve ser
entendido como sinónimo de apagados, esquecidos, ignorados, mas antes de safadeza
ou malvadez.
(2)
– Acredito que este Pedrocas não é criatura de ver filmes, prefere ver apenas
aquele que ele próprio realiza e no qual aparece como actor principal, mas se
um dia se dispuser a espreitar “Perfume de Mulher”, vai ver que facilmente
descobrirá esta personagem.
Importa
referir que o que acima se escreveu é ficção e que se coincidir com a realidade
é pura coincidência, embora se acredite que muita realidade se assemelha a
ficção e não é coincidência nenhuma.
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