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01/06/11

A REGRA DO JOGO

António Mesquita
"A Regra do Jogo" (1939-Jean Renoir)


O herói aviador, André Jurieux, ao declarar-se decepcionado, diante dos jornalistas e da multidão entusiasmada, por não ver ali a mulher por quem tinha realizado a façanha, faz eco aos versos de Beaumarchais, citados no início: se o amor tem asas, não é para esvoaçar?

Christine, uma austríaca, casada com o marquês Robert de La Chesnaye, não se lembra de ter encorajado tais propósitos. Octave, o amigo de ambos e Lisette, a sua criada de quarto, explicam-lhe por que em França não pode haver amizade entre os sexos. Mas, através de Octave, André consegue fazer-se convidado para a festa na residência de campo de Christine, “La Colinière”.

O modo como a austríaca se desembaraça do equívoco provocado pelas palavras inconvenientes do aviador é de antologia. No fundo, insinua que se limitou a escutar os projectos arrebatados do seu jovem admirador e lembra que saber escutar é uma parte importante da amizade. André, com essa “correcção”, parece ter aterrado numa insuportável realidade.

De facto, o deus do amor, volúvel e inconstante, esvoaça pelos quartos, corredores e pisos de “La Colinière”, envolvendo os senhores e, em paralelo, em modo “molto agitato”, os seus domésticos. Christine, descobrindo que o marido a engana, passa a encarar o aviador com outros olhos. Mas julga merecer uma fuga romântica, sem se despedir de ninguém. André obtempera com as conveniências, porque “ça se fait”. É preciso tempo para avisar o marido, de quem, afinal, é um convidado. Decepcionada, Christine volta-se para Octave, o amigo de infância, a quem declara que foi sempre a ele que verdadeiramente amou. Tudo parece pronto para a fuga, porque o amor de Octave não é segredo para ninguém, quando ele é chamado à razão por Lisette, confrontando-o com a sua falta de meios para sustentar a patroa, habituada ao grande luxo. Octave reconhece que é um parasita, vivendo á custa de alguns amigos ricos e que, na verdade, é um falhado. No último momento, decide enviar ao encontro na estufa o seu amigo aviador, dizendo-lhe que é amado e que ela está à sua espera. Mas André é abatido pelo ciumento (e recentemente despedido) couteiro do marquês que confunde Christine com a sua mulher, Lisette. Octave parte para Paris a tentar a sua sorte.

Tudo volta à normalidade. O assassino é reintegrado nas suas funções e o marquês recupera a mulher, que não parece ter ficado muito afectada pelos acontecimentos. Lastima-se a morte do jovem herói, vítima dum acidente: o couteiro tê-lo-ia tomado por um caçador furtivo. “-Nova definição de acidente…”, diz Saint-Aubain. Ao que o velho general, que “põe as mãos no fogo” pelo seu anfitrião, responde que homens como o marquês “se font rares.”

Que parte têm as famosas regras do jogo nesta comédia inspirada em Musset e Marivaux? O filme, estreado nas vésperas da segunda Grande Guerra, é um olhar irónico sobre um mundo decadente. É o mesmo olhar, de antes da Revolução, das peças de Tchekov. Octave podia ser um tio Vânia, fazendo a mesma constatação melancólica de falhanço. Entre os dois mundos, ele é uma personagem intrinsecamente sã.

No mundo da criadagem, predomina o espírito “jacobino” anti-aristocrático. Ninguém se ilude sobre os seus patrões, e os seus comentários sobre a “outra comédia” são cáusticos. Quanto à aristocracia do dinheiro (de La Chesnaye é um judeu) revela a sua completa amoralidade no encobrimento dum assassínio que serve toda a gente (excepto a sobrinha da marquesa). Mais importante do que a etiqueta que distingue o senhor do seu doméstico é o acordo sobre os interesses comuns dentro do grupo dos aristocratas e burgueses, a sua vontade de resistir aos assaltos da realidade.

Assim como o público de “La Colinière” considerou a perseguição do novo criado Marceau pelo couteiro ciumento, armado duma pistola, como mais uma surpresa teatral do seu infatigável anfitrião, assim a morte de André Jurieux não passou, também, de teatro. 


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