01/06/11
ENTRE A BELEZA DE UM OLHAR E A DA NATUREZA
Alcino Silva
Só direi,
crispadamente recolhido e mudo,
que quem se cala quanto me calei
não poderá morrer sem dizer tudo.
José Saramago
Olho-te silencioso esmagado pelo deslumbramento da paisagem e pela beleza que transmites na serenidade do rosto e na pureza dos teus olhos. No seu interior encontro as palavras que me pedes sobre o passado que o presente destruiu. Nesta harmonia entre a tua e a beleza da natureza vou descobrindo a riqueza daqueles dias. Eram assim, azuis como esses lagos e mares que se escondem nesse olhar teu que me interroga. Os sonhos que encontro em ti, levavam-nos naqueles dias por tudo quanto era caminho, fossem estradas ou veredas e não existia montanha que nos detivesse, antes pelo contrário, superávamos altitudes, estações do ano, neves e gelos. O encantamento com que me transformas a vida é o mesmo que nos empurrava cada dia com mais força para diante, para essa fronteira do futuro onde reside a razão humana. Ouves o cantar do ribeiro enquanto salta entre grossos e volumosos seixos, afadigando-se na procura do horizonte, desenhando lagos de esmeralda cor? Assim eram os nossos caminhos quotidianos, semeando música, dançando ao som de alegrias que saíam das gargantas e das mãos de tocadores enquanto construíam galáxias de fantasia sobre os problemas da vida. E sonhavam, como sonhávamos todos! Sentes o aroma destas flores primaveris que cobrem estas encostas que ainda há pouco atravessamos? Assim eram, os campos que cultivamos, os rios que domamos, as cidades que acordamos. Ainda hoje quando olhamos as fotografias do tempo em que a vida voou, um sorriso, um sorriso mágico, quase tão bonito como esse que desenhas para mim, inunda-nos o pensamento, abre a memória como uma janela e leva-nos para esse tempo extraordinário em que acreditamos viver no limiar do irrealizável. Como há pouco quando esgotados alcançamos o cume, também nós naquela época arranhamos as nuvens. Em noites de lua cheia, sentados na areia, escutávamos o murmurar da história, sentíamos o pulsar da humanidade em cada gesto, em cada decisão, em cada passo que dávamos. Mas o arco da tragédia, onde viajam os filhos do passado, do pretérito que havíamos vencido, seguia percorrendo a sua curva silenciosa. Ouves os trovões ao longe e vês os relâmpagos rasgando o espaço? Assim se aproximaram. Primeiro distantes, depois, como há momentos, cobriram o céu de nuvens, escureceram-nas com as suas maldades e fizeram-nas desabar sobre todos nós, esmagando as quimeras que cresceram, transformando as utopias em ilusões perdidas. O resto já não conto, pois é uma longa noite como essa que se avizinha, mais negra ainda, pois aqui ainda temos um universo de estrelas mesmo que distantes e na aparência inacessíveis. Mas a outra, aquela que chegou com os filhos dos sátrapas, essa parece não só longa como tenebrosa. É verdade que não destruíram a beleza como a doçura desse teu olhar o prova, mas parecem não descansarem enquanto não açaimarem a liberdade.
IMPOTÊNCIA
Mário Faria
http://www.terminartors.com/files/artworks |
Assistimos ao início de um mudança radical em Portugal, já testada noutros países europeus e que teve a sua mais eloquente expressão no período em que Margaret Tatcher governou, sustentada nos princípios da democracia liberal esvaziados por um ultraconservadorismo no plano cultural, um ultraliberalismo no plano económico, um excessivo autoritarismo no plano social, e cujas bases ideológicas se situam nas teorias de Frederick August von Hayek que defendeu os méritos da ordem espontânea. Segundo Hayek, uma economia é um sistema demasiado complexo para ser planeado por uma instituição central e deve evoluir espontaneamente, por meio do livre exercício dos mercados.
A “apropriação dos postos de trabalho” sustentada na redução, ao mínimo possível, da concorrência entre trabalhadores no mercado do trabalho, bem como da margem de liberdade contratual do empregador para gerir os recursos humanos, são alguns dos argumentos na defesa da flexibilização das leis laborais. O monopólio sindical da contratação colectiva do regime português é acusado de manifestar efeitos perversos típicos dos monopólios e, assim sendo, quebrar a espinha dorsal do movimento sindical português faz parte seguramente da estratégia da direita para o novo ciclo pós-eleitoral.
É também isso que querem os empresários portugueses quando reclamam leis laborais menos rígidas, logo mais flexíveis : ter menos empregados nas suas empresas (e, já agora, ainda mais disponíveis para ajustarem horários, mudarem de funções ou irem trabalhar para outro sítio para, por essa via, reduzirem os custos com pessoal) e assim obterem ganhos na colocação do produto ou do serviço no consumidor final . A descida da TSU é outro meio há muito reclamado pelos patrões. Competitividade 0.
É por isso que eu sempre digo que os dentífricos mais publicitados não são os que lavam os dentes melhor. Embora o capitalismo moderno continue a não resolver o velho vírus da desigualdade, continua a vender-se bem. A social democracia parece ter os dias contados, perdida nas imensas contradições de ter de servir o capital e dever garantir a coesão social. E na dúvida (ou na actual crise) prevalece sempre a lei do mais forte !
Porra, sinto uma enorme défice na compreensão de temas da economia e das finanças e sigo na TV todos os debates sobre a crise, o PEC4, a troika, o resgate da dívida, o timing do pedido, o valor dos juros, o caso grego, a economia, a necessidade de crescer acima dos 2,5% em tempos de comprovada recessão, a reestruturação da dívida, a saída do Euro e da UE, o cumprimento do memorando, as alternativas, as eleições, os programas, o TSU, as privatizações, o aumento dos impostos, a falta de investimento, o presente e a ausência de futuro. Viciei-me de tal forma nos debates que até sub-valorizei as estrondosas vitórias do FCP. Durmo mal e temo o pior. Porra, apesar da overdose a que me submeti, sei o que não quero, mas não vejo forma de poder ser impedido. Sinto-me impotente. Dependo da reforma e de uma pequena poupança que aforrei. Quanto valem ? Nada ! Estamos completamente à mercê da troika e da banca. A nossa esperança de vida anda pelos quatro anos, se não morrermos, antes, afogados na diarreia dialética que inunda os media todos os dias.
MUROS RELIGIOSOS - O JUDAÍSMO
Mário Martins
Estrela de David (Wikipedia) |
“Quero compreender de maneira a que qualquer conceito inexplicável se me apresente como uma necessidade desta mesma razão e não como a obrigatoriedade de acreditar.”
Tolstói. A Confissão. 1879
O que separa, do ponto de vista doutrinário, as grandes religiões? Como fazem a ponte com o mistério da existência? Como explicam o mundo? Eis o que, para lá das razões históricas ou sócio-culturais, poderia rotular de viagem breve e com pouca bagagem a um mundo aparentemente unido pela crença, quase universal, num Deus único. Iniciemos a jornada pelo Judaísmo, essa religião já milenar ao tempo do advento do Cristianismo.
O aspecto central da religião judaica é, parece-me, o de que o povo judeu é o povo eleito ou escolhido por Deus; é o povo da Aliança e da Promessa. Da Aliança com Deus que, falando directamente com os seus patriarcas ou profetas, marca o seu destino:
“Estabeleço a minha aliança contigo (o patriarca Abraão) e com a tua posteridade, de geração em geração; será uma aliança perpétua…” Como sinal e recordação desta aliança, todos os machos deviam ser circuncidados aos oito dias de idade. *
E da Promessa:
“Deixa a tua terra, a tua família e a casa do teu pai, e vai para a terra que Eu te indicar.” Obedecendo às ordens de Deus, Abraão abandonou (há cerca de quatro mil anos) as terras férteis da Mesopotâmia com a família e o rebanho. Viajaram para norte e para ocidente, seguindo o fértil vale do Eufrates, em direcção à terra - Canaã, mais tarde conhecida por Palestina - que Deus prometeu aos descendentes de Abraão. *
Com estes comunicados divinos a um homem concreto, nascia um Deus maior, único, e criador. De acordo com os judeus ortodoxos, baseados nas narrativas bíblicas, a Criação aconteceu há 5768 anos:
“No princípio, quando Deus criou os céus e a terra…” A Bíblia continua, dizendo que Deus precisou de seis dias para levar a cabo a Criação, durante os quais criou o dia e a noite, a terra e a água, a erva e as árvores, o sol e a lua, “as grandes baleias e todas as criaturas vivas” - incluindo o gado - e o homem. “Deus criou o ser humano à Sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher.” Numa segunda versão da Bíblia Deus disse ao primeiro homem - cujo nome era Adão - que podia comer os frutos de todas as árvores, mas que não poderia comer o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. A razão que Deus deu foi que “no dia em que o comeres, certamente morrerás”. (…) Adão, porém, sentia-se só no meio das maravilhas da criação. Ao ver aquilo, Deus disse: “Não é conveniente que o homem esteja só; vou dar-lhe uma auxiliar semelhante a ele”. O Senhor Deus fez cair sobre o homem um sono profundo e enquanto ele dormia “tirou-lhe uma das suas costelas” e fez a mulher. Adão e Eva viveram no Jardim do Éden nus e desconhecedores do pecado até que uma serpente tentou convencer Eva a comer o fruto proibido da árvore do conhecimento do bem e do mal. Eva comeu o fruto e deu um pouco do fruto a Adão e, subitamente, tornaram-se ambos tão conscientes e envergonhados da sua nudez que se vestiram de folhas de figueira. Deus ficou muito desapontado por Adão e Eva lhe terem desobedecido e explicou a Eva as três consequências do seu acto - consequências que atingem todas as mulheres desde então. Deus “multiplicou” os seus sofrimentos, porque “entre dores darás à luz os teus filhos”. Eva procuraria apaixonadamente o seu marido, mas ele dominá-la-ia. Quanto a Adão, teria de trabalhar arduamente para conseguir o alimento da terra: “Comerás o pão com o suor do teu rosto”. Adão e Eva foram banidos do jardim - expulsos, diz-nos a Bíblia - e tiveram de ir para longe para cultivar a terra, mas não sem que antes Deus “os vestisse com túnicas de peles”. Deus também explicou que : “Eis que o homem, quanto ao conhecimento do bem e do mal, se tornou como um de nós”. *
Com a morte de David, por volta de 965 a.C., Salomão foi ungido rei. (…) Quando mais tarde os Judeus foram escravizados por outras nações - os Babilónios, os Helenos e os Romanos -, esperaram que Deus lhes enviasse um Messias: esta palavra, para os Judeus, significava um rei ungido que os salvasse da opressão, e acreditavam que o Messias seria um descendente do rei David. *
* “Cartas à Tia Fori” (Os 5000 anos de história e fé do povo judeu), Martin Gilbert, 2002, Aletheia Editores, 2011
Obra também consultada: “As grandes religiões do mundo”, Direcção de Jean Delumeau, 1993, Editorial Presença, 2002.
NOTÍCIA DE OUTROS TEMPOS
Manuel Joaquim
Uma mão amiga ofereceu-me um exemplar do primeiro Boletim da L’Urbaine, referente ao 1º trimestre de 1964.
É uma pequena brochura, de tamanho A5, constituída por 14 páginas, com capa azul, com a reprodução do símbolo da L’Urbaine ao centro, secundado por “Boletim da L’Urbaine”, com um rodapé, em cor branca, com a identificação do número e do período a que respeita, que acima referi. Não tem ficha técnica, não identifica o proprietário nem os redactores. Alguns artigos têm a identificação dos seus autores, outros não.
O Boletim tem dois artigos que chamaram a minha atenção. O primeiro, o editorial, se assim se pode chamar, faz a apresentação e a justificação do nascimento do boletim. É assinado por René Cornemillot, que naquele tempo era o Director Geral da L’Urbaine em Portugal. A justificação para o aparecimento do boletim é o facto de “quando uma família aumenta é cada dia mais difícil manter-se o contacto entre os seus membros numerosos e dispersos. Era pois necessário criar um elo…”. Termina com “votos pela prosperidade do “Boletim” e para que os seus leitores encontrem sempre nas suas linhas o eco da nossa grande alegria: a alegria de trabalharmos todos unidos para a obra de engrandecimento da Companhia que aceitámos servir”.
Recordo-me de, em 1974, pela voz de Fernando Barbosa de Oliveira, Presidente do Sindicato de Seguros, ouvir falar deste homem, como Director Geral da UAP em Portugal (UAP que sucedeu à L’Urbaine). Existia um conflito laboral naquela empresa, resultante da forma como eram classificados trabalhadores da área comercial. Depois de troca de diversa correspondência, foi marcada uma reunião entre a Direcção do Sindicato e René Cornemillot. A reunião realizou-se na Sede do Sindicato, no Porto, e teve resultados bastante positivos. Tive a oportunidade de o conhecer nesse dia. A deslocação à sede do Sindicato, do representante máximo em Portugal de uma companhia de seguros internacional, teve e tem significado, em todos os sentidos, e foi registado.
Mais tarde, encontrei René Cornemillot como Administrador da Aliança UAP, aquando do processo de fusão da Aliança Seguradora, Garantia e UAP.
O segundo artigo que chamou a minha atenção, é assinado por X.C., enquadra uma fotografia das novas instalações da L’Urbaine, na Praça Marquês de Pombal, em Lisboa. Pelo seu interesse, permito-me transcrever:
“No velho sítio do Andaluz, em chãos de quintas sem história, projectou-se por 1880 uma grande rotunda, mas, como o local era afastado e a frequência perigosa, a urbanização levou anos a fazer. Por isso em 1898, quando da Feira do Centenário da Índia (de que nos resta uma pitoresca litografia que a nossa vizinha «B.P.» aproveitou com felicidade para o seu mural) existiam no vasto círculo apenas dois prédios: o que faz ângulo para o que seria a Rua Braamcamp (T.A.P.) e, do outro lado, a uma teórica esquina da futura Fontes Pereira de Melo, no meio dum jardim, o palacete do Conde de Sabrosa, naquele estilo novo-rico do último quartel do século XIX, meio renascença francesa, meio ridotto italiano, onde vivia em 1910 o Dr. Miguel Bombarda e de onde saiu o seu funeral. À ilharga da inexistente Duque de Loulé, ficava o anexo destinado às cocheiras, ostentando na fachada uma lápide comemorativa de aí se haver instalado o hospital de sangue quando da proclamação da República. É exactamente nessa esquina que se ergue hoje a grandiosa mole do edifício da L’URBAINE.
Quando ao subir as escadas do metropolitano se vê crescer aquela enorme bisarma com os seus 7 andares cheios de elevadores, monta-cargas e telefones, tão proficientemente funcional que até faz aflição, todos os veteranos, todos os que têm mais de 20 ou 25 anos de casa, devem, como eu, sentirem enevoar-se-lhe os olhos ao pensar no longo tempo decorrido, uma vida inteira gasta em trabalho quotidiano, e naqueles que ficaram pelo caminho. E quantas vezes me surpreendo a pensar na L’URBAINE de outrora!... Nas salinhas acanhadas da Rua do Comércio; no alargamento progressivo das instalações da Rua Augusta e, mais ainda, com ternura e saudade, em nomes e rostos desaparecidos, tenham sido eles figuras de proa ou humildes colaboradores…..Todos ajudaram a construir esta URBAINE que conhecemos agora! Ergue-se, repito, a materialização desta nova URBAINE; mas, quando a contemplo, não é a montanha de mármore, ferro e vidro que eu admiro: é a lembrança dos que, dando todo o seu esforço para que se levantasse, a não chegaram a ver, dos que nos transmitiram o exemplo a seguir… E, dentre eles, recordo principalmente o Homem que foi a pedra sobre que ela se edificou: o Sr. Pereira Sampaio, «verte vieillesse» impecável, impulsionador principal desta «Mãe dos seguros de vida…» e que foi muito justamente evocado pelo Sr. Montel aquando da inauguração…..”
O Boletim nasce em consequência do aumento do número de trabalhadores, necessário para responder ao crescimento contínuo da empresa, evidenciado no culminar com as novas instalações no Marquês de Pombal.
Tal como aconteceu com a UAP, tantas outras empresas de seguros, durante tantos anos, desenvolveram as suas actividades, cresceram, criaram postos de trabalho, criaram riqueza, investiram no património, eram reconhecidas pelas suas competências e pela idoneidade.
Hoje, o que vemos?
Vemos dezenas de imóveis, onde funcionaram empresas de seguros, particularmente nas cidades de Lisboa e Porto, simplesmente abandonados, alguns em estado de completa degradação, contribuindo para a desertificação dos centros urbanos. Vemos a diminuição drástica do número de trabalhadores nas empresas de seguros. Vemos a desvalorização das condições de trabalho. Vemos a subalternização e desrespeito dos Sindicatos pelas entidades patronais. Nada disto pode ser justificado pelos processos de fusão que aconteceram entretanto. Com os processos de fusão que resultaram das nacionalizações efectuadas em 1975, os postos de trabalho foram respeitados, os trabalhadores foram valorizados.
Em resultado da política governamental, novos processos de fusão de seguradoras vão acontecer. E a orientação vai no mesmo sentido. Mais abandono do património, mais extinção de postos de trabalho, mais trabalho precário.
Será que as empresas de seguros estão, hoje, realmente a criar riqueza para Portugal?
A REGRA DO JOGO
António Mesquita
O herói aviador, André Jurieux, ao declarar-se decepcionado, diante dos jornalistas e da multidão entusiasmada, por não ver ali a mulher por quem tinha realizado a façanha, faz eco aos versos de Beaumarchais, citados no início: se o amor tem asas, não é para esvoaçar?
Christine, uma austríaca, casada com o marquês Robert de La Chesnaye, não se lembra de ter encorajado tais propósitos. Octave, o amigo de ambos e Lisette, a sua criada de quarto, explicam-lhe por que em França não pode haver amizade entre os sexos. Mas, através de Octave, André consegue fazer-se convidado para a festa na residência de campo de Christine, “La Colinière”.
O modo como a austríaca se desembaraça do equívoco provocado pelas palavras inconvenientes do aviador é de antologia. No fundo, insinua que se limitou a escutar os projectos arrebatados do seu jovem admirador e lembra que saber escutar é uma parte importante da amizade. André, com essa “correcção”, parece ter aterrado numa insuportável realidade.
De facto, o deus do amor, volúvel e inconstante, esvoaça pelos quartos, corredores e pisos de “La Colinière”, envolvendo os senhores e, em paralelo, em modo “molto agitato”, os seus domésticos. Christine, descobrindo que o marido a engana, passa a encarar o aviador com outros olhos. Mas julga merecer uma fuga romântica, sem se despedir de ninguém. André obtempera com as conveniências, porque “ça se fait”. É preciso tempo para avisar o marido, de quem, afinal, é um convidado. Decepcionada, Christine volta-se para Octave, o amigo de infância, a quem declara que foi sempre a ele que verdadeiramente amou. Tudo parece pronto para a fuga, porque o amor de Octave não é segredo para ninguém, quando ele é chamado à razão por Lisette, confrontando-o com a sua falta de meios para sustentar a patroa, habituada ao grande luxo. Octave reconhece que é um parasita, vivendo á custa de alguns amigos ricos e que, na verdade, é um falhado. No último momento, decide enviar ao encontro na estufa o seu amigo aviador, dizendo-lhe que é amado e que ela está à sua espera. Mas André é abatido pelo ciumento (e recentemente despedido) couteiro do marquês que confunde Christine com a sua mulher, Lisette. Octave parte para Paris a tentar a sua sorte.
Tudo volta à normalidade. O assassino é reintegrado nas suas funções e o marquês recupera a mulher, que não parece ter ficado muito afectada pelos acontecimentos. Lastima-se a morte do jovem herói, vítima dum acidente: o couteiro tê-lo-ia tomado por um caçador furtivo. “-Nova definição de acidente…”, diz Saint-Aubain. Ao que o velho general, que “põe as mãos no fogo” pelo seu anfitrião, responde que homens como o marquês “se font rares.”
Que parte têm as famosas regras do jogo nesta comédia inspirada em Musset e Marivaux? O filme, estreado nas vésperas da segunda Grande Guerra, é um olhar irónico sobre um mundo decadente. É o mesmo olhar, de antes da Revolução, das peças de Tchekov. Octave podia ser um tio Vânia, fazendo a mesma constatação melancólica de falhanço. Entre os dois mundos, ele é uma personagem intrinsecamente sã.
No mundo da criadagem, predomina o espírito “jacobino” anti-aristocrático. Ninguém se ilude sobre os seus patrões, e os seus comentários sobre a “outra comédia” são cáusticos. Quanto à aristocracia do dinheiro (de La Chesnaye é um judeu) revela a sua completa amoralidade no encobrimento dum assassínio que serve toda a gente (excepto a sobrinha da marquesa). Mais importante do que a etiqueta que distingue o senhor do seu doméstico é o acordo sobre os interesses comuns dentro do grupo dos aristocratas e burgueses, a sua vontade de resistir aos assaltos da realidade.
Assim como o público de “La Colinière” considerou a perseguição do novo criado Marceau pelo couteiro ciumento, armado duma pistola, como mais uma surpresa teatral do seu infatigável anfitrião, assim a morte de André Jurieux não passou, também, de teatro.
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