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01/11/10

VIAGEM À TERRA DO NADA

Alcino Silva
Drave



Desde sempre os seres humanos alimentaram a alma com essa sede de viagens, de percorrer lugares e conhecer gentes, não se imobilizarem na tranquilidade do espaço onde nasceram e cresceram. Há até uma tendência para exercer esse conhecimento no exotismo dos outros, mesmo no desconhecimento do que está próximo. Ou pelo isolamento da terra, ou pela singularidade das pessoas, ou pelo deslumbramento da natureza ou, também pela exuberância das realizações patrimoniais. E quantas vezes, quanto mais longe, mais a atracção se exerce. Desta forma, cada vez mais pessoas se deslocam ao longo das terras e espaços do planeta, uns usufruindo a paragem num lugar, outros em viagem constante, uns em solitário, outros em grupo. Contudo, quase sempre, esquecemo-nos de olhar para o lado, para o que se encontra um pouco adiante, imediatamente a seguir à curva que se avista no horizonte.

Deixei a cidade grande num dia de sol agradável, na hora do bulício em que todos se agitam, todos têm pressa, todos possuídos dessa angústia que deixa entender que o mundo pode acabar dentro de instantes, pelo que é necessário correr, sobretudo à frente dos restantes. Após a auto-estrada, a via ainda se encontra possuída de muita importância, mas pouco depois, secundariza-se, ora se estreita, ora se alonga, mas o sossego vai caindo sobre o tráfego e sobre a paisagem e quando a manhã dobra essa metade como se passeasse um meridiano, o nosso olhar tende a distender-se, a procurar mais as margens do que o ponto em frente e a cada cenário que se desenha, desenvolve-se essa sensação de imobilidade, de paralisia dos sentidos, pelo fascínio do que vamos encontrando. A cada curva, a cada aldeia, a cada conjunto florestal parece estar reservado um momento de delícia. Apetece parar e observar, em silêncio, nessa serenidade do que parece perfeito e quilómetro após quilómetro vamos penetrando num mundo que nos parece longínquo, parado no tempo, movido a uma velocidade que não conhecemos e quando pensamos que esta aldeia, acabada de cruzar, pode ser a última, a estrada não termina e inicia uma subida temerosa em direcção às nuvens e o olhar permanece distante e parado no que vê nesse esmagamento que a natureza provoca com a perturbação do que adquire a grandeza do que é único, Já passamos as nuvens e aproximamo-nos das estrelas. Se continuarmos percebemos que nos vamos perder em pleno universo e, é nesse instante, que uma placa nos indica a viragem à direita e descemos ao longo de dois quilómetros. Não vemos a aldeia, mas percebe-se que está escondida na encosta. A viagem termina com a estrada e metemo-nos pelas ruelas apertadas e íngremes do lugar. Percebe-se que o ambiente é rural e de montanha. À frente, os campos cultivados no estreito e curto vale, mostram-nos o labor destes povos e o gado cruzando os becos, deixando a bosta pelo caminho, atapetando as pedras e com a secura do calor permitem que o andar se avelude. De inverno, a lama, o frio e o gelo, há-de tornar aquele piso escorregadio. A cada recanto que observamos, compreendemos que alcançamos a última fronteira e que a partir dali, será o nada. Contudo, é ainda possível prosseguir, atravessando o riacho e agarrando-nos ao caminho que sobe, íngreme, pedregoso, de terra arrastada, arrasa-nos as energias, nos vinte minutos que leva a alcançar o planalto. A partir daqui, a soberba beleza das montanhas destrói os últimos resquícios de energia que restavam, é a imobilização total dos nossos olhos, incapazes de absorver o que observam. O caminho desce, ladeia o desfiladeiro imenso que se desloca nas curvas da montanha e além, naquele sopé distante, por baixo de uma encosta calcinada, a última aldeia, com as casas ruindo sem aguentarem o abandono que permitiria às lajes de xisto susterem as paredes e os tectos. A nudez humana perturba e percorre-se os caminhos entre as ruínas no interior desse silêncio solitário. Ouvem-se ainda os sons que ali viveram, permaneceram na sombra dos tempos, os cantos que se erguiam dos socalcos e ajudavam as águias a voar em espirais de alegria. Caminhamos devagar, sem perturbar, olhando em redor, com esse receio que a aldeia se habite de repente, mas há dez anos que o último habitante a deixou e longe vão os tempos em que as gentes que a habitaram lhe percorriam as entranhas como senhores do lugar. Apenas o sol respira e a sombra desliza nessa tranquilidade do que não existe. Estamos em Drave a aldeia que vive na terra do nada.


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