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01/10/10

PODIA TER SIDO ASSIM

Alcino Silva




Procuramos sempre os melhores momentos e os lugares de maior beleza para as horas que compõem a nossa vida. Umas vezes, no azul dos mares, outras no verde das montanhas e cedemos o azul dos céus para os sonhos. Em qualquer deles, deixamos soltar-se a aventura e juntamos esse romantismo que acrescenta beleza às pessoas e à natureza. O caminho era simples, mas nada nos aparece indicado com essa precisão que elimina o engano. Necessitamos de procurar, de reflectir e de fazer escolhas. Estas são sempre delicadas, para tentar afastar o erro, para evitar voltar atrás e começar de novo ou para não nos atrasarmos na chegada ao objectivo. Mas na escolha também está essa sedução da diferença, das cores que se multiplicam, dos rios que nascem com braços de afluentes em todas as margens. E escolhemos sem certeza, mas com a convicção de caminhar, de progredir, de abandonar essa posição estática que não conduz ao nada. O sol descia, cálido e temperado, tornando-se afogueador com a viagem em marcha. Traçado o rumo, desfraldadas as velas, apareceu o sonho no horizonte e cada um, procura na lembrança a imagem que escolhe para o acompanhar e ajudar a identificar os sinais dos lugares. Escolhi a minha que guardo na memória com essa luminosidade das noites brancas. Consultados os pontos cardeais, corrigimos o rumo, um pouco para noroeste, em busca do vento que acelerasse a nau, que a erguesse face ao mar difícil que se adivinhava nos contornos de cada ilha, nos devaneios do infinito e nas reentrâncias dos continentes. O primeiro poema apareceu no desfraldar das asas do pássaro que vimos em voo planado nascido nas alturas e se dirigia para o vale onde a fantasia se desvanecia em castelos de alfazema, cujo aroma se estendia a toda a largura do caminho construído nessa mistura de terra e pedra, mas cada uma ocupando espaços diferentes. Com ele, chegou como um lamento, o primeiro cântico da humanidade, soltado em grito pelo passado escrito em sangue. Breve e carente, passou por nós rasgando a serenidade da manhã e estendeu-se ao longo da encosta entre a vegetação rasteira e cansada do fogo solar por um Verão extenso. Em nova correcção da trajectória, aproximamo-nos das estrelas, desse lugar onde converge a existência de todos os que não sentem barreiras no olhar nem no pensamento e que fazem de cada minuto da vida uma girândola de alegria. E subiu, subiu, ergueu-se no firmamento face à paisagem que se desenrolava como uma sucessão de galáxias. De nordeste para sudoeste, o rio estendia-se longo e preguiçoso entre a vida humana das margens como quem aguarda, não a chegada ao oceano, mas antes que este o venha buscar. Ergueram-se os olhares e cada um procurou as suas imagens. Era um corredor de história e por ali passava a humanidade. No extremo direito, esse instante único dos três primeiros minutos em que o magma explode, escorre e se funde em rios de lava incandescente, desenhando contornos, vales e montanhas. No outro ponto além, os ventos e as tempestades, a moldar a vida e a fazer nascer os mares e os rios. Naquele minúsculo centro, nasceste tu, símbolo da beleza e sonho dos homens, Afrodite, símbolo da humanidade e que viaja no recanto guardado da minha memória. A caminhada que nos trouxe aqui, principiou ali, no brilho dos teus olhos. De seguida, são cidades erigidas, campos desbravados e o regresso do cântico da manhã saído da garganta dos povos. Um som lento, entre a angústia e o lamento, expresso na dolência com que o vento o leva e o traz, nesses cortes de toada denunciando o drama de impérios destruídos, lugares saqueados e que o pó da tormenta vai sepultando no esconderijo da história. As caravelas vogam na procura do novo, no dealbar de mundos escondidos, flamejando nesse garbo de conquistadores e navegadores e o cântico regressa, volta a soar nos ouvidos desta humanidade que nos gerou, sentimos a voz que o atira em desesperados prantos de uma violência que acompanha todas as ganâncias paridas pelas confrarias vencedoras. O livro da história aproxima-se do limite esquerdo e viaja agora em nave de asas variáveis e velocidades que roçam a distância dos quasares e já no fim, o poema lamentado em voz de mulher, clama e chama-nos de novo para as desgraças que se desenrolam ainda. Sentimos as poeiras que os ventos da história sepultam e aquele grito cantado insiste nesse voo até nós, ora próximo, ora afastado, lembrando-nos essa solidão humana que nasce na incompreensão do outro. Retornamos na procura do lugar da manhã e voltamos à procura do rosto que desenhamos no pensamento, nesse sorriso que não nos faz desistir e inventamos novos caminhos, percursos diferentes, para multiplicar o que conhecemos e tornar mais aprazível o que já vimos. Ao descer, olhamos de outra forma, o que encontramos na subida e, no entanto, não deixamos de amar o que encontramos, pois o outro é também um conjunto de faces e não chega que olhemos apenas a que nos encantou, sendo necessário que a nossa compreensão alcance o todo, talvez em lugares diferentes, em instantes separados, mas sempre na intenção de descobrir a fantasia que embeleza o conjunto. Talvez cansados, talvez com a necessidade de novas descobertas, de outros conhecimentos, de mais e variados poemas, mas sempre contigo, chegamos ao fim com vontade de recomeçar.              


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