01/08/10
BOLINHAS!
Cacela Velha
Já cá estão as famosas bolinhas, anunciava o vendedor de chapéu azul com as abas para cima à cowboy, dos ângulos rectos dos seus braços pendiam duas caixas brancas rectangulares com os dizeres, igualmente em azul do mar, Bolinhas de Berlim, ia e vinha como a rebentação, no seu corpo seco e moreno e com um ar de quem tivesse nascido para aquilo, pelas praias de areia fina do sotavento algarvio, repetindo o anúncio vezes sem conta Bolinhas! Já chegaram as famosas bolinhas…seguindo o conselho do Presidente da República, logo contestado por um membro do Governo, escolhemos este ano o reino dos Algarves para "ir para fora cá dentro", a costa vicentina mostrou-se espectacular e bravia, não pode, aliás, ser uma coisa e não ser a outra, as três estrelas do Guia Michelin voavam alto ao forte vento do Norte no Cabo de S. Vicente e na Ponta de Sagres, Lagos, a Lagos branca e grega de Sofia, que o presidente e poeta do Senegal Léopold Senghor identificou com a sua Lagos, "Un jour à Lagos ouverte sur la mer comme l'autre Lagos", continua branca e imaginariamente grega apesar da rua central carregada de restaurantes e turistas num Sábado à noite, mas não consegui encontrar a loja dos barros desse texto extraordinariamente poético de Sofia "Arte poética - I", "Este é o reino que buscamos nas praias de mar verde, no azul suspenso da noite, na pureza da cal, na pequena pedra polida, no perfume do orégão", de repente, do labirinto de cal das ruas, surge a Igreja de Santo António e o espectáculo barroco de talha dourada que reveste a sua nave, Tavira, a cidade das pontes e das igrejas, espalhada pelas duas margens do rio, estava mais serena, foi precisamente depois de atravessar a ponte antiga que liga a praça triangular ao lado de lá que viraventos girando furiosamente e outros objectos de artesanato tosco à porta de uma oficina me atraíram, mil artefactos em lata, de cores garridas, balouçavam ao vento no tecto baixo e alumiavam o ambiente soturno da oficina e o Sr. Aníbal, não o Presidente da República, de quem disse, para logo desdizer com ar maroto, devido ao nome ser ainda primo, mas sim o Sr. Aníbal Silva Bandeira, homem de sete ofícios, de S. Brás de Alportel, mas radicado em Tavira há quarenta e tal anos, posso tirar-lhe um retrato Sr. Aníbal? pode pode que eu até já fui à televisão ao programa da Fátima Lopes, ir a Tavira e não visitar a oficina do Sr. Aníbal é caso de remorso, como seria, aliás, o caso se não fossemos a Cacela Velha, onde fiquei mesmo surpreendido pois não é todos os dias que se vêem os nomes dos grandes poetas nas principais ruas, Rua de Eugénio de Andrade, aqui, Rua de Sofia de Melo Breyner, ali, mais adiante lêem-se os versos de um poeta mouro, sim de um poeta mouro, a refulgirem na cal branca da parede, os imaginários mouro e grego misturam-se ao sol inclemente na varanda que é a pequena Cacela sobre a quietude da Ria Formosa, a oficina do Sr. Aníbal e Cacela Velha são duas pérolas que guardo antes de deambular pelo barrocal interior e de subir por estradas de ninguém ao longo do Guadiana que no Pulo do Lobo, um sítio no fim do mundo com portão de abrir e fechar, já em terras do cante alentejano, se estreita com espectacular estrondo para, mais acima, detido pela Barragem do Alqueva, se espraiar como um mar no vale de Monsaraz, sempre com cuidado para não atropelar coelhos e perdizes que imprevistamente se fazem à estrada na tarde tórrida, foi ainda tempo da Alvito alentejana nos mostrar os frescos* renascentistas da igreja matriz e da ermida de S. Sebastião, para trás ficava o Gharb de barras azuis e amarelas no branco da cal e da inegável herança islâmica, Bolinhas! Já cá estão as famosas bolinhas…
O DIA DOS AVÓS
Acordei sobressaltado. A causa, um sonho estranho : estava em plena época do Natal e tinha ido visitar o presépio que, com tanto amor, o Rui Rio mandou montar para "oferecer" aos portuenses, e reconheci nas figuras do menino Jesus, da Virgem Maria e de S. José, nada mais nada menos, que o menino Pedro, a D. Manuela e o Pacheco. Numa das TV´s montadas no local , Judas pedia (exigia) a revisão da Bíblia, enquanto a Sportv mostrava, em directo, Sócrates (em representação da PT) a ser batido ao sprint por Contador (em representação da Telefónica), e, pelo facto, perder a amarela e a volta França, exactamente na última etapa.
Sonhos são sonhos e agora seguia-se uma tarefa árdua : levantar-me, ultrapassar o obstáculo da mesinha de cabeceira, e a seguir transportar o corpo para a estreita faixa que fica entre a cama e o armário. Estremunhado, ainda, coloquei mal os pés, desequilibrei-me e dei uma cabeçada no armário. Muito barulho e pouca dor. Ouvi uma voz, do fundo do"túnel", a gritar : " Lá vai o armário, vê se tens mais cuidado!". Não respondi.
Tacteando, passei o armário, rodei à esquerda e vejo um estranho : uma figura horrível, que a penumbra acentuava, que me parecia ligeiramente familiar, embora não conhecesse nenhum gnomo. Inteligente, como sou, logo descobri que era a minha imagem reflectida no espelho que detestava, porque me mostrava (sempre) mais pequeno, mais gordo, mais feio, mais velho e com um aspecto estupidificado, que nada tinha a ver comigo. Ou tinha ? A minha vontade era partir o raio de espelho, mas são sete anos de azar, e a maldita crise é mais do que suficiente para me incomodar e atrapalhar.
Alcançado o quarto de banho, foi com alguma satisfação que verti águas. Aquilo que antigamente muito frequentemente andava de cabeça bem levantada, agora permanece demasiado sonolento e, quase só nestes momentos, aproveita para dar um ar de sua graça. Afinal, ainda há vida. Senti-me, momentaneamente, menos infeliz.
Regressei ao quarto a matutar nesses momentos fugazes e a magicar nos diferentes processos para os repetir. Distraído, fui contra a mesinha de cabeceira. Caiu qualquer coisa e, num instante, fiquei com os pés todos molhados. Tinha sido a caneca do chá, que felizmente não partiu. A zona próxima ficou inundada. Uma pequena parte do tapete saiu ileso e serviu-me para limpar os pés.
Voltei a deitar-me. Ouvi, mais uma vez a mesma voz, a protestar lá do fundo "túnel" : "Foi outra vez a caneca, não foi ? Hás-de dar cabo do soalho!". Não respondi. Adormeci rapidamente e, em sossego, dormi num sono só.
Acordei, como sempre, de mal com o mundo. Ouvi as pequenas passadas, que reconheci imediatamente. Empurrou a porta, olhou para mim, riu-se e fugiu a correr, gritando : "Vóvó. Vóvó, Vóvó…"
Levantei-me, desprezei o espelho e fui directo para o quarto de banho. Tomei o meu demorado banho, barbeei-me e cuidei da pele. Vesti-me e preparei-me para a primeira refeição do dia.
Mal saí do quarto, lá estava ele à minha espera. "Bubu, Bubu… colo, colo, colo", gritando a cantilena do costume. Peguei nele, como se tivesse a "coisa" mais rara do mundo nos meus braços. Demos um abraço bem apertado e fomos para a cozinha, onde partilhei o meu pequeno almoço com o meu neto. São estes momentos, que se repetem durante grande parte dos dias da semana, das formas mais variadas, que valem a pena viver.
Sinto-me muito gratificado por ter os meus netos sempre próximos. É um privilégio ser avô !
OS SINAIS
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Embora não possa parecer, estive sempre atento aos sinais, procuro identificá-los, perceber a sua presença atempada e quando o consigo, tento compreender a razão da sua existência, que mensagem contêm, o que me trazem de notícias. Naquela noite que se aproximava, percebi-os quando descia a serra, naquele vagar de quem tem tempo. Escutei os murmúrios que desciam das árvores e voavam como relâmpagos acendendo fogos. Ergui os olhos e descobri-os a fugir em direcção ao sol. Ao alcançar a planície, aquele extenso espaço verde, voltei a senti-los nesse esvoaçar das folhas enquanto escreviam palavras nas asas do crepúsculo que se aproximava. Quando parei, não saí, deixei-me ficar aguardando e fingindo que me absorvia em leituras, enquanto pelo canto do olho soletrava as palavras que alguém escrevera nos ramos das árvores da pequena floresta próxima. Formei frases, construí parágrafos, traduzi para várias línguas, mas não descodifiquei aqueles sinais. Mantive-me alerta, mas fui caminhar pelo litoral dos campos, pelos caminhos que conduziam a lado nenhum ou transformavam-se em ruelas em torno da aldeia. Quando a noite principiou a sua descida e estendeu o seu manto sobre a terra, entrei no mosteiro e procurei o meu lugar de sempre. Entravam uns, chegavam outros, nesse ruído tão característico dos seres humanos quando se apresentam em grupo. O tempo passava nessa contagem em que nos absorvemos a observar e, penduradas na pedra das colunas, luzes como fachos, iluminavam o cenário. Uma voz, fez em silêncio todas as outras, e como por magia, sentiu-se o dedilhar das cordas do alaúde. Os sons meigos e doces, subiram, estenderam-se lentos sobre a pedraria que sustenta o conjunto, espalharam-se como a água a ganhar os chãos após um tempo de seca, começa por molhar a superfície para pouco depois penetrar no interior da terra. Assim foi entrando, no nosso pensamento, como duas mãos tenteando-nos a cabeça, como um afago, um sossego, um apaziguamento. Escutava e olhava, erguia os olhos para além do visível e foi num desses instantes que percebi os sinais. Talvez fosse a ajuda do som saído das gargantas nesse exteriorizar do Cântico dos Cânticos que viajava para além de nós, ou era ainda a dolência do instrumento, mas foi quando a percepção do que procurava apareceu em imagens traduzidas. No espaço da abobada, uma gaivota azul voava. As asas moviam-se nessa lentidão que faz planar. Sim era azul, da cor do mar e voava como se não existisse parede, como se ali não estivessem aquelas pedras há séculos delimitando o sagrado. Sim, voava sem horizonte, apenas com o infinito como marco e havia um mar e uma galera e o alaúde passou a trazer os murmúrios das águas oceânicas naquele voo de sonho. Agora toda a mensagem já era visível. Esperei-te longamente, a vida inteira. Não sabia quando chegarias nem onde te encontraria. Sabia apenas que um dia aparecerias, por isso este meu alerta constante aos sinais. Aguardava-te e naquele momento via-te chegar naquela gaivota azul que voava sem fim, saída do trinar das cordas do alaúde. Na vida, esperamos sempre a chegada de alguém e ao longo do caminho vão aparecendo pessoas, mas sabemos que haverá um dia, em que a mais bonita de todas nos acorda a magia do fantástico, haverá um dia em que a rainha das rainhas aparecerá envolta na mais bela das músicas. Tu surgiste naquela noite e no mar em que a gaivota alada soprava o vento, adivinhei a luminosidade dos olhos com que enfeitiças o tempo, esse tempo de que agora passei a fazer parte. Um sopro de ruído irrompeu com o último toque, com o último cântico, mas por mim, continuava a seguir o voo da gaivota, errante naquele azul que viajava. Atravesso de novo os campos, o verde parece cinzento e a sombra da floresta surge como imagem admirável. No sideral espaço uma lua em crescente, alva e pura, desenha fantasias, mas os meus olhos continuam perdidos na música que sobrevoou a nave que me abrigava e que trouxe quem tanto esperei na soma dos dias. Agora que chegaste, mesmo que a música termine, já bebi de toda a beleza que a vida nos proporciona.
A SITUAÇÃO AMERICANA
No próximo dia 2 de Novembro vão realizar-se eleições nos EUA para 37 dos 100 lugares do Senado. Nas eleições realizadas em 2006, o Partido Democrata conseguiu a maioria na Câmara dos Representantes e no Senado, terminando com doze anos de maioria do Partido Republicano. A situação económica, o agravamento das condições sociais e as dificuldades crescentes com a guerra no Iraque determinaram os resultados eleitorais.
Entretanto, em Novembro de 2008, realizaram-se eleições para a Presidência, para alguns lugares do Senado e para a Câmara dos Representantes.
A eleição para a Presidência de um candidato do Partido Democrata e negro, Barack Obama, criou expectativas de alteração de política interna e internacional. O seu programa, os seus discursos, as suas afirmações alimentavam essas expectativas. A institucionalização do sistema de saúde para todos os cidadãos americanos, a luta contra o desemprego, os problemas da educação e a regularização dos imigrantes, levaram à criação de núcleos de apoio em todos os estados, constituídos por muitos jovens, trabalhadores e organizações de base. O Planeamento da saída das tropas do Iraque, a calendarização para o fim da guerra no Afeganistão, o encerramento calendarizado da prisão de Guantânamo, com pessoas raptadas nos seus próprios países, torturadas e presas sem julgamento e sem culpa formulada, a manifestação de vontade de falar com Chavez e com Fidel Castro para acabar com o bloqueio a Cuba, a regularização dos conflitos internacionais através do diálogo, pontificavam na sua campanha.
Todas essas palavras respondiam ao anseio de mudança visível no seio da população americana. Mas cerziam um pano que cobria o apoio das corporações industriais, financeiras e militares. Barack Obama foi o candidato que mais donativos recebeu do sector financeiro para a sua campanha eleitoral. Percebe-se porque razão a área financeira do seu governo esteja completamente entregue aos homens de Wall Street.
Hoje, todas essas palavras são simplesmente palavras que nunca deixaram de ser. Nunca passaram do papel a actos. O sistema de saúde foi aprovado depois das grandes concessões efectuadas ao sector segurador e às grandes corporações da saúde e dos medicamentos. O desemprego e a miséria crescem, cidades industriais estão abandonadas, a contestação aumenta organizadamente. Os jornais e as TVs nada dizem sobre o que se passa actualmente na sociedade americana. Internacionalmente a situação agrava-se perigosamente. Todas as promessas para a Paz e para a resolução dos conflitos foram completamente esquecidas. Cresce o número de soldados americanos nos actuais cenários de guerra e cresce o número de potenciais cenários de guerra. América Central, América do Sul, África, Médio Oriente, Ásia, e Europa. Há quem diga que o actual Presidente dos EUA, Barack Obama, é o pior Presidente dos últimos anos.
Apesar de ambos os partidos, democrata e republicano, não abordarem a questão cada vez mais evidente, que é o confronto entre classes sociais, será que desse confronto e das promessas não cumpridas vai sair derrotado o Partido Democrata nas próximas eleições ?
VÉNUS E ADÓNIS
António Mesquita
No quadro de Veronese "Vénus e Adónis", que se encontra no Museu do Prado, há uma geometria secreta que reforça o sentido explícito da cena, para lá da sensualidade dos corpos e da sua luz maravilhosa.
As pernas de Adónis adormecido abrem-se num ângulo recto coberto pelo obtuso formado pelos corpos de Vénus e Cupido, inclinados em direcções opostas. As cores complementares da veste de Adónis e do manto da deusa criam a tensão necessária entre um interior e um exterior simbólicos. A cabeça do jovem, poisada no regaço de Vénus, é a ponta da própria seta do deus do Amor que, desempenhado da sua tarefa, se agarra, ociosamente, a um dos cães.
O pintor quis dar à deusa o olhar ligeiramente estrábico que os Antigos consideravam entre todos o mais erótico (porque parece focar-se a si mesmo?) e que na circunstância transforma a sua conquista (ela empunha uma bandeira) numa experiência quase digestiva.
O maciço de cores sombrias opondo-se ao céu claro reforça a ideia da gravidade. Adónis está ausente, transformado, num mero projéctil.