Sentiu-o nessa manhã, com essas diferenças que nos traz o vento. Chegou-lhe como um cântico, por entre os flocos de neve, serpenteando por entre a floresta de bétulas. Num primeiro instante acreditou que eram apenas os olhos amendoados de Elena, porque no olhar das mulheres viajam todos os sonhos do mundo, e aquele era o maior de todos os sonhos, mas o som que lhe chegava era apenas um rumor, só horas mais tarde, os tambores haveriam de fazer soar o seu rufo como um grito, solto nas asas da gaivota que sulcaria o rio, como um poema, com asas de palavras, ditas e cantadas como um voo.
Sentiu-o nessa manhã de neve e soube-o apenas horas depois quando os carros de combate como velas de um veleiro libertavam a pátria, as ruas e praças do seu país, soltavam as mordaças e desenhavam cascatas de alegria entre multidões, construindo jardins e pintando paredes com as cores do presente.
Viveu-o nos dias todos que se seguiram entre o tumulto da alma e com os olhos a desejar vencer cinco mil quilómetros de distância. As noites, tingiu-as de sobressaltos em escutas silenciosas de rádio. Que país era aquele que lhe traziam as imagens? Que país era aquele que não conhecia e tanto desejava viver! A pátria sentimo-la quando nos ausentamos dela ou quando ela se ausenta de nós. Aquele era o tempo da sua ausência e senti-a pulsar no sangue como o tropel de um cavalo que soltaram numa planície sem barreiras.
O Iliushin correu veloz pela pista. Esbelto, ergueu-se, descolou do solo e voou voltado para o universo, para o infinito, para o futuro sonhado e que vive no olhar eterno das mulheres como um poema nunca dito. Pela primeira vez, viajava nesse avião ao encontro das estrelas. Pensava ele…!
O voo da gaivota, tornou-se, um dia, triste, planado, rente ao chão. O vento deixou de encher as velas dos navios que rompiam oceanos em descobertas de mares nunca antes navegados. Os tambores ouvem-se apenas nas madrugadas em que a lua escapa da prisão das nuvens. Os carros de combate, como os do poema, jazem destroçados entre os pátios, onde se acumulam as tulhas dos vampiros. E o sonho, ah!, o sonho, refugiou-se, escondido, no único lugar onde não morre, nem o prendem, no olhar feminino do mundo.
Agora foi o tempo da pátria se ausentar dele, deixou-se ocupar, pela indignidade dos sucessores do reinado da voracidade. Mandadores sem lei, amordaçaram de novo a poesia, ergueram muros nas avenidas e prenderam a armada da liberdade no cais da infâmia. Reúnem-se à noite nos terraços dos palácios e descem em bandos reunidos em torno do Partido da Gente Vaidosa e do Partido dos Filhos dos Merceeiros de Bairro.
Contudo, nos intervalos desse ruidoso baile, o sonho espreita e ainda pressente o cântico do passado, daquela manhã, entre a neve. Talvez seja impressão sua quando pensa escutar essa voz árabe que desce do castelo em lembrança de um tempo que parecia não ter fim e em busca de outras quimeras que parecem jazer nas necrópoles do que é imperecível.
Quem sabe, um dia, a história nos surpreenda…
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