01/03/10
CONTO DE NATAL
Numa manifestação de amizade e de admiração, remeti na quadra do Natal a Pavla Lidmilová, minha amiga de algumas dezenas de anos, três obras de autores portugueses que muito aprecio.
Um de Arsénio Mota, "Quase Tudo Nada", que ganhou o prémio literário Carlos de Oliveira de 2005, editado pelo Campo das Letras em 2006. É uma narrativa muito importante de um grande período da sua própria vida que se confunde com a vida de uma parte muito significativa da sociedade portuguesa. Um dos grandes escritores portugueses muito mal conhecido.
Um livro infantil, de José Pedro Messemer, pseudónimo de José António Gomes, "Versos com Reversos", destinado ao bisneto que nasceu durante o ano, para aprender a ler as primeiras letras em português.
O terceiro, "As Mais Belas Histórias Portuguesas de Natal" uma antologia de textos escolhidos por Vasco Graça Moura, em 2ª edição de Novembro de 2009, editado pela Quetzal Editores e que tem mais 15 textos em relação à 1ª edição de Novembro de 2008. A sensibilidade literária de Vasco Graça Moura permitiu-lhe escolher textos muito belos da literatura portuguesa praticamente perdidos no tempo.
Sem dúvida que foi este o livro que mais a sensibilizou. Pelo interesse das suas palavras permito-me transcrevê-las:
" Agradeço-lhe muito a sua carta e os três livros tão interessantes, principalmente estas magníficas "As Mais Belas Histórias Portuguesas de Natal", escolhidas por Vasco Graça Moura. Há anos, traduzi o conto "Natal", de Miguel Torga, que adoro. Junto a esta carta a cópia do "Simples Conto do Natal", que José Rodrigues Miguéis me tinha enviado em 1976, de Nova York, inédito. Mandei a ele a tradução checa, também escrita à mão. Há tantos anos! Talvez lhe interesse este belo e nostálgico conto de Natal do meu autor predilecto. Quanto aos "Versos com Reversos", de J.P. Mésseder, o meu bisneto ainda tem que esperar um pouquinho. Obrigada!
Tenho o gosto de enviar-lhe mais uma tradução minha de Fernando Pessoa "Cartas de Amizade, Amor e Magia" – Histórias da vida de Pessoa, uma selecção que acompanhei com breves comentários meus, e que saiu, há pouco, na apresentação gráfica de Jiré Voves. O Centro Português do Instituto Camões. De Praga, organizou aqui a leitura dos trechos deste livro"
Pavla Limilová é especialista e tradutora de literatura portuguesa na República Checa e foi bolseira da Gulbenkian.
Carta de José Rodrigues Miguéis para Pavla Lidmilová
"Querida Amiga,
Posso permitir-me a audácia de lhe oferecer este inédito – escrito na manhã de 20, na perspectiva do Natal próximo? Tenho o seu nome – mas não, infelizmente, a sua Imagem! – Constantemente diante dos olhos da mente. Como havia de esquecê-la numa época atormentada de nostalgias e memórias, num mundo que, apesar de crescer assustadoramente, se vai tornando de dia para dia mais pequeno para os que (como eu) envelhecem? Posso agora desejar-lhe um ano de 1977 cheio de felicidades e obras? Beija-lhe as mãos o admirador muito grato.
Simples Conto do Natal
Conheceu-a pelas vindimas, nas serranias do Alto Douro, quando as encostas pareciam escorrer sangue e oiro, e dos vales se erguiam as vozes das "rogas" entoando seus cânticos pagãos.
Loura, dum louro crespo e queimado dos sóis e dos frios, branca de neve mas tostada da intempérie e da sujidade, batendo o compasso das canções com os pés descalços na rocha dura dos caminhos, ou de cavaquinho a tiracolo para os peditórios pelas quintas, ela teria pouco mais de quinze anos, e nos olhos verdes uma ardente cintilação, que vinha dos remotos tempos de Suevos e Visigodos. Foi da boca dela que ele recolheu as mais belas canções da região. Ouvindo-a a cantar e tocar, amou-a logo. Era poeta, pobre, e vinha da Cidade. Ela nascera e vivia num lugarejo perdido nos boqueirões da Serra. Ele tomou-lhe da mão e disse: "Tu serás uma Princesa. Hei-de coroar-te de rosas e brilhantes, vestir-te de sedas e arminhos. Os teus pés calçarão sandálias douradas…"
Amaram-se. Quando ele regressou à Cidade, ela acompanhou-o, levando consigo o cavaquinho. Foram morar num bairro antigo e pobre, de ruas íngremes e sinuosas, numa água-furtada donde se avistava o "mar" coalhado de vapores.
Viviam de quase nada. Ele versejava, fumava, sonhava, ficava na cama até tarde. Amavam-se noite e dia com fervor e paixão, ele sempre de olhos mergulhados na verde joalharia dos olhos dela. Ela era agora alva, rósea e diáfana como um Princesa. Em vez da prometida coroa, entanto, tinha apenas os caracóis de ouro dos cabelos; e nos pés, em lugar das sandálias douradas, modestos sapatos de trança. Viveram assim, por muito tempo, meses, anos talvez, sem dar por isso: felizes. Até que um dia, não tendo em casa o que comer, nem esperanças de o ganhar, ela desceu da água-furtada à rua, em busca de um freguês que lhes pagasse o custo da ceia de Natal.
Nova York, 20 de Dezembro de 1976
José Rodrigues Miguéis"
ESTATÍSTICAS
"A estatística pode ajudar a compreender o mundo. É uma ferramenta poderosa e eficaz para pôr a economia, o bem-estar social, os desportos e os assuntos de saúde em perspectiva. Transforma os dados em informações com significado e mostra-nos uma forma equilibrada de olhar para situações que, ou têm traços aleatórios, ou desconhecidos. Mas devemos usar o senso comum quando nos servimos da estatística ou de outras ferramentas que partem da nossa experiência do mundo para transformar dados em conclusões significativas. Pensar cuidadosamente através de deduções que seguem argumentos estatísticos pode ajudar-nos a evitar os perigos da tontice estatística. Enquanto que os números não mentem, a forma como nos são apresentados permite que nos iludam um bocadinho."
(1)
O tempo sobrava e essa quase excepcionalidade conduziu-me aos corredores da livraria por onde deambulei entre títulos, histórias, romances, vidas e lugares. A secção onde parei tinha o título, Matemáticas e não resisti ao fascínio da leitura pormenorizada dos títulos e um deles atraiu-me o olhar, O Matemático Disfarçado. Estava agora nas minhas mãos com aquele cuidado com que sempre lhes toco e o acaso levou-me até à página 87 onde deparei com a citação acima transcrita. Para a eventualidade da primeira leitura não ser perfeita ou não ter entendido a totalidade da escrita, volto a ler com mais atenção e, concluo, não me encontrar enganado. É isso mesmo que os autores quiseram afirmar.
Vivemos num tempo em que o poder e todos os seus acólitos nos jorram teses sobre teses que provam e demonstram que trabalhamos pouco, ganhamos muito, vivemos acima das nossas possibilidades, é necessário racionalizar os empregos, caso contrário a produtividade deixa de ser competitiva, devemos aumentar os ritmos de trabalho, descansamos demasiado, viajamos sem razão, divertimo-nos sem limites e, estamos a mais na sociedade, porque as estatísticas assim o demonstram. Números infalíveis, arrasadores, a transparência da verdade, estudos sobre estudos que se transformam em médias que falam por si, sem mais. E agora, deparo-me com uns indivíduos que me dizem que "a estatística pode ajudar a compreender o mundo" e não mais que isso. Não o mudam, não o transformam, não o substituem, nem sequer o explicam, apenas e só, ajudam a compreendê-lo e para que tal aconteça, ainda é necessário que saibamos interpretar os números que nos colocam à frente. E insistem, os autores, é uma ferramenta poderosa e eficaz para colocar o mundo em perspectiva, sendo necessário, saber olhar, penetrar e interpretar o que nos é dado ver.
Hesitante, questionei-me sobre quem seriam estes senhores que contrariam os governos, os ministros, os empresários, essa casta de incompetentes que só sabem direccionar as empresas e a sociedade para o fabrico continuado de lucros, grande parte das vezes, fictícios e sem riqueza a sustentá-los, conduzindo amplas camadas de seres humanos a uma vivência precária, instável e quantas vezes, mísera. Teriam algum valor académico, saberiam o que escreviam, teriam consciência da grandeza das suas afirmações quando está estatisticamente provado que tenho um salário médio elevado, que disponho de bens, em média, que não vislumbro, que não morrerei antes dos 80 anos e que tenho de trabalhar de forma mais célere, pois os números mostram que, em média, não estou a dar rendimento? Não, os indivíduos afinal são conceituados professores catedráticos de também elas conceituadas escolas desse pilar dos intelectuais conformados que são os EUA. Portanto, sabem o que afirmam, o que escrevem, as conclusões que extraem dos seus estudos das suas investigações e avisam-nos para "os perigos da tontice estatística" e deixam-nos uma mensagem que não devemos esquecer, de que nos andam a iludir com a utilização dos números. Não nos iludam apenas, mas antes, vivemos numa sociedade que assenta os seus valores sobre monumentais intrujices para justificarem a vida obscena dos senhores que se apoderam do mundo e das nossas vidas.
O caminhante do mundo que é Gonçalo Cadilhe, dizia-nos numa das suas crónicas que os arranha-céus são as catedrais modernas e que embora os primeiros tenham chegado mais alto, as segundas viam mais longe. É este o mundo do nosso tempo que cresce muito, mas não consegue espreitar para além de si próprio.
(1)
"O Matemático Disfarçado", Burger, Edward B. e Starbird, Michael, Academia do Livro
FAMÍLIA E CASAMENTO
Agora que esmoreceu o debate, se não o escândalo, sobre o alargamento legal do casamento a pessoas do mesmo sexo, talvez seja oportuno dar uma vista de olhos à evolução estrutural dessas duas veneráveis instituições que são a família e o casamento.
Como se costuma dizer, os números falam por si, pelo que me dispensarei de fazer comentários, permitindo, assim, que o leitor tire as suas próprias conclusões.
Todos estes dados foram retirados, com a devida vénia, da obra "História da População Portuguesa", coordenada por Teresa Ferreira Rodrigues, Edições Afrontamento, 2008 e, directamente, do Instituto Nacional de Estatística, quando mencionado (INE).
Número de famílias recenseadas em 2001: 3.089.745
Casados: 81%
Com filhos: 52%
Sem filhos: 29%
Uniões de facto: 6%
Com filhos: 4%
Sem filhos: 2%
Monoparentais: 13%
Mãe com filhos: 10%
Pai com filhos: 2%
Avós com netos: 1%
Dimensão das famílias:
Média:
4,1 elementos em 1950
3,7 em 1970
3,1 em 1991
2,8 em 2001
Com 5 ou mais elementos:
25,1% em 1981
11,4% em 2001
7,4% em 2008 (INE)
Com apenas 1 indivíduo (na maioria com + 65 anos):
10,8% em 1960
17,6% em 2008 (INE)
Idade média dos nubentes no primeiro casamento:
Ano Homens Mulheres
1970 26,6 24,3
1980 25,4 23,3
1990 26,2 24,2
2000 27,5 25,7
2008 (INE) 29,7 28,1
Idade média das mulheres ao primeiro filho:
23,6 anos em 1981
28,4 anos em 2008 (INE)
Número médio de filhos por mulher em idade fértil:
3,16 em 1960
2,71 em 1970
2,05 em 1980
1,53 em 1990
1,48 em 2000
1,37 em 2008 (INE)
Nascimentos fora do casamento:
10% em 1980
20% em 1997
36% em 2008 (INE)
Casamentos religiosos:
90% nos anos 60
75% nos anos 80
45% em 2008 (INE)
Taxa de Divórcios:
0,1%o em 1960
0,7%o em 1981
2,5%o em 2008 (INE, valor provisório)
Dados relacionados com esta temática:
População jovem (-15 anos) e idosa (+ 65 anos):
Ano Jovem Idosa
1970 28,47 9,90
1981 25,51 11,45
1991 19,99 13,61
2001 16,00 16,35
2008 (INE) 15,27 17,64
Nota final: No Censo de 1991, o INE introduziu uma nova unidade estatística (para além da "família clássica"), a "família institucional", definindo-a como "Conjunto de indivíduos residentes num alojamento colectivo que, independentemente da relação de parentesco entre si, observam uma disciplina comum, são beneficiários dos objectivos de uma instituição e são governados por uma entidade interior ou exterior ao grupo"…
A REPÚBLICA DOS JORNALISTAS *
Quando era miúdo não perdia um western. Era-me muito fácil identificar o herói e o vilão. Sempre com uma grande esperança que o bem e o bom (o artista) triunfassem, era com enorme alívio que assistia ao happy end que previamente "exigia", com o herói (o artista) a beijar a professora angelical (a actriz), depois do vilão ter sucumbido às mãos do primeiro. Víamos os filmes de forma muito activa : pateava-se, assobiava-se e aplaudia-se. O cinema era vivido intensamente e, na nossa ingenuidade, era o espelho da vida.
A ingenuidade não é uma fase muito duradoura. O estereótipo fatiga e pode originar alguma perversidade. O cinema mudou de paradigma e apareceram os anti-heróis, ainda assim uma espécie de heróis, mas imperfeitos. Antecipei-me ao movimento e de forma mais radical : dei por mim a sentir uma certa simpatia pelos maus da fita. Nunca ganhavam, morriam sempre e eram odiados pelas mulheres. Tinham mau aspecto, usavam barbas enormes, mascavam tabaco que cuspiam de forma rasca. Percebi que esta caracterização das personagens era demasiado simplista e dei por mim a torcer pelo vilão. Quanto aspirei por ver o John Wayne levar um enxerto de porrada. Nunca vi. O mais próximo disso, foi o quase empate técnico no memorável duelo do filme : o Homem Tranquilo.
Com o 25 de Abril acabou a censura e a Imprensa, finalmente, pode ser livre. A comunicação social goza de um estatuto muito largo no uso do direito da liberdade de expressão, na minha perspectiva intocável, que a força da corporação potencia consideravelmente, muito particularmente quando o objecto é a coisa pública ou o poder político. Guterres foi trucidado, Ferro ostracizado e Santana enxovalhado. Porém, nada de semelhante com o ataque de que tem sido alvo Sócrates. Não é uma personalidade da minha especial simpatia política ou ideológica, mas, contraditoriamente ou não, passei a tender a desculpabilizar os seus pecados em função da sanha inquisitória de que tem sido alvo. Uma parte da Comunicação Social fez dele alvo preferencial, os restantes sentem-se constrangidos e condicionados na sua defesa, e o que se assiste é a um ataque sem precedentes contra uma figura de Estado, dirigida a partir dos media. Os partidos políticos alinham nessa orgia, tentando tirar dividendos e posicionando-se como se fossem o reverso do vilão. Os jornalistas são os heróis, a oposição faz política segu(i)ndo a agenda mediática. Lamentavelmente, a esquerda não se diferencia da direita na denúncia em curso. É pena. O julgamento de Sócrates segue na praça pública e no Parlamento até à exaustão final.
"Há, entre nós, um grupo de jornalistas que criou um universo fechado regido pelas suas convicções e que julgam sobrepor-se ao mundo real, em nome da liberdade de imprensa …. A tal República dos Jornalistas paira, nefelibata, sobre as nossas cabeças. O país assiste estupefacto a este carnaval, sem o compreender muito bem, e encaixa-o nos fait divers do entretenimento inconsequente." (*)
A direita raramente me surpreende e as atitudes que toma estão conformes à sua constituição genética. Da esquerda esperava seriedade política e serenidade verbal. O que não tem acontecido, de todo. Porém, se no seu julgamento não couberem dúvidas que Sócrates é o mal maior, então impunha-se a apresentação de uma moção de censura. Sem drama ou fogueiras. Com a tranquilidade de quem quer clarificar e limpar a vida pública, tendo como base uma análise coerente e irrepreensível da actual situação política. O tacticismo é inaceitável se estão em causa, como dizem , direitos fundamentais e a sobrevivência do país. A ser assim, se nada se fizer, perderemos todos.
* Citando comentário de Artur Carvalho, no Público
USOS E ABUSOS
http://www.seattlepi.com
Na actual controvérsia sobre a liberdade de expressão e a alegada tentativa do governo de controlar os meios de comunicação, chegou-se a um estranho paradoxo: o duma democracia que não acredita em si mesma, nem na própria liberdade, no momento em que se usa e abusa dela.
Arrumemos em primeiro lugar a razão para o escândalo, vinda de quem vem. Não está na natureza do poder, nem nunca esteve, ser passivo ou abstinente quando se trata de se reforçar.
A superioridade da democracia não está em não poderem ter lugar no seu regime governos com tiques anti-democráticos, mas está antes nos contrapesos que é capaz de estabelecer, ao contrário duma ditadura que começa por meter na cadeia a oposição toda (o que, diga-se de passagem, pode ser uma tentação bem intencionada, por que, como dizia Platão, a tirania é o modo de governo "em que a mudança é susceptível de ser mais fácil e mais rápida").
Se o governo tentou realmente controlar a TVI e tinha de facto um plano "tentacular", não fez mais do que está "na massa do sangue" de qualquer partido, como se viu muitas vezes no passado. Contra isso, assistimos a um "levantamento" na comunicação social e no parlamento que o governo, como era de esperar, considera uma campanha contra a própria governação, mas que é a melhor prova de que a liberdade funciona, embora não saibamos se o contrapeso está calibrado ou deve ser tratado como um outro poder, ele próprio, em flagrante manifestação de abuso (refiro-me, é claro, às escutas).
Ora, não é quando as virtudes e os vícios da democracia se exercem com tanto élan que podemos dizer que existe asfixia democrática, ou que as liberdades estão em perigo.
Mas a justa medida é necessária em todas as coisas. E é pena que o clamor venha apenas dos outros partidos, quando sabemos que só lhes falta a oportunidade para fazerem o mesmo, que abençoam ou já abençoaram regimes sem liberdade e que alguns contemporizam com a anomalia madeirense.
Esse exclusivo dos partidos em dar voz aos sentimentos democráticos é uma causa evidente de desmoralização.