Numa manifestação de amizade e de admiração, remeti na quadra do Natal a Pavla Lidmilová, minha amiga de algumas dezenas de anos, três obras de autores portugueses que muito aprecio.
Um de Arsénio Mota, "Quase Tudo Nada", que ganhou o prémio literário Carlos de Oliveira de 2005, editado pelo Campo das Letras em 2006. É uma narrativa muito importante de um grande período da sua própria vida que se confunde com a vida de uma parte muito significativa da sociedade portuguesa. Um dos grandes escritores portugueses muito mal conhecido.
Um livro infantil, de José Pedro Messemer, pseudónimo de José António Gomes, "Versos com Reversos", destinado ao bisneto que nasceu durante o ano, para aprender a ler as primeiras letras em português.
O terceiro, "As Mais Belas Histórias Portuguesas de Natal" uma antologia de textos escolhidos por Vasco Graça Moura, em 2ª edição de Novembro de 2009, editado pela Quetzal Editores e que tem mais 15 textos em relação à 1ª edição de Novembro de 2008. A sensibilidade literária de Vasco Graça Moura permitiu-lhe escolher textos muito belos da literatura portuguesa praticamente perdidos no tempo.
Sem dúvida que foi este o livro que mais a sensibilizou. Pelo interesse das suas palavras permito-me transcrevê-las:
" Agradeço-lhe muito a sua carta e os três livros tão interessantes, principalmente estas magníficas "As Mais Belas Histórias Portuguesas de Natal", escolhidas por Vasco Graça Moura. Há anos, traduzi o conto "Natal", de Miguel Torga, que adoro. Junto a esta carta a cópia do "Simples Conto do Natal", que José Rodrigues Miguéis me tinha enviado em 1976, de Nova York, inédito. Mandei a ele a tradução checa, também escrita à mão. Há tantos anos! Talvez lhe interesse este belo e nostálgico conto de Natal do meu autor predilecto. Quanto aos "Versos com Reversos", de J.P. Mésseder, o meu bisneto ainda tem que esperar um pouquinho. Obrigada!
Tenho o gosto de enviar-lhe mais uma tradução minha de Fernando Pessoa "Cartas de Amizade, Amor e Magia" – Histórias da vida de Pessoa, uma selecção que acompanhei com breves comentários meus, e que saiu, há pouco, na apresentação gráfica de Jiré Voves. O Centro Português do Instituto Camões. De Praga, organizou aqui a leitura dos trechos deste livro"
Pavla Limilová é especialista e tradutora de literatura portuguesa na República Checa e foi bolseira da Gulbenkian.
Carta de José Rodrigues Miguéis para Pavla Lidmilová
"Querida Amiga,
Posso permitir-me a audácia de lhe oferecer este inédito – escrito na manhã de 20, na perspectiva do Natal próximo? Tenho o seu nome – mas não, infelizmente, a sua Imagem! – Constantemente diante dos olhos da mente. Como havia de esquecê-la numa época atormentada de nostalgias e memórias, num mundo que, apesar de crescer assustadoramente, se vai tornando de dia para dia mais pequeno para os que (como eu) envelhecem? Posso agora desejar-lhe um ano de 1977 cheio de felicidades e obras? Beija-lhe as mãos o admirador muito grato.
Simples Conto do Natal
Conheceu-a pelas vindimas, nas serranias do Alto Douro, quando as encostas pareciam escorrer sangue e oiro, e dos vales se erguiam as vozes das "rogas" entoando seus cânticos pagãos.
Loura, dum louro crespo e queimado dos sóis e dos frios, branca de neve mas tostada da intempérie e da sujidade, batendo o compasso das canções com os pés descalços na rocha dura dos caminhos, ou de cavaquinho a tiracolo para os peditórios pelas quintas, ela teria pouco mais de quinze anos, e nos olhos verdes uma ardente cintilação, que vinha dos remotos tempos de Suevos e Visigodos. Foi da boca dela que ele recolheu as mais belas canções da região. Ouvindo-a a cantar e tocar, amou-a logo. Era poeta, pobre, e vinha da Cidade. Ela nascera e vivia num lugarejo perdido nos boqueirões da Serra. Ele tomou-lhe da mão e disse: "Tu serás uma Princesa. Hei-de coroar-te de rosas e brilhantes, vestir-te de sedas e arminhos. Os teus pés calçarão sandálias douradas…"
Amaram-se. Quando ele regressou à Cidade, ela acompanhou-o, levando consigo o cavaquinho. Foram morar num bairro antigo e pobre, de ruas íngremes e sinuosas, numa água-furtada donde se avistava o "mar" coalhado de vapores.
Viviam de quase nada. Ele versejava, fumava, sonhava, ficava na cama até tarde. Amavam-se noite e dia com fervor e paixão, ele sempre de olhos mergulhados na verde joalharia dos olhos dela. Ela era agora alva, rósea e diáfana como um Princesa. Em vez da prometida coroa, entanto, tinha apenas os caracóis de ouro dos cabelos; e nos pés, em lugar das sandálias douradas, modestos sapatos de trança. Viveram assim, por muito tempo, meses, anos talvez, sem dar por isso: felizes. Até que um dia, não tendo em casa o que comer, nem esperanças de o ganhar, ela desceu da água-furtada à rua, em busca de um freguês que lhes pagasse o custo da ceia de Natal.
Nova York, 20 de Dezembro de 1976
José Rodrigues Miguéis"
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