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01/11/09

EM JALALABAD PARA SEMPRE

Alcino Silva
Jalalabad

Não recordo o momento em que conheci o jornalista, esse instante em que me deixei cativar pela escrita, pela riqueza das suas reportagens e pela grandeza dos seus valores suportados por esse caminhar humano através da história. Quando procuro no tempo da memória, só consigo reviver as montanhas brancas dos cumes dos Himalaias que entravam pelas janelas do IL62 quando sobrevoava as estradas da rota da seda, mas certamente que esse não foi o momento. Certeza apenas uma, foi com ele que cheguei a Cabul, a essa cidade escondida entre montanhas que se erguem altivas e serenas sobre o vale onde em tempos remotos o homem se sedentarizou. Olhei em redor com aquele misto de admiração e reflexão, tão comum nos seres humanos quando são colocados num estádio cultural diferente do seu. Com aquele homem da imprensa aprendi a assimilar o que contemplava, antes de concluir. Em cada rua percorrida, em cada rosto que olhava, em cada gesto que presenciava, percebia a riqueza da diferença. O novo penetrava-me o pensamento com essa rapidez que nos deixa estonteados e as velhas ruas da cidade, esse espaço antigo, perdido num tempo impensável, deslumbrou-me de tal forma que me deixou estático, nessa imobilidade que nos provoca o encanto de tudo aquilo que nos aparece como existindo no domínio da fantasia. Acordei daquele torpor, com outro instante de fascínio. Por sobre a algazarra das vozes, por entre o movimento desordenado das gentes, surgiu o cântico do muezzin apelando à oração, à veneração a Deus, a esse Altíssimo e Misericordioso ser que vela sobre os homens. Como uma ave planando sobre a terra, com o vento a alterar a tonalidade dos sons, era como se o sol da manhã descesse em voo lento sobre Cabul.
A presença armada não era muito visível, mas sentia-se o pulsar daquela revolução que procurava arrastar o Afeganistão para o exterior de tempos medievais. Percebia-se no rosto dos jovens, no olhar das mulheres que recuperavam a dignidade e em todos aqueles que procuravam o infinito para além das montanhas que cercavam a cidade. Havia uma excepção nesse fervor de transformação, representada por esses guerrilheiros, que se escondiam no interior daquelas encostas, de Deus, diziam eles, mas não daquele que saía em apelo da alma do muezzin que no parapeito do minarete chamava os crentes em apelação divina. Aquele Deus, era outro mais violento, construído pelos homens, não à sua medida, mas antes, dos seus interesses.
Quando a primavera se aproximava, o jornalista segredou-me que viajaríamos para Jalalabad, aproveitando o facto da guerrilha ainda ter dificuldade em percorrer as veredas nevadas das montanhas. A saída da cidade deixou-nos essa sensação de esmagamento perante a grandiosidade da paisagem, da pedra nua, quase sem árvores, sem vegetação, antes a brancura da neve, o frio gélido da temperatura e o tumulto das águas do rio Cabul que nunca soube que mar procurava. Os túneis e os precipícios derretiam-nos o olhar num misto de fascínio e temor. Tudo o que era humano, resultava minúsculo naquele cenário avassalador. As extensas rectas do planalto que nos avisavam da proximidade do destino, faziam-nos transportar para um mundo que apenas sabíamos existir nos sonhos da imaginação. Nunca cheguei a conhecer a razão, mas não regressaria de Jalalabad.
As encostas despidas perderam-se nos últimos desfiladeiros onde a estrada, rasgava a pedra, comprimida pelo curso do rio. O ruído das águas apressadas num misto de verde e cinzento eram o único som a quebrar aquele silêncio imposto pela grandeza da natureza. A paisagem abre-se e a cidade acolhe-nos na verdura das suas árvores, na riqueza dos seus jardins, na beleza das suas flores que nos acolhem com as suas cores lembrando-nos a poesia milenar das antigas terras da Bactria.
A jornalista chegou muitos anos depois. A revolução fora vencida pela intolerância dos homens que dizem falar em nome de Deus. Na verdade, apenas falam em nome da sua própria ignorância, da sua incapacidade em compreender a humanidade, dos interesses dos senhores que recusam, mesmo sem o saber, abandonar uma época que já não existe. A cultura, as tradições, os valores não são preservados pelo fanatismo, mesmo quando exercido em nome de um Deus que os homens imobilizaram em medievais tempos e em subterrâneos inquisitoriais. A sua preservação resulta antes da liberdade do pensamento e da beleza dos gestos humanos expressos em sentimentos que não se podem esconder, nem por trás de véus, nem na renúncia à dignidade. Jalalabad nunca se rendeu a estes homúnculos. A revolução tombou com a dignidade dos homens que olham o infinito e agarram as estrelas como palavras com que aprendem a escrever futuro. A cidade entregou-se por acordo e foi dessa forma que mergulhou nas trevas de uma guerra e de um tempo que tolda de secura a garganta da história. Seduzido pela beleza da sua cultura, pelos seus jardins repletos de poesia, pelas Primaveras em que a neve derretida tombava em caudalosas águas, pela resistência à estupidez de uma revolta sem sentido, deixei-me ficar para esse sempre sem fim, bebendo séculos da vida humana nessa terra milenar que os rios da história atravessaram de forma sucessiva. Despedi-me da jornalista na saída da cidade, onde as cores tendem a unificar-se no tom ocre da montanha, junto à barragem que o Cabul e as águas que descem dessas neves que não derretem, alimentam. As palavras esgotaram-se por momentos. Se voltar, não me procure entre os soldados mercenários da NATO, disse-lhe. Procure-me antes entre os homens livres, no bazar entre as cores e os aromas, persiga o canto que desce das mesquitas, ou entre os livros de antigos poemas em dari. Se não me encontrar, não desista. Procure ainda entre as rosas que as mulheres afegãs guardam no interior dos seus olhos, escondidos atrás desses panos, mas que cintilam como as estrelas do universo.

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