De onde lhe vinha desde novo o gosto pela música clássica? a ele que nascera e crescera, nos idos de cinquenta e sessenta, com vossa licença, na ilha do penico, bom, na ilha do penico não, que mesmo em meio pobre há classes ou pelo menos uma psicologia de classe, a ilha do penico era mais propriamente a ilha grande, chamada da fonte, que ficava pegado, aí com umas três ou quatro compridas e paralelas bandas contínuas de casinhas viradas para umas não menos compridas e paralelas, estas comuns, meias canas em cimento de esgoto a céu aberto, como, aliás, comuns eram as retretes e chuveiros de água fria, dispostos perpendicularmente às casinhas, não há como chamar-lhes casas, tão pequenas que eram, tendo as retretes e chuveiros telhados em cimento, era aqui que eu queria, por agora, chegar, às apetecidas placas que ele e os rapazes da sua idade lá do bairro, atenção, do bairro e não da ilha, não que não dispusesse também de retretes e chuveiros de água fria comuns e que, pelo menos, não existisse precisamente à porta de casa dele uma saída comum de esgoto a céu aberto, mas tudo tinha, mais psicológica do que fisicamente, uma disposição prematura de condomínio fechado, estão a ver, pobre, a armar ao remediado, mas honrado, sobretudo tinha muito menos moradores, bom, mas o que eu queria dizer era que ele e os rapazes da sua idade lá do bairro gostavam era de trepar pelo muro alto de pedra seca e teias de aranha que separava o bairro da ilha grande para se sentarem e estenderem em cima das placas das retretes da ilha aquecidas pelo sol, de onde apreciavam a pobreza do mundo e sonhavam ser marinheiros ou aviadores, ele sonhava ser marinheiro, por isso perdia as horas a observar o bulício do porto de Leixões, enquanto falavam da música de Bach ou de Mozart? não creio, então porque gostava ele de música clássica desde jovem já que, manifestamente, esse gosto não advinha do meio? porque, segundo o que a mãe lhe dissera, o seu avô paterno que não conhecera tocava rabecão? é possível, o certo é que ele gostava muito de ver os programas vienenses de António Victorino D’Almeida e, claro, os famosos concertos novaiorquinos para jovens de Leonard Bernstein, que tanto coloriam a televisão a preto e branco, ia ver concertos ao Rivoli e ópera ao Coliseu, como trabalhava desde muito novo sempre tinha dinheiro quanto mais não fosse para pagar um lugar no galinheiro, depois vieram os discos e as cassetes pirata, embora não haja nada como um concerto ao vivo, aquilo a que gosta de chamar música com tosse, enfim, se lermos a recente obra em dois volumes de António Victorino D’Almeida, “Toda a música que eu conheço”, essa “viagem essencial à história da música ocidental”, que se arrisca a ser uma obra incontornável, até pelo seu tom assumidamente polémico, percebemos com clareza que a música tem uma força poderosa, capaz de desviar dos caminhos tradicionalmente seguros do grau académico e da profissão com futuro, sempre compreensivelmente desejados pelos pais para os filhos, muitos dos seus mais geniais compositores.
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