01/07/08
APONTAR A MÁSCARA
"Prefiro contemplar alguns cenários de teatro onde encontro, artisticamente tratados numa trágica concisão, os sonhos que me são mais caros. Estas coisas, por serem falsas, estão infinitamente mais próximas do verdadeiro, enquanto a maior parte dos nossos paisagistas são mentirosos, precisamente porque descuram a mentira."
Charles Baudelaire (citado por Walter Benjamin in "A Modernidade")
Como deveríamos chamar a este efeito da mentira ou do artifício que se nos apresenta como tal, desistindo de se introduzir de contrabando como verdade, verdade a que não pode aspirar por prescindir à partida de quem o leia e o interprete?
Isto tem, sem dúvida, algo do "larvatus prodeo" de Descartes. Eu avanço mascarado e apontando para a máscara, como se dissesse: este não sou eu. Nenhuma aparência pode pretender representar a realidade, e é por isso que a máscara diz a verdade, mentindo.
Ou então é o efeito de distanciamento concebido pelo teatro de Brecht. A empatia com o público deve ser a todo o momento interrompida, com o dedo que aponta a máscara: cartazes com legendas, infracções ao ritmo dramático ou inversão da relação do público e da cena. É a ética da vigilância crítica e do didactismo revolucionário que estende ao público burguês a sua teia de má consciência e, no fundo, fazendo-o pagar duas vezes pelo espectáculo.
A verdade na arte nunca se pode, pois, atingir directamente e, de resto, a ética não tem aqui sentido.
A verdade a que a arte pode aspirar é a da percepção individual dos limites, essa fronteira entre o que sentimos como um acréscimo de mundo e de inteligência para o compreendermos e a experiência do continuum, do que já, por assim dizer, passou à história.
OS CAVALEIROS DO ASFALTO
Dizia um entrevistado, muito revoltado : “… como vamos trabalhar ? Com café, leite e pão, ainda andamos, mas sem carro, não vamos a lado nenhum…”, enquanto uma senhora com o carrinho cheio de compras, exaltada comentava: “…eles estão a lutar por nós…a maioria está adormecida, mas estes estão a revoltar-se e fazem bem…“ .
Incomoda-me este tipo de argumentos e incomoda-me que a comunicação social desvalorize sistematicamente o trabalho dos partidos e dos políticos e valorize este tipo de “reality show” em directo, com os cromos mais à mão.
Com o apoio mais que suspeito de quase toda a opinião publicada, incomoda-me que dois ou três arrivistas tenham conseguido organizar uma paralisação, imposto a sua vontade de forma arrogante e tenham parado o país, o que conseguiram parcialmente. Ou será que estou enganado e devo conformar-me, uma vez que esta classe política, que nos governa e que apenas admite os incapazes e os capazes de tudo, estava mesmo a pedi-las ?
Mas, afinal, para além do sucesso mediático, que mais conseguiram os camionistas ? Nada de particularmente relevante, pelo que li. Os meios, terão sido, afinal, os fins que os promotores tinham em vista. Uma manifestação de força, a ameaça de poder parar o país e, pelo caminho, pesar a capacidade de resposta do Governo e aproveitar a vaga de fundo para humilhar o executivo e fragilizar o PM, que vai perdendo o brilho e a vantagem para a concorrência.
Coincidência ou não, a esta paralisação que foi o auge da crise petrolífera, antes da silly season, sucedeu o Congresso do PSD/PPD. Manuela Ferreira Leite, com meia dúzia de chavões, viu a sua figura fortemente revigorada, em função do da boa imprensa que tem e da forte propaganda que a SIC lhe concedeu. O PSD corre mais forte para suceder ao PS.
Não é, todavia, o menor brilho do PM e a notoriedade de Manuela Ferreira Leite que me tiram o sono. Incomoda-me esta incapacidade do Governo de saber usar a autoridade que lhe é conferida democraticamente. Incomoda-me esta incapacidade de saber separar as águas, por parte da oposição de esquerda.
Habituei-me a ouvir o apelo à unidade na acção entre trabalhadores, intelectuais e pequenos e médios empresários, contra o capitalismo monopolista e a exploração, mas incomoda-me que não houvesse uma descolagem clara da esquerda em relação a este movimento, porque concordo, inteiramente, com José Miguel Júdice quando escreve: “… a acção dos camionistas é protofascista …. os movimentos de pequenos patrões em cólera, liderando os seus trabalhadores numa espécie de corporativismo de base, habitados por violência e sem enquadramento ideológico e estratégico, nunca se traduzem num avanço do “proletariado”, mas numa futura instrumentalização – quiçá paradoxal – por uma liderança autoritária e populista, que acaba por fazer recuar o processo de emancipação social…”
LUGARES
A PROPÓSITO DA NOVA CRISE PETROLÍFERA
TEMPOS DIFÍCEIS
As primeiras cinco décadas do século passado foram muito difíceis para a maioria da população portuguesa por falta de trabalho, de alimentação, de habitação, de saúde e de tudo o resto.
No período da 2ª guerra mundial, alguns produtos alimentares, como as farinhas, o azeite e o açúcar, eram racionados, através da atribuição de cadernetas e de senhas de racionamento. Os combustíveis também eram racionados. As pessoas com mais dificuldades vendiam os produtos comprados com as senhas de racionamento para comprar, com o dinheiro conseguido, outros produtos alimentares mais necessários para as suas famílias. Alimentavam e alimentavam-se do mercado negro. Em muitas casas foi o tempo em que uma sardinha era para três pessoas. A carne estava praticamente ausente das refeições. Comia-se o caldo de unto, com couves do quintal, produtos duma produção doméstica. Uma parte significativa da população andava descalça, especialmente as crianças e as mulheres. Os socos, as chancas e as alpercatas passaram a ser usadas com a proibição de andar descalço na via pública, sendo a infracção sujeita a aplicação de multa pela polícia.
Com a instauração da república o ensino em Portugal evoluiu significativamente. Mas com a instauração do fascismo o ensino obrigatório não era tão obrigatório quanto isso. Nos primeiros tempos a grande maioria da população trabalhadora era analfabeta e quando os seus filhos frequentavam a escola não passavam do 1º grau da instrução primária que correspondia à 1ª e 2ª classes, primeira fase do ensino obrigatório, ensinada em grande parte do território por regentes escolares. Os portugueses só precisavam de saber ler, escrever e contar….
Com oito e nove anos e às vezes com menos idade, muitas crianças entravam no mercado de trabalho, abandonando a escola e às vezes a própria família, pois tinham de produzir para o seu próprio sustento. Enveredavam pelas profissões dos pais e de outros familiares por ser mais fácil. Quando havia um pouco mais de desafogo financeiro da família e alguns conhecimentos, procuravam uma profissão de maior qualificação mas não raras vezes tinham de pagar para aprender.
Os rapazes quando pretendiam uma féria para entregar à mãe para governar a casa, o mais certo era irem para moços de trolha. Começavam por carregar tijolos e a gamela da massa à cabeça. Os que eram oriundos das zonas da Maia, dos Carvalhos, Avintes, Perosinho e Sandim vinham muitas vezes a pé trabalhar para a cidade do Porto e regressavam a casa ao fim do dia pela mesma forma, com bom ou mau tempo.
Nos anos 50, muitas semanas só tinham três dias de trabalho em consequência da crise que se vivia e os operários só recebiam os dias que trabalhavam pois não beneficiavam de subsídio de desemprego, apesar de já estar institucionalizado e existir a respectiva tributação a que estavam sujeitos os trabalhadores e os patrões.
É evidente que com os filhos das classes abastadas nada disto se passava. Os grandes colégios internos e externos floresciam. O ensino primário era ministrado particularmente no próprio domicilio dos alunos. Tocar piano e falar francês ou alemão era sinal de classe social.
A existência, hoje, de concorridas escolas estrangeiras, evidencia condições de aprendizagem e de educação muito diferentes para as nossas crianças e jovens.
Uma parte significativa da actual população activa portuguesa conheceu directa e indirectamente estas condições de vida. São estas camadas sociais que estão agora a sofrer as consequências da crise que presentemente estamos a viver, que não é só económica e financeira.
Em que condições são instruídos e educados os seus filhos? Qual será o seu futuro?