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01/05/08

O PINTOR DE BATALHAS

Alcino Silva

Há uns meses atrás ao recuperar leituras atrasadas, encontrei uma entrevista do escritor Artur Pérez-Reverte a um jornalista do El País, a propósito de um livro que acabava de ser editado, titulado, “Pintor de Batalhas”. Conforme avançava na leitura sentia que uma certa perturbação crescia em forma de sentimento, uma certa angústia, um mal-estar que me fez procurar esquecer a entrevista quando terminei a leitura. Se a minha memória não se encontrasse tão frágil teria lembrado que umas semanas antes, uma amiga me teria dito que se encontrava a ler a referida obra. Entretanto, há dias essa amiga, ofereceu-me a leitura do livro. Num primeiro momento, não associei o romance que tinha nas mãos à entrevista que lera antes, mas ao olhar com atenção para a capa e ver a reprodução da pintura “O Triunfo da morte” de Brueghel, foi como se as portas da memória se abrissem totalmente. Com uma certa perturbação voltei a ler a entrevista e foi com grande ansiedade que me dediquei à leitura do livro.

È verdade que a morte é uma companhia permanente do ser humano, em certo sentido é o ponto final da vida tal como a conhecemos e a concebemos, mas o que o autor fez na visita ao Museu do Prado foi mostrar ao jornalista que a morte é uma constante da vida, que é a morte e não a vida que compõe os actos dos seres humanos. Quase se chega a entender das suas palavras, que a vida humana é a morte com um curtíssimo intervalo para viver. “o amor, a liberdade, a amizade, o orgulho, o humor, coisas que permitem suportar o horror, tornam agradáveis os 15 minutos da vida”. É ele que o afirma de forma pensada na visita ao Prado e não palavras colocadas no personagem que criou. Espanta e perturba como este ex-correspondente de guerra olha para os quadros de Goya, Brueghel ou outros mestres da pintura e procura nos gestos e nas atitudes dos homens, não sentimentos de vivência colectiva e social, não a vida que levavam, os sonhos que traziam, mas a raiva, a vingança, a ambição, o desejo de matar, a vontade de triunfar com a Morte, matando, esse querer bailar entre a morte como se o ser humano fosse seu companheiro. Artur Pérez-Reverte faz-nos sentir mal. Não por descobrirmos os nossos piores sentimentos, mas por não encontrar uma palavra de esperança, uma saída que permita estancar esses momentos de violência que fazem mergulhar a humanidade nos seus dias mais negros e sangrentos, que modifiquem essa ideia que expressa na frase, “a guerra é o estado normal do homem”. Ao olhar para os Goya, o escritor de língua castelhana o que ressalta, o que salienta aparece expresso na frase, “matar é o gesto mais antigo da humanidade” e apela à atenção do jornalista para a angústia dos homens que aparecem em luta. Não encontra olhares de vida, não vislumbra desejos de um mundo diferente e melhor, não distingue sonhos, desejos de infinito, voos de gaivota sobre as ondas. Não. Prefere ver apenas gargantas cortadas, degoladas, separando o corpo da cabeça que é o mesmo que o separar da mente, do pensamento, da vida. Este escritor ibérico, revela ser um homem perturbado e ao lermos a sua entrevista, faz-nos sentir também a nós abalados e se não conseguirmos parar a ideia para onde nos deseja conduzir parece que quase mergulhamos no abismo.

Entre os 12 e o 14 anos fui trabalhador involuntário de uma funerária. Trabalho simples. Parte da noite, dormia entre caixões e urnas aguardando telefonemas. De morte, naturalmente. Deste ou daquele hospital, ligavam e diziam: morreu alguém, há trabalho para vós. O resto era mais simples. No momento de destinar o corpo a um espaço talvez eterno, entre lágrimas de desespero, havia que manter a serenidade, para despojar as caixas de madeira do que tinham de valioso, cristos e asas de prata que haveriam de compor o próximo. Depois, lanchávamos que a vida continuava. Um dia, coube-nos em destino levar o cadáver de uma anciã do IML para a sua aldeia no concelho de Melgaço. Partimos às 4 da tarde e quando deixamos a EN 13 para um caminho municipal eram já 9 horas da noite de um dia de Outono, negro e escuro como todos aqueles que não têm luar. Uns quilómetros à frente e no cimo de um outeiro, a estrada terminou e das sombras saíram 20 ou 30 pessoas com uns fachos de luz a rasgar a escuridão. Trocadas meia dúzia de palavras, tomaram na noite o caixão e desapareceram em direcção ao interior montanhoso. Enquanto o carro fúnebre invertia a marcha, fiquei a ver aqueles fachos de luz a desaparecerem no interior da noite e, nesse momento, soltaram-se dentro de mim todos os fantasmas que a morte pode colocar em volta da vida. Em mim ficaram., para sempre.

A história que Artur Pérez-Reverte nos traz no seu livro, “O Pintor de Batalhas” é a vida de um homem que sendo fotógrafo em quase todas as guerras do fim do século XX, cansado das mesmas e do que viu nesses campos que chamaria de batalhas, mas a que ele chama, com razão, de morte, decide refugiar-se num castelo em ruínas na costa catalã e dar expressão numa pintura mural a tudo o que os seus olhos viram e fotografaram, mas não puderam intervir, segundo ele, pois defende a ideia do jornalista e do fotógrafo neutrais para melhor reproduzir o que encontra, sobretudo de mau, de violento, nas acções humanas. Na parte final da obra, o personagem criado, coloca em dúvida essa neutralidade, questiona-a e quase a contraria. Essa neutralidade que tantos invocam, assusta-me, sempre me assustou. Acodem-me à memória as palavras cantadas de Patxi Andion, “maldigo la poesia, concebida como um lujo, cultural para los neutrales”. Na verdade, sobretudo no mundo em que vivemos, a neutralidade é como os inocentes, um mito, um mito que é tantas vezes cómodo para fazer, deixar fazer, ou trazer à consciência conforto, pactuando dessa forma com tanta patifaria que o mundo assiste. É que por muito que se tivesse esforçado, o escritor do estado espanhol não deixou de ser parte activa nas guerras que relata e, foi até bem mais longe, pois que, ainda que lhe possamos desculpar as inverdades históricas que menciona – não chega dizer, “eu vi, estive lá”, pois quantas vezes, os nossos olhos vêem de acordo com as imagens que trazemos no pensamento e não aquelas que na realidade olhamos. Mas Artur Pérez-Reverte vai mais além no seu julgamento da história e dos homens, no seu conluio com a Morte, pois entre as muitas guerras que afirma ter presenciado, elegeu uma como perfil das suas descrições e nesse combate mortal, violento, sem sentido e selvático em que se transformou o conflito jugoslavo, não só toma partido, como transforma os carrascos em vítimas, seguindo o curso de um pensamento dominante de diabolização dos sérvios. Ora, a história já demonstrou que nas batalhas da antiga Jugoslávia, todos foram carrascos e vítimas e Pérez-Reverte não poderia ignorá-lo quando escreveu. Pelo que a sua afirmação, “eu vi, estive lá”, perde muito do seu valor e só servirá para engrandecer esse elogio da Morte que parece ressaltar do seu discurso, trazendo-nos à memória esse outro grito tão espalhado no seu território num tempo de violência desmedida, injusta e sem controlo, que berrava, “Viva la Muerte”.

Numa tarde quente e enevoada de fins de Agosto de 1973 chegava a Moscovo e entre as primeiras pessoas que encontrei, havia uma criança, de nome Pablo com cinco anos que em breve regressaria à sua pátria. Não regressou, pois esse excremento da história que deu pelo nome de Augusto Pinochet, transformou esse magnífico país que é o Chile num matadouro, de homens, de ideias, de vida social. Voltei a encontrar Pablo meses depois. Falava já outra língua para além da sua e a infância no seu país estava adiada por mais de 15 anos. Numa noite da primavera seguinte com a visão da neve a tombar para além das janelas, a boliviana Eliana fazia o relato dos mineiros do seu país, descendo da cordilheira e deitando-se nas ruas de La Paz para deterem os carros de combate da injustiça. Não detiveram, pois estes não pararam, prosseguiram a sua marcha por sobre os seus corpos. Chegaram depois, o brasileiro Bezerra, homem de 70 anos arrastado pelas ruas do Recife amarrado a um jipe militar golpista e o grego Christopoulos libertado após 20 anos nas masmorras dos coronéis que mergulharam a Grécia num manto de terror e silêncio onde só falavam as pedras. No regresso e quando o Ilyushin sobrevoava os Cárpatos, notícias diziam que os militares turcos semeavam uma onda de sangue em Chipre. A Morte sempre presente e os meus fantasmas de uma adolescência precoce.

Na verdade, não existem inocentes. De certa forma todos somos culpados, uns por acção, outros por omissão. O escritor em contradições quase imperceptíveis acaba por o reconhecer. Tanto na entrevista, como através do fotógrafo que colocou no romance insiste na inocência de alguns, mas quando este dialoga com o soldado croata, trazido à liça como vítima, este não deixa de lhe lembrar: “Voltou-se ligeiramente. O seu gesto abarcava as pessoas sentadas nas esplanadas ou que passeavam junto ao cais, com o seu bronzeado e os seus calções, com as suas crianças e os seus cães.

- Olhe para eles. Tão civilizados dentro do possível, desde que o esforço não seja muito. Pedindo as coisas por favor, aqueles que ainda o fazem… Meta-os num quarto fechado, prive-os do imprescindível e vê-los-á destruírem-se entre si.” Sendo verdade, tudo isto, não existe por parte do escritor uma leitura crítica, um apontar de caminhos de que existe ainda e também uma outra forma de olhar o mundo e a humanidade, de que o ser humano não está necessariamente condenado a essa mortandade que tanto aborda nos dois momentos de leitura. Talvez, o elemento essencial do conteúdo do livro, e da entrevista, é que Artur Pérez-Reverte menciona os caminhos da Morte como algo intrínseco à humanidade, esquecendo, propositadamente ou não, os mandantes, aqueles que dão ordens, os que são, de facto os senhores do mundo, os senhores da guerra, os donos da Morte. Sim que as guerras não se desencadeiam porque um grupo de homens decide simplesmente guerrear-se combater-se por mero prazer como saudação ou oferecimento à Morte. Esses confrontos que transformaram milenarmente a vida humana num confronto mortal que alimentaram o espaço e o reino da Morte, essas girândolas de sangue que exauriram os povos, tiveram sempre rostos, vontades, ambições na sua retaguarda. Os milhões de seres humanos sacrificados nesse altar de injustiça, podem ter agido, por nome e em defesa da pátria ou de outra qualquer razão patriótica, mas na esmagadora maioria dos casos nunca foram beneficiários ou interessados nesse fogo imenso aceso sobre o planeta. Porque razão, o autor deste romance não menciona este aspecto, preferindo antes encontrar no rosto dos mortos, dos que vão matar e dos que vão morrer sentimentos de desgraça e violência como justificantes do triunfo da Morte, tanto mais que nessa explicação estará o argumento maior para a compreensão de tanto sangue correr de corpos despedaçados por confrontos em guerras, sem lei e sem qualquer sentido, social e humano. É verdade que num momento da obra conduz o seu personagem até a um amigo, tentando que este lhe encontre respostas: “O amigo olhou-o em silêncio por uns segundos. Aristóteles, prosseguiu imperturbável, nunca se limitou a expor o que acontecia, procurando sempre o porquê. Para nos compreendermos, dizia, temos de compreender o universo; e, para compreender o universo, temos de nos compreender a nós próprios. O que acontece é que desde essa altura, muita coisa mudou. Divorciando-se da natureza, os homens perderam a capacidade de consolo face ao horror que espreita aí fora. Quanto mais observamos, menos sentido faz e mais desamparados nos sentimos.” Mas por aqui se fica. Escutado o conselho do amigo, o personagem afasta-se e continua a sua pintura de sangue e violência, não com o sentido de fazer ressaltar a vida, mas para nos conduzir sempre e cada vez mais para o domínio da Morte.

Por vezes, em viagem, detenho o automóvel na berma da estrada e saio para olhar o que se encontra em redor. Não falo, não penso, não reflicto, olho apenas. O verde da paisagem, o castanho-cinza das montanhas ou o azul do mar e do universo diurno. Sossegado, deixo que as lágrimas rolem e me limpem a alma. Não, não choro pela humanidade, sigo apenas as palavras de Hemingway, “não perguntes por quem os sinos dobram, eles dobram por ti”.

Artur Pérez-Reverte através deste seu “Pintor de Batalhas” e na entrevista ao jornal ao El País, conduz-nos ao Prado e, sobretudo, a Goya, mas essencialmente realiza a exaltação da Morte. Não sei se essa era a sua intenção, mas sei que essa é a impressão que nos deixa, o mal-estar que resulta da leitura das suas palavras e dos seus comentários. Por muito que a caminhada da humanidade venha deixando um rasto de sangue pelo planeta, necessitamos de outras palavras, de outras reflexões, de outros caminhos e os livros e os escritores também têm um largo papel a desempenhar e não me parece que esta seja a melhor forma, por muito verdadeiras que sejam as imagens transcritas. Apenas, um elemento positivo e de vida aparece na obra do escritor de língua castelhana, a figura feminina por quem o fotógrafo se apaixonou e cujos pensamentos nos traz nos intervalos do pintor a desenhar os cenários macabros dos instantes mais violentos do ser humano. Salientando a beleza que Olvido Ferrara colocava nos gestos e nas fotos que obtinha, dos objectos e da paisagem, da natureza enquanto instante, recusando corpos e rostos destroçados, Pérez-Reverte não deixa, mesmo assim, de lhe colocar diálogos, sem esperança: “Este mundo assusta-me, Faulques. Assusta-me porque me entedia. Não suporto que todos os tontos se proclamem parte da Humanidade e que todos os fracos se escudem na Justiça, que todos os artistas sorriam ou cuspam, que é a mesma coisa, ao marchand e ao crítico que os inventam. Quando os meus pais me baptizaram erraram o nome [Olvido] por milímetros. Hoje, para sobreviver na caverna do ciclope é preciso chamar-se Ninguém.” Por muitas verdades que nos relate, por muito cruéis que sejam as cenas da guerra, necessitamos de dar um passo além e não deixar que seja a Morte a ditar guerras a construir cenários, a galopar sobre os cadáveres como solução vingadora. Manuel Freire deu vida ao poema que entre outras palavras nos contava que “eles sabiam do banco da escola que o último pensamento era para a pátria amada. Lá saber, sabiam, mas veio uma bomba, fulgurante como mil sóis e nem tiveram tempo para serem heróis”. Por muito amada que seja a pátria e talvez deva ser necessário pensar em que se transformou após o domínio do mundo pelos senhores da guerra, não podemos regressar dessas batalhas e fazermos o elogio e a glorificação da Morte sem interrogarmos, procurarmos e identificarmos as causas pelas quais essa mesma Morte continua a triunfar. Artur Pérez-Reverte não o fez por razões que só o autor poderá explicitar e ao não o fazer deixa essa sensação amarga de angústia e tristeza, de um requiem pela humanidade, daí que não seja estranho nem admire o fim que destina ao seu personagem. Não se podia vislumbrar outro que não entrasse em contradição com as ideias com que elaborou o romance. Como positivo da sua leitura resta a personagem feminina, as reflexões de Olvido Ferrara e o incentivo a visitar o Prado e a debruçarmo-nos com atenção sobre as imagens, as figuras, os significados expostos, mas com a visão optimista de que é possível e um dever triunfar sobre a Morte e não o contrário, pois a humanidade pode ter a sensação de não ter futuro, mas ainda necessita de sonhos. Pelos menos estes, ainda não os perdi.


2 comentários:

Unknown disse...

Belíssimo texto sobre uma obra de referência de um grande escritor castelhano. Parabéns


MJORS

Anónimo disse...

Belíssimo sem dúvida. Desperta em nós uma consciência que a cada momento apagamos e remetemos para bem longe e fundo dentro de nós. A brevidade da vida, a nossa ânsia de não pensar nesse facto e o modo como atropelamos tudo e todos para ganharmos a vida (em múltiplos sentidos)e como diria Vergílio Ferreira, o nosso esforço em abafarmos, em branquearmos a nossa responsabilidade, chamando a nós o direito de seguir indiferentes perante o "destino" dos outros, que quer queiramos quer não é o nosso também... E entretanto o silêncio que o universo nos devolve perante todos os atropelos que cometemos com a vida não é mais do que o cumprir de um "destino" a que Vergílio Ferreira chama "vocação"... talvez o mesmo que o repórter procurou nas águas do mar com a sua moeda na boca...

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