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01/03/08

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ALIJÓ, JANTARADA, FERRO VELHO E CAPELINI

Mário Faria

Ouvimos, distintamente, um forte tiroteio a alguns quilómetros do quartel. Tinha saído, há algum tempo, um pelotão com destino a Quimaria. O capitão mandou, de imediato, sair o pelotão de reserva, para uma eventual operação de socorro.

Assim se fez. Rapidamente, mas com todos os cuidados, fomos avançando (três viaturas e trinta homens) pela picada e demos (ao Km 10) com um grupo de uma dúzia de soldados que fugia, como podia, da emboscada em que tinham caído. Uma série de feridos, apoiados noutros tantos que tinham saído ilesos, caminhavam lentamente e quando nos viram "correram ao nosso encontro", gritando e chorando desalmadamente, dizendo tudo em frases incoerentes que nada explicavam. Regressaram ao quartel numa viatura em que nos tínhamos deslocado. Nesse grupo seguiu o Alijó, aparentemente em estado muito grave.

O resto do percurso do pelotão de socorro, já avisado da terrível emboscada em que tinha caído o nosso 3º. pelotão, foi feito a pé, pois sabíamos que estávamos perto da zona de morte e que o IN era numeroso e estava bem armado. Não demorámos muito tempo a chegar. O que vimos foi um espectáculo de horror. Sete mortos, a maior parte deles com o corpo profanado. Ficámos quase sem reacção e sem saber muito bem o que fazer. Um soldado desesperado pôs-se aos tiros contra o IN invisível (tinha desaparecido rapidamente, quando deu conta da nossa aproximação) e acertou, felizmente de raspão, no ombro de um camarada. A custo, lá o detivemos e depois de uns abanões e alguns soporíferos, lá serenou.

O pelotão de socorro, depois do impacto causado pelo primeiro choque, lá foi reagindo, aos poucos. Depois de montado o dispositivo de segurança, um grupo fez o reconhecimento a todo o perímetro da zona de morte, identificando, concentrando e "compondo" os soldados mortos, inventariando o material apreendido pelo IN e do pouco que pudemos recuperar e, ainda, procedendo ao levantamento de todos os vestígios relevantes para, conjuntamente com o testemunho dos camaradas que fizemos regressar, estarmos em condições de fazer o primeiro relatório de toda a operação e o modus operandi do IN, o mais detalhadamente possível.

O Jantarada, o padeiro da companhia, acompanhou-nos voluntariamente. Sempre sereno, foi o primeiro a agir e a dar um "bofetão para acalmar" o camarada que se pôs aos tiros. Foi escolhido para encabeçar - por continuar a manter uma grande serenidade - o grupo de reconhecimento. Foi ele que, sentindo um movimento suspeito no capim, mandou parar a coluna. Aproximámo-nos e ouvimo-lo dizer : "quem está aí, que se renda com os braços no ar, ou leva um tiro". Foram segundos que pareciam não ter fim. Um homem saiu daquele ninho que tinha construído. Completamente desidratado e em estado de choque. Era o Ferro Velho, que feito morto assistiu, sem ver, a toda aquela mortandade, aterrorizado à espera que a sua vez pudesse chegar. Nunca tinha visto antes, nada assim : um morto vivo. Não conseguiu falar. Mas, os olhos disseram tudo. Impressionante ! Regressámos quando a noite tomou conta do dia e depois de outros pelotões (de outros batalhões) ocuparem o local da emboscada, para no dia seguinte aprofundarem o reconhecimento a toda a zona onde o IN operou. O Ferro Velho era, contudo, de dura têmpera. Assistido pelo enfermeiro, recuperou rapidamente, seguiu connosco, e não chegou a precisar de dar baixa. Cumpriu todo o tempo de incorporação na nossa companhia, cumprindo regularmente as suas funções, e, que saiba, não resultou deste terrível episódio qualquer sequela dramática.

Regressados ao quartel, constatámos que a moral das tropas estava abaixo de zero. O Alijó já tinha sido evacuado, pois o seu estado era crítico. Tinha o intestino perfurado. Morreu antes de chegar ao hospital. Era condutor e fazia parte da equipa da Ferrugem que se batia no nosso "campeonato" de futebol. Era temerário. Certa vez vi-o matar uma surucucu, armando um salto e caindo em cheio em cima da cabeça do réptil, que esmagou. Ficámos arrepiados. Ele ria-se de gozo e satisfação pelo susto que nos pregou. A jogar a bola era em tudo semelhante : generoso, tirava o máximo prazer da competição. Era um jovem, alegre, cheio de energia e muito desenvolto. Sempre com um sorriso malandro a bailar-lhe nos lábios e um cigarro no canto da boca, era uma espécie de Vadinho, com sotaque transmontano.

O Jantarada foi uma surpresa. Nunca tinha estado em situação de combate e revelou uma postura, serenidade e sangue frio pouco comuns. Muito modesto, espantou-nos completamente, por ter sido o único que se ofereceu para tratar dos mortos, depois de ter estado na primeira linha em toda a fase da operação de socorro. Lavou, limpou, arranjou e vestiu todos os mortos que apresentou de forma muito digna. Fez tudo isso nessa noite, pois os corpos iam ser recolhidos e evacuados para Luanda, na manhã seguinte. Nem por isso, deixou de ter o pão cozido e pronto a comer, à hora do costume. O nosso médico que muito fez para "desanuviar" o ambiente de extrema tensão que se viveu nesses dias, comentou a propósito : "porque será que hoje o pão está muito mais saboroso que o costume ? ".

Como todo os batalhões, o nosso também estava "equipado" com um capelão. Raramente nos visitava. A zona era muito perigosa. Foi designado para acompanhar o pelotão que foi destacado para reforçar a nossa companhia. Chegou para confortar os que por lá continuavam vivos e cumprir as cerimónias religiosas que eram devidas aos mortos, acabadinhos de entrar no rol dos heróis da Pátria. O capelão foi importante para que a vida retomasse o seu ritmo normal. Animou a continuidade dos jogos de futebol, em que participava, infelizmente. Equipado a rigor, e apesar da nossa insistência para que servisse de árbitro, queria jogar e fazia jus em integrar a equipa dos cabos e soldados. A terceira equipa do nosso campeonato era constituída pelos oficiais e sargentos. Batia em tudo o que mexia e raramente acertava na bola. Daí nasceu o nome que lhe demos, Capelini, o mais famoso jogador italiano da época . Reanimou o grupo do bridge a quem ensinou as mais modernas convenções e as melhores técnicas de carteamento.

Todas as noites passámos a jogar bridge. Interrompia a sessão para dar a missinha, com a promessa : "É um instantinho. Volto já". E voltava e jogava e dizia imprecações e fazia pequenas batotices e uma vez, com a emoção, deixou escapar um suave ruído que saiu (sem avisar) das suas calças, sito no fundo das costas. Foi uma risota. Não se deu por achado, disfarçou como se nada fosse com ele, acabou a jogada e fez uma festa por ter ganho aquele rubber. Era dos Açores, e não cumpriu o suposto tempo de mobilização em Angola, por motivos que nunca chegámos a saber direitinho.

Falta esclarecer que esta estória me veio à memória a propósito do artigo do MM : a Desilusão de Deus. Queria escrever qualquer coisa sobre isso, mas certamente não diria nada que tivesse jeito. Preferi falar de alguns dos homens que me marcaram num período muito particular da minha vida e de quem perdi completamente o rasto. Uma desilusão, firmada na ilusão de que o que retenho na memória daqueles homens vale para ontem, hoje e amanhã.


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CORRECÇÃO E TOLERÂNCIA

António Mesquita

 François-Marie Arouet, Voltaire (1694/1778)



Voltaire é um dos pais da ideia da tolerância. A Igreja e o fanatismo são o seu cavalo de batalha. "Écrasez l'Infâme!", o seu grito de guerra ( pouco tolerante, na verdade).
O que significa a tolerância quando somos iguais em direitos como numa democracia? Não, decerto, pensar que os outros têm razão ao pensarem como pensam, mas que têm uma razão para assim pensarem. Compreendemos que divirjam e podemos até explicar a divergência, mas ficamos na nossa.
Se não fôssemos tolerantes, lutaríamos contra o erro dos outros e tentaríamos convencê-los à força, se pudéssemos. O problema é que tudo fica mais confuso se acaso pensarmos não numa situação de igualdade, mas numa relação de forças, de desigualdade de direitos ou até entre regimes políticos ou religiões diferentes. Aí, no melhor dos casos, é a "guerra fria", e o mais natural é que a tolerância acabe no momento em que nos sintamos ameaçados ou que os nossos interesses sejam postos em causa.
Sempre houve pessoas belicosas e pessoas pacíficas. Podíamos dizer que as primeiras não são tolerantes e que as segundas o são. Mas seria perder a ideia que está por detrás do uso moderno dessa palavra.
A tolerância tem muito a ver com relativismo. Significa que se acreditamos numa coisa não temos o direito de tentar convencer os outros a favor da mesma crença, porque as suas próprias crenças são tão justificadas como as nossas.
Não admira que se tenha rapidamente chegado ao conceito abstruso de politicamente correcto; não temos o direito de lutar pelas nossas convicções, e até, mais do que isso, devemos evitar que qualquer manifestação da nossa maneira de pensar possa levar os outros a sentirem-se "diferentes". É uma bela máquina de uniformidade e de conformismo.
É possível que esta situação reflicta ainda que duma forma longínqua e distorcida uma certa crise da verdade nas ciências e a consonância que existe entre relatividade e relativismo.
Mas, por outro lado, essa crise talvez leve a uma separação clarificadora entre a ética e a religião.
Aquilo em que acreditamos é uma fonte de valor, independentemente da opinião dos outros e de não sermos capazes de provar a sua verdade universal. Por todas as razões, não devemos confundir o civismo e a boa educação com a tolerância.
Na sede do nosso juízo, não podemos deixar entrar a ideia de que todas as opiniões se valem e que, por isso, devemos pôr as nossas "debaixo do alqueire" para não ofender a susceptibilidade dos que pensam de outra maneira.
Voltaire atacava as práticas violentas e injustas da Igreja do seu tempo. Não podia ser tolerante, no sentido moderno, e de facto não era.

É TUDO UMA FARSA

Alcino Silva
Baltazar Garzón




No estado espanhol é o juiz Baltazar Garzon que diz o que é e o que não é democrático e em nome de combater a estupidez da ETA, reduz o País Vasco a um debate onde apenas falam as pedras. Já não chega apoiar o terrorismo, basta que o juiz entenda que lhe pareça que podem estar a apoiar. A presunção de inocência desapareceu no estado espanhol. Só que este juiz justiceiro marcha a toque de tambor do Partido Popular e das campanhas eleitorais que se desenvolvem no estado. A isto chama-se democracia. É o governo deste mesmo estado que nega a autodeterminação aos povos que o compõem que não hesitou um segundo em reconhecer as independências das nações que resultaram da destruição da Jugoslávia, mesmo quando se tratou de nações inexistentes como é o caso da Bósnia-Herzegovina.
Desde o início da década de noventa procurei seguir e conhecer o drama dos povos jugoslavos. Diversos trabalhos de jornalistas portugueses demonstraram que a diabolização do povo sérvio e do seu presidente visavam a fragmentação da Jugoslávia, primeiro e da Sérvia depois. O processo continua.
Em Novembro último, apareceu nas bancas mais um trabalho sobre a tragédia que continua a desenrolar-se nos Balcãs. Em “O Sobrevento Jugoslavo”, o seu autor, José Manuel Arsénio, pretende relatar “a tragédia balcânica” que presenciou. Ingressado na carreira diplomática em 1974 é ainda um alto quadro do M.N.E.. Foi chefe da delegação portuguesa junto da Missão de Monitores da Comunidade Europeia, em Zagreb entre fins de 1992 e meados de 1995. É, portanto, o depoimento de um homem bem colocado no terreno e insuspeito do ponto de vista de uma visão que pudesse favorecer os sérvios e Milosevic.
O seu trabalho é uma obra incontornável para se compreender a manta de mentiras que cobriram o conflito que envolveu os povos da antiga Ilíria. Com palavras simples e num tom dialogante e compreensivo, arrasa o papel dos Presidentes da Croácia e muçulmano da Bósnia Herzegovina, para além das mentiras que emanavam dos governos inglês, francês e alemão, e ainda das manobras maquiavélicas dos EUA. Os intrujões do Iraque treinaram-se aqui. Quando em Dayton os sérvios da Bósnia são colocados de joelhos com a colaboração de Milosevic, contrariamente à imagem que deste sempre foi passada, ainda se construíram monstruosidades como o massacre de dez mil muçulmanos da cidade de Srebrenica o qual ainda hoje continua a ser passado como se de uma verdade se tratasse. Este embaixador chamou-lhe, “a mitificação”. Para uma melhor compreensão deste cenário, ou de como é possível, inventar tragédias para destruir adversários, povos e nações, nada melhor que citar o autor: “Numa guerra de tão sanguinolenta confrontação interétnica, em que foram impiedosamente acometidos inúmeros agregados humanos – desde a destruição de Vukovar até à devastação de Knin, passando pelo derribamento do sector muçulmano de Mostar e das cidades croatas no Vale do Lasva, com extensão aos morticínios de Tuzla e da bolsa de Pakrac, sem esquecer os massacres de Stupni Do, de Doljan e das aldeias sérvias da bolsa de Medak (para evocar apenas alguns exemplos) -, o insistente clamor político e mediático em torno de Srebrenica, erguido por certos países ocidentais, teve o claro objectivo de abominar os sérvios, proteger os muçulmanos e eximir os croatas, com o intuito de insuflar na psique colectiva das opiniões públicas um generalizado sentimento condenatório dos sérvios, (…) Colhe-se, assim, a sensação de que os Estados Unidos, mais do que tentarem demonstrar que a população de Srebrenica fora alvo de um massacre, antes se preocuparam em suprimir as provas de que tal massacre jamais havia ocorrido. (…) No tocante a Srebrenica, pelo contrário, todos os dados vindos a lume permaneceram sempre envoltos em névoas de incerteza, dúvida e imprecisão, com o número de mortos a ser apurado por um mui questionável método de aproximação por excesso, com base em provas materiais e documentais que pecavam largamente por defeito.”
A Europa encontra-se a ser governada por políticos miseráveis que roçam o crime. No território da Jugoslávia montaram uma farsa que não pôde impedir os povos de conhecer a verdade dos factos. Porém, nem assim se coibiram. Quatro anos depois, devastaram a nação sérvia e posteriormente assassinaram aquele que havia sido seu presidente numa das prisões do império quando as declarações deste ameaçaram fazer ruir o castelo de areia que tinham erguido.
A farsa continua hoje com a chamada declaração de independência de um estado que não existe a que deram o nome de Kosovo. Agora, finalmente o estado espanhol percebeu que o tecto lhe podia cair em cima da cabeça e recuou atabalhoadamente.
Há quem chame a tudo isto democracia, ou que esta possa justificar todas as torpezas. São opiniões.



A HIPÓTESE DEUS (1)

Mário Martins



“A opinião é um ter por verdadeiro, consciente de ser insuficiente, quer subjectiva quer objectivamente. Se o ter por verdadeiro é subjectivamente suficiente e, ao mesmo tempo, é considerado objectivamente insuficiente, chama-se fé. Enfim, o ter por verdadeiro que é suficiente, tanto subjectiva como objectivamente, chama-se saber. A suficiência subjectiva chama-se convicção (para mim), a suficiência objectiva chama-se certeza (para todos)”

Immanuel Kant



1. As reflexões que se seguem têm por único objecto a questão teórica da existência ou não existência de Deus. Tal significa que não têm em conta, neste preciso contexto, o fenómeno da fé religiosa nem, em geral, a história e o papel social das religiões. Por outro lado, a expressão Deus, neste âmbito, tem o estrito significado de criador, sem os restantes predicados atribuídos pelas grandes religiões.

2. Deus não é um ser, mas sim, antes, um sentimento, uma ideia, um conceito ou uma hipótese de um ser, mais ou menos incorpóreo e indefinido; ou seja, Deus é um produto da sensibilidade e da mente.

3. Esse sentimento ou essa ideia humana prevalecentes de que, necessariamente, existe um ser criador, enraízam-se na evidência de que a natureza é um dado que nos transcende, no espanto provocado pela grandeza, complexidade e beleza do cosmos, no mistério da existência (porque existe tudo o que existe, em vez de nada?), e na intuição de que o universo (ou a natureza) não se pode justificar por si próprio.

4. Essa intuição de que o universo não se pode justificar por si próprio, deriva das suas próprias características conhecidas:

· Tem uma idade à volta dos 13.700 milhões de anos;

· Tudo, nele, é finito (salvo, ao que julgo, as partículas elementares que constituem o seu “caldo”);

· Tudo nasce de tudo que lhe é anterior;

· Tudo tem uma causa;

· A inteligência humana é um produto da natureza;

· O processo natural pelo qual tudo existe assemelha-se a um programa.

5. Aqui chegados começam os problemas. Se o universo é, por definição, tudo o que existe ou toda a realidade, e teve um início, isso significa que nasceu do nada ou de fora da realidade. Se, por outro lado, nele tudo morre e tudo nasce de tudo que lhe é anterior e tudo tem uma causa, tal implica uma primeira causa fora do universo. E se, ainda, a inteligência humana é um produto da natureza, então ela própria, a natureza, é animada por inteligência. E pode haver programa sem programador?

6. O conceito de Deus criador sofreu uma crise dramática, em meados do século XIX, com o advento da teoria científica da origem e evolução das espécies, estabelecida por Charles Darwin. Desde então a ideia de um Deus criador directo das espécies, nomeadamente, da humana (o que significava uma intervenção divina recente à escala cósmica - há cerca de 2 milhões de anos), perdeu toda a consistência racional, dando lugar à ideia de um Deus criador do universo (ou seja, um acto divino primordial e longínquo - há 13.700 milhões de anos).

7. É certo que está por esclarecer cientificamente o processo pelo qual se originou a vida elementar na Terra há cerca de 3.900 milhões de anos. E não está, sequer, afastada a hipótese de ter sido originada pela queda de meteoritos “contaminados”, isto é, de ter tido uma origem extraterrestre. Mas digamos que, sob a forte influência da teoria da origem e evolução dos seres vivos, há um certo consenso de que uma dada combinação das coisas em determinadas condições, origina ou pode originar vida.

CONTINUA


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ORNAMENTOS DA MEMÓRIA

Manuel Joaquim

Tenho nas mãos um livrinho, editado em 1862 pela editora parisiense Vª J.P. Ailllaud, Guillard e Cª, de autoria de J. I Roquette, que se chama “Ornamentos da MEMÓRIA e exercícios selectos para formar o bom gosto e verdadeiro estylo da língua portugueza; extrahidos dos melhores clássicos em prosa e verso; complemento necessário da educação da mocidade portugueza e brasileira - nova edição “ . o Prólogo tem a data de 21 de Junho de 1849.

Livros iguais a este encontravam-se certamente em bibliotecas de muitas famílias do sec XIX, para aperfeiçoarem a língua e o pensamento através de obras de clássicos portugueses. É interessante verificar que um dos autores referidos é o Padre António Vieira nascido há quatrocentos anos, cujas comemorações decorreram durante o mês de Fevereiro ( nasceu em 6 de Fevereiro de 1608), praticamente em Lisboa, pois, no Porto, pelo que se sabe, só a Unicepe se lembrou da data, realizando uma sessão de homenagem com muita dignidade.

Há 160 anos considerava-se que o ensino da língua portuguesa deveria ser através da divulgação e o conhecimento das obras dos clássicos da literatura portuguesa, hoje com as sucessivas reformas do ensino e as consequentes alterações nos respectivos programas, pretende-se ensinar a língua através de textos de publicidade comercial, que não são mais do que estimuladores de consumo de produtos sem valor, como se pode verificar nos manuais em vigor para o ensino secundário, sem esquecer as posições oficiais sobre a desvalorização da ortografia.

Pelo interesse que possa despertar, transcrevo o respectivo Prólogo



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POEMA AO PAI

Dina La-Sallete

http://rutesmuntanya.iespana.es/galeria/page6/page_01.htm


“Pai, devo-te estas palavras. As que não soube nem pude dizer-te no tempo em que eras simplesmente “o meu paizinho”. As que começaram a doer-me no dia da tua morte, quando pressenti pela primeira vez a minha própria morte.

A minha mais imediata memória de ti é a de um incansável caminhante. Vejo-te a caminhar ao fundo da rua, franzino, de boné na cabeça e bolsa debaixo do braço, num dos teus trajectos diários como agente de seguros, tentando cobrar os magros prémios aos segurados que ias angariando e que te compunham a magra reforma.

Tinhas trabalhado como contabilista no escritório de uma pequena fábrica de cápsulas de chumbo para garrafas de vinho do Porto. Mas antes tinhas tirado o curso à noite, já casado e pai dos teus três filhos. E muito antes o teu pai tinha decidido que tu, paizinho, o primeiro dos seus 8 filhos (quatro de cada mãe), viesses para o Porto, só e desamparado, estudar para padre no Seminário de Vilar.

Ainda te ouço proferir à mesa aquelas frases em latim que tanto nos divertiam: “mater tua mala burra est” que depois invariavelmente nos traduzias: a tua mãe come maçãs coradas.

A minha mais antiga memória de ti é a tua pequena e pacífica figura de enxada na mão a semear batatas, no nosso quintal, a esfolar um coelho, a descascar feijões ou a entrançar cebolas. Mas isso era na minha infância. Lembro-te a segurar-me a mão a caminho da escola no dia em que fiz o exame da 4ª classe, e de apanhares camarinhas para mim em dia de ida ao Senhor da Pedra.

Invejo-te, pai, paizinho: cumpriste a tua vida, com simplicidade e infinita bondade, e quando chegaste ao fim nenhuma culpa ou arrependimento te assombraram. Olhaste-nos um a um numa muda e resignada despedida. A mim tentaste transmitir algo mais mas quando encostei o ouvido à tua boca nenhum som pude captar nem nenhum sinal dos teus olhos baços me traduziram esse teu último pensamento.

Só agora te digo, Paizinho, o que nunca pude dizer-te de viva voz, quando eu bem percebia a tua sede de ternura sem conseguir corresponder aos teus afagos e carinhosas palavras. Deixaste-me um nó de desolação e desgosto na garganta. Era agora que eu queria abraçar-te e dizer-te que gosto de ti, que preciso de ti, que és o melhor e mais justo pai do mundo.

Mas é tarde, Paizinho, e tu nunca irás ver estas lágrimas nem saber como estás e estarás sempre dentro de mim, quando me falta paz, alento e coragem para continuar o meu caminho, mesmo sem ti”.


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