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01/09/25

ROMAGEM DE SAUDADE

António Mesquita


"É possível pensar profundamente enquanto navegamos na internet, tal como é possível pensar superficialmente enquanto lemos um livro, mas esse não é o modo de pensar que a tecnologia encoraja e recompeensa." 
(Nicholas Carr)



A feira do livro é cada vez mais estranha.  Sirvo-me desse tópico numa conversação difícil com uma criatura do écrã. Não falamos da mesma coisa.

Uma vez por ano, a cultura assume a forma tipográfica, e a julgar pelas profecias e pelas estatísticas não valia a pena levantar os stands. É remar contra a maré. 

Desde há uma série de anos que algumas editoras já não apostam na brochura. Dirigem-se ao tacto e ao sentido da decoração. Não digo que uma  capa atraente e modular não convide à leitura e ao prazer de abrir e de folhear. Mas estas moscas não se caçam assim.

A principal função do livro-móvel é preencher um espaço no interior burguês. No fundo, é indiferente que em vez das páginas escritas se guarde aí o whisky. A colecção é outro método de desviar o livro da leitura e de fazer subir as vendas. Os comerciantes pensam como bons linguistas que não se pode dizer que se tem uma coisa que não está completa. 

Que significam as receitas de culinária, opiparamente fotografadas, que se mandam encadernar periodicamente? É impossível que sejam todas úteis. Obter os números que faltam é um desporto, fechar a série é um acto moral. E não é honesto constituir-se proprietário do que está para além das posses de cada um. Esta dificuldade raramente é económica. O comprador está à mercê da vontade de prolongar um monólogo que a casa editora converteu em obrigação. A cultura ou a cozinha é uma questão de títulos, como se a biblioteca se acrescentasse ao nome próprio.

O coleccionador é um burguês gentil-homem que se dispensou de sequer imitar a leitura. E assim ele reage como um homem do nosso tempo, livre do encargo da cultura, graças à sobrehumana tarefa enciclopédica. Como não se pode ler tudo e menos ainda assimilar, o melhor é transformar o escrito em segurança – estou rodeado de obras-primas e de sumas científicas – e num espaço de jogo: posso escolher ao acaso e fazer bingo. 

De resto,  nunca é uma leitura determinada apenas pelo que já se leu. O que é impossível ler pela profusão e pela falta de tempo é sentido pelo leitor que tem à mão esses títulos, como uma extensão do seu poder caprichoso. A única maneira de gozar todo o campo do escrito, sem sentir os limites materiais evidentes da leitura, é fazer como a borboleta. As técnicas de venda e os novos mídia criaram o leitor superficial, sem vontade nem meios para colher dos livros a formação do espírito. 

Se não fosse a escola, a atenção que o livro pede seria uma coisa rara. Não se sabe ler senão relendo, e é sempre a mesma coisa que se lê. A abundância do livro rouba-nos a atenção. É possível que o écrã torne o leitor impaciente e sem a disposição necessária  e a respectiva recompensa.

Quando era adolescente queria comprar tudo. Agora passeio os olhos pelos escaparates e não vejo nada do que quero. A feira quer vender e há muitos jovens, mas apenas fazem turismo.  Porém, o que à partida estaria condenado ao malogro é um relativo sucesso, mas por razões que nada têm a ver com a leitura.

A tradição e o mito da cultura ou do móvel culto criam o acontecimento. Mas ler - o que se chama ler - não é fácil. Nunca tão poucos leram tanto como hoje, se a atenção diagonal for incluída. Mas a maioria está a ser instruída pela internet e as redes sociais.

Não me admiraria que, proximamente, os jardins do Palácio  de Cristal se abrissem a stands virtuais com pavões da mesma matéria.

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