Tieribierka, Península de Kola. O destino que levamos nem
sempre é aquele que os nossos passos seguem. Assim aconteceu quando me
aproximei da grande cidade do Árctico. Creio que não estava preparada para o
ruído do espaço urbano e segui para Leste na província de Kola, até ao Norte nesta
pequena aldeia junto ao oceano. É difícil interiorizar como chegaram aqui os
primeiros humanos no século XVI e se deixaram ficar. Até à década de sessenta
do século passado foi uma aldeia prometedora e crescendo em população. Havia
vida ligada ao mar e à criação de renas, mas quando a tonelagem dos barcos
excedeu a capacidade do pequeno golfo onde desagua o rio Tieribierka, a sua
pequena indústria desmoronou-se. Hoje os seus habitantes rondam as novecentas
pessoas. A aldeia tem mais do que um núcleo populacional entre casas novas,
recuperadas e em degradação por desabitadas. Quase diríamos que há um cemitério
de barcos abandonados. Quase nos surpreendemos ao dizer que na foz do rio há
uma extensa praia que no Verão é frequentada. Quando falamos de estio nestes
espaços árcticos tem de ser com alguma reserva. Em Maio a neve ainda perdura
pelas colinas da península e em Julho e Agosto a temperatura ronda os quinze
graus, mas talvez fruto do clima que vivemos, já alcançou um máximo de 34
graus, pelo que fácil será de pensar como se sentiram quentes os que procuram
este lugar recôndito. Hoje está mais ameno, nos seus sete graus. Depois de
deambular pela pequena aldeia, atravessei o rio e segui para Norte onde está
outro núcleo de casario e prossegui até à costa. Todo este território se desenha
em colinas de pedra massacrada pelos ventos e pela rigidez da neve, mas no
Verão, quando a planície de brancura se afasta, se derrete em líquido azulado, as
partes baixas formam lagos pelo que a imagem aérea dar-nos-á uma ideia de
imensas lagoas. É entre elas que o rio que aqui chega navega ao longo de cento
e trinta quilómetros. A costa é elevada e de ambos os lados existem praias. A
pedra é dura, granítica, mas picada, coberta por um manto de verde que em
certos lugares tem a coragem de crescer e ondular entre figuras amarelas que
lhe transmitem alegria. Hoje não é fácil estar aqui. Fazem sete graus de
temperatura, está ventoso, o mar agitado e já choveu. Nos dias anteriores o sol
tem visitado estes lugares e então, é possível sentarmo-nos e olhar o Mar de
Barents que se espreguiça à nossa frente deixando-nos na penumbra de um
horizonte infinito. Se seguíssemos em frente encontraríamos o Pólo Norte.
Aparecem turistas, mas na maior parte do dia, estamos sós. Percebe-se uma solidão
diferente dos desertos de areia pela variedade da natureza e dos ruídos. Quando
interiorizamos o que nos envolve deixamo-nos invadir por um sentimento de
profundidade. É como uma viagem ao interior da alma. Para além dos humanos,
aparecem por aqui cada vez mais animais, sobretudo os ursos polares e quase há
uma convivência entre ambos. Os grandes animais brancos e peludos procuram as
aldeias quando escasseia o alimento e os locais contam imensas histórias da sua
interacção. Percebemos a sensação de estar num tempo e num ambiente muito
diferente do que nos habituamos como resultado da necessidade de convívio e de
interajuda pela agressividade das forças da natureza. Num desses momentos em
que procuro estas pedras tive o deslize de deixar o pensamento escorregar na
procura do mundo. Ia a escrever do mundo humano, mas sinto uma mistura de
receio e desânimo em assim o nomear. O que vemos, ouvimos e lemos é tão
perturbador e assustador que nos deixa a dúvida se ainda podemos falar de
humanidade e de seres humanos. A bestialidade da malvadez e da perfídia
alcançou tal volume que nos sentimos esmagados pela impotência que se abate
sobre a nossa consciência quando figuras tresloucadas se apoderam do poder. O
que os judeus do chamado Estado de Israel nos têm dito ao longo de oito décadas
e com uma enfâse hiperbólica nos últimos dois anos, é de que não têm lugar
entre as sociedades humanas. O antro de alienação em que se encerraram,
retira-os em absoluto da convivência nos espaços de humanidade. E a grande
tragédia, não é a sua escolha, mas antes a Humanidade ter permitido que tal
tenha acontecido. Não colocam a Humanidade de joelhos, derrotaram-na e essa
derrota é algo que ficará para sempre no âmago da nossa compreensão do mundo
humano. Pela segunda vez perguntamos, como é possível termos deixado isto
acontecer? Mas agora não temos a desculpa de dizer como no passado, nós não
sabíamos. Voltou a chover. Não é propriamente chuva, mas os salpicos da água
oceânica que o vento atira para terra. Vou regressar à parte baixa da aldeia
para uma conversa. Prometeram-me falar da vida de Aleksandra Andreevna Antonova,
nascida em Tieribierka (Teriberka), professora, escritora, poetisa e tradutora
da língua kildín Sámi que em 2012 recebeu o prémio Gollegiella, prémio fundado
em 2004 pelos parlamentos Sami da Noruega, Suécia e Finlândia. Não sei quantos
dias me vou deixar viver entre estes espaços de sossego e remanso. O postal vai
comigo até Murmansk.
01/07/25
NO CORRER DOS DIAS
Marques da Silva
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