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01/07/25

NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva





Tieribierka, Península de Kola. O destino que levamos nem sempre é aquele que os nossos passos seguem. Assim aconteceu quando me aproximei da grande cidade do Árctico. Creio que não estava preparada para o ruído do espaço urbano e segui para Leste na província de Kola, até ao Norte nesta pequena aldeia junto ao oceano. É difícil interiorizar como chegaram aqui os primeiros humanos no século XVI e se deixaram ficar. Até à década de sessenta do século passado foi uma aldeia prometedora e crescendo em população. Havia vida ligada ao mar e à criação de renas, mas quando a tonelagem dos barcos excedeu a capacidade do pequeno golfo onde desagua o rio Tieribierka, a sua pequena indústria desmoronou-se. Hoje os seus habitantes rondam as novecentas pessoas. A aldeia tem mais do que um núcleo populacional entre casas novas, recuperadas e em degradação por desabitadas. Quase diríamos que há um cemitério de barcos abandonados. Quase nos surpreendemos ao dizer que na foz do rio há uma extensa praia que no Verão é frequentada. Quando falamos de estio nestes espaços árcticos tem de ser com alguma reserva. Em Maio a neve ainda perdura pelas colinas da península e em Julho e Agosto a temperatura ronda os quinze graus, mas talvez fruto do clima que vivemos, já alcançou um máximo de 34 graus, pelo que fácil será de pensar como se sentiram quentes os que procuram este lugar recôndito. Hoje está mais ameno, nos seus sete graus. Depois de deambular pela pequena aldeia, atravessei o rio e segui para Norte onde está outro núcleo de casario e prossegui até à costa. Todo este território se desenha em colinas de pedra massacrada pelos ventos e pela rigidez da neve, mas no Verão, quando a planície de brancura se afasta, se derrete em líquido azulado, as partes baixas formam lagos pelo que a imagem aérea dar-nos-á uma ideia de imensas lagoas. É entre elas que o rio que aqui chega navega ao longo de cento e trinta quilómetros. A costa é elevada e de ambos os lados existem praias. A pedra é dura, granítica, mas picada, coberta por um manto de verde que em certos lugares tem a coragem de crescer e ondular entre figuras amarelas que lhe transmitem alegria. Hoje não é fácil estar aqui. Fazem sete graus de temperatura, está ventoso, o mar agitado e já choveu. Nos dias anteriores o sol tem visitado estes lugares e então, é possível sentarmo-nos e olhar o Mar de Barents que se espreguiça à nossa frente deixando-nos na penumbra de um horizonte infinito. Se seguíssemos em frente encontraríamos o Pólo Norte. Aparecem turistas, mas na maior parte do dia, estamos sós. Percebe-se uma solidão diferente dos desertos de areia pela variedade da natureza e dos ruídos. Quando interiorizamos o que nos envolve deixamo-nos invadir por um sentimento de profundidade. É como uma viagem ao interior da alma. Para além dos humanos, aparecem por aqui cada vez mais animais, sobretudo os ursos polares e quase há uma convivência entre ambos. Os grandes animais brancos e peludos procuram as aldeias quando escasseia o alimento e os locais contam imensas histórias da sua interacção. Percebemos a sensação de estar num tempo e num ambiente muito diferente do que nos habituamos como resultado da necessidade de convívio e de interajuda pela agressividade das forças da natureza. Num desses momentos em que procuro estas pedras tive o deslize de deixar o pensamento escorregar na procura do mundo. Ia a escrever do mundo humano, mas sinto uma mistura de receio e desânimo em assim o nomear. O que vemos, ouvimos e lemos é tão perturbador e assustador que nos deixa a dúvida se ainda podemos falar de humanidade e de seres humanos. A bestialidade da malvadez e da perfídia alcançou tal volume que nos sentimos esmagados pela impotência que se abate sobre a nossa consciência quando figuras tresloucadas se apoderam do poder. O que os judeus do chamado Estado de Israel nos têm dito ao longo de oito décadas e com uma enfâse hiperbólica nos últimos dois anos, é de que não têm lugar entre as sociedades humanas. O antro de alienação em que se encerraram, retira-os em absoluto da convivência nos espaços de humanidade. E a grande tragédia, não é a sua escolha, mas antes a Humanidade ter permitido que tal tenha acontecido. Não colocam a Humanidade de joelhos, derrotaram-na e essa derrota é algo que ficará para sempre no âmago da nossa compreensão do mundo humano. Pela segunda vez perguntamos, como é possível termos deixado isto acontecer? Mas agora não temos a desculpa de dizer como no passado, nós não sabíamos. Voltou a chover. Não é propriamente chuva, mas os salpicos da água oceânica que o vento atira para terra. Vou regressar à parte baixa da aldeia para uma conversa. Prometeram-me falar da vida de Aleksandra Andreevna Antonova, nascida em Tieribierka (Teriberka), professora, escritora, poetisa e tradutora da língua kildín Sámi que em 2012 recebeu o prémio Gollegiella, prémio fundado em 2004 pelos parlamentos Sami da Noruega, Suécia e Finlândia. Não sei quantos dias me vou deixar viver entre estes espaços de sossego e remanso. O postal vai comigo até Murmansk.

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