António Mesquita
"Não importa a cor do gato, desde que cace os ratos".
Deng Xiaoping
Neste momento da actualidade geo-política qual é o significado duma homenagem a Enrico Berlinguer, um homem de esquerda que acreditou na passagem gradual da Itália capitalista para o socialismo?
O filme de Andrea Segre, de 2024, começa pelo contra-exemplo da experiência chilena de Salvador Allende e o golpe de Pinochet de 1973. Parece ter ficado demonstrado que não era possível "fazer a revolução" através de eleições.
Por isso, mas não sobretudo por isso, a ideia do "compromisso histórico" de que Berlinguer fez o seu cavalo de batalha, foi mal recebida nos países do bloco de leste. A razão principal era que ela punha em causa a "unidade" do dito bloco e a hegemonia da URSS, surgindo aos olhos desses regimes como uma ameaça. No início do filme, Berlinguer encontra-se em Sofia é alvo dum atentado da polícia secreta búlgara.
O que torna credível o "compromisso" é a específica situação italiana. O PCI é o maior partido comunista europeu, com 1,7 milhões de inscritos e 12 milhões de eleitores. Um golpe à Pinochet não encontraria, talvez, o terreno favorável em Itália. Mas o PCUS não poderia aceitar uma dissidência como essa que poria em causa, em primeiro lugar, a necessidade da sua própria ditadura. Quando se encontra com Brejnev, durante o congresso soviético, é lhe feito sentir um profundo desagrado.
Uma das peças fundamentais para a mudança era o presidente da DC, Aldo Moro que, perante a crise política desencadeada pela escolha dos eleitores e a queda do governo Andreotti (um cínico que colecciona saquetas de açúcar e tem, alegadamente, contactos com a Máfia), pede a Berlinguer uma moratória de alguns meses. Pouco depois, as Brigadas Vermelhas deitam essa estratégia por terra, raptando Moro e, na falta de negociações (a que Berlinguer se recusa), devolve o cadáver uns dias depois, na mala dum carro, deixado nas traseiras da sede do PCI, via delle Botteghe Oscure. Corria o ano de 1978.
Não era de modo nenhum certa a via preconizada pelo secretário-geral do PCI. Uma boa parte da classe política italiana opunha-se, com Fanfani à cabeça. O grande industrial Agnelli, o patrão da FIAT, tinha feito uma declaração peremptória nesse sentido. Mas a América, na altura, com Carter (de 1977 a 1981) tinha um presidente razoável. Que restaria, porém, do ideário marxista depois duma co-gestão do capitalismo como era essa do "Compromesso Storico"?
Nada de novo, não é verdade? Quando vemos a evolução da antiga União Soviética, ou sobretudo, a da China. A primeira, oficialmente, deixou de ser comunista (embora já tenha encerrado o Museu do Gulag e reposto a estatuária estalinista no Metro), mas o que já foi o "Império do Meio" reclama-se da tríade do movimento comunista, enquanto deixa funcionar, com relativa autonomia, o sistema capitalista, na visão pragmática de Deng.
O filme de Segre não aborda estes desenvolvimentos, à margem das suas preocupações. Vemos Berlinguer nos comícios, nos encontros de rua com os apoiantes, e, com grande relevo, em família ou nos tempos de ócio. É o caminho dum retrato do homem inteiro. Alguns documentários da época são intercalados para maior "rigor histórico". Mas o tempo limitado do filme impõe alguns atalhos pouco recomendáveis, como fazer duma reunião de família a súmula dum curso para iniciados. Por isso, e porque a honestidade da abordagem mereceria uma outra duração, secundarizando a qualidade cinematográfica esperada, é que, como outros já propuseram, esta era uma grande oportunidade para uma série de televisão.
Grande fumador, num tempo em que essa actividade não era proscrita pelas instâncias sanitárias, Enrico Berlinguer morre aos 62 anos, dum AVC, em pleno comício, em Pádua.
No funeral, em 1984, com grandes massas do povo e chefes de estado de todo o mundo, foi feita a devida homenagem ao ideal dum homem, nunca realizado, mas
que mudou o mundo. Essa homenagem foi a prova de que a política pode calar-se diante da verdadeira grandeza.
O título "La grande ambizione" é uma expressão do célebre teórico marxista Antonio Gramsci (1891/1937) que para ele era indissociável do bem social.
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