Vladimir. Caminho para a estação
no alvorecer do dia. A cidade acorda com lentidão e um silêncio harmonioso
plana sobre as ruas e os jardins arbóreos da cidade. O grande edifício de verde
esmeralda sobre o claro domina o espaço envolvente e o longo comboio estende-se
pelo cais como se acordasse há momentos. Atravessamos o Ob com vagar, escutando
os rodados a vencer cada união dos trilhos com um plac, plac cuidadoso. Os rios
siberianos são largos, lentos e volumosos na primavera. Assim é este rio, o Ob
que atravessa Novosibirsk a caminho do mar de Kara no Árctico. As pontes
ferroviárias que atravessam estes cursos de água são semelhantes, equilibradas
por amplos semi-círculos de ferro e os pilares maciços em pedra dura. Será
assim nas travessias do Volga do Irtich e do Kama, nas cidades que vou olhar
desta janela onde encosto a cabeça numa mistura de curiosidade e de sonolência,
mas resisto em sair para viajar pelas suas ruas e jardins. Umas de criação
recente, do século XVIII, outras de idade longínqua nos primórdios da Idade
Média. Em Omsk ao atravessar o Irtich não podemos deixar de pensar no exílio de
Dostoievski. Esta cidade era então o centro urbano de maior relevo na Sibéria,
mas estava longe ainda de conhecer a expansão subsequente. Na sua obra “Recordações
da Casa dos Mortos” apercebemo-nos do rigor que era então viver na taiga
siberiana, mas quando hoje atravessamos estas planícies e tentamos penetrar na
alma destas aldeias, apercebemo-nos que a realidade está para além da vivência
que colhemos do relato da sua leitura. Continua a não ser fácil viver nestas
paragens, mesmo com o bem-estar que é possível obtermos neste século XXI,
caracterizado por ondas de violência que assustam a humanidade. O caminho até à
próxima grande cidade é longo e as locomotivas que rebocam estas 11 carruagens
entram numa cadência que amolecem a vontade e incitam o pensamento. Às extensas
rectas, seguem-se curvas abertas para ambos os lados, a linha em certos locais
está pousada sobre aterros elevados e as suas margens enchem-se de árvores e arbustos,
por vezes distribuídos em florestas densas e impenetráveis ao olhar. Exige
esforço pensar na vivência humana nestas paragens, mesmo quando no meio do nada,
se aqui faz sentido esta expressão, nos surge uma aldeia de casas baixas de
madeira e os apeadeiros mostram-se tão isolados que não é possível atribuir-lhe
nome de lugar, assumem como indicativo o número quilométrico da linha. Observando
e pensando, bate-nos no rosto com violência a enorme contradição que em todos
os tempos se vive, entre a beleza, o sonho e a maldade, a infâmia e a perfídia
humanas. Quando levamos já milhares de anos de História, a humanidade chega a
este tempo, subjugada por uma quadrilha de criminosos fanáticos, supostamente
religiosos que não apenas se apoderaram de um território, como submeteram o
colectivo humano planetário a aceitar como banalidade o extermínio de um povo
em directo. As democracias coloniais contemplam o massacre num campo de
concentração a céu aberto com a placidez e a bonomia de quem assiste a uma
corrida de gansos num lago ajardinado. E esse auto-denominado «Ocidente
colectivo», estende passadeiras vermelhas e recebe nos seus palácios os
responsáveis dessa horda, pese embora o estrume que irradiam do seu vocabulário
infesto e infame. Tocamos no fundo do horror, da violência à solta de uma
escumalha que se acredita dona do planeta. As elites europeias mergulhadas na
sordidez de um poder monstruoso que erigiram sobre o que denominam, «os nossos
valores», navegam na estupidez da burla com que brindam os povos. Os povos na
sua infinita sabedoria, chupados, zurzidos e largados na margem da vida,
refugiam-se nos antros da extrema-direita, como um náufrago que não sabendo nadar,
deita fora o colete salva-vidas convencido que fica com os movimentos mais
livres. É o estertor melífluo de cinco séculos de colonialismo que geraram um
estado de vida em cima da pilhagem e do roubo. Acordamos deste torpor ao
pararmos em Ecaterimburgo. Estamos do lado oriental dos Urais. No fulgor da
revolução aqui foi morta a família dos Romanov que pouco antes ainda eram
senhores e proprietários de todas as terras da Rússia. Pese embora não se conheçam
na totalidade todos os factores que levaram à sua morte, seria hoje impensável
que tal pudesse ocorrer. Não que fosse pensável em qualquer época mas a
grandeza da fractura que abrangeu todo o território do império czarista
gerou ondas de violência de ambos os lados que permitiram que tal pudesse ter
ocorrido. Naturalmente que a morte dos Romanov tal como terá acontecido, não
apaga os imensos crimes do reinado deste, e não só este, czar, mas não convém
esquecê-los porque a História não apaga registos. A locomotiva, após dois
toques breves e um longo, movimenta-se numa lentidão evolutiva, enquanto se
mantém a nossa dúvida se devíamos atravessar os Urais em direcção a Perm ou
seguir pela Linha do Ural para visitar Cazan, a capital do Tartaristão nas
margens do Volga com o seu complexo do Kremlin como Património da Humanidade, a
beleza da Catedral da Anunciação ou a sublime formosura da sua Mesquita. Cazan
é História, o fluir da história, a passagem dos tártaro-mongóis. Este postal é
pequeno para tanto movimento humano. Mas já é tarde para voltar atrás, saímos
já da cidade e contornamos os Urais pelo Sul, entramos, pois, na Europa, mas
ainda com tanta Ásia, nos costumes, na cultura, nesses elos que ligam a
humanidade em qualquer lugar que se encontre. Vencida pelo cansaço, não vi a
passagem por Perm nem a longa travessia do Kama. O amanhecer encontrou-me com a
composição a atravessar o Volga e a entrarmos em Nijni-Novgorod. Estamos agora
a penetrar no espaço da Rússia milenar, nos seus séculos XII, XIII. Foi a
partir de Nijni que entre 1611 e 1612, um exército comandado pelo príncipe
Dmitri Pojarski e Kuzma Minin se dirigiu a Moscovo e expulsou as tropas polacas
que ali se haviam instalado à boleia do usurpador Dmétrio. Em Moscovo sempre se
pôde entrar, mas não se pode demorar. Tem sido uma lição repetida, tanto faz
que tenham sido os Tártaros-Mongóis, os polacos, Napoleão ou as hordas nazis. Não
fosse a nossa vontade de rumar a Norte e esta cidade onde nasceu Maximo Gorki
merecia uma longa visita. Ao início da tarde, este comboio que me trouxe
subitamente para Oeste, deixa-me na estação de Vladimir. O que aqui vou ver e
apreciar fica para outro postal.
01/05/25
NO CORRER DOS DIAS
Marques da Silva
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