António Mesquita
Um leitor do Expresso diz que "não sendo religioso, dos papas que conheci, este é o único que me faz falta" e num artigo do Público de há dias, diz-se que Francisco era o papa favorito de católicos e ateus. Porquê esta "unanimidade"?
Os ateus de que acima se fala não são menos crentes do que os verdadeiros católicos. É verdade que não aceitam os dogmas da doutrina nem os ensinamentos da Igreja, mas não deixam de acreditar em coisas como a ciência, no melhor dos casos, ou na opinião pública, no pior. Em quase todos os casos, acreditam em valores comuns que são coisas impalpáveis e não sujeitas a discussão, mas a afirmação ou negação peremptórias.
A Enciclopédia Britânica, por sua vez, diz que o ateísmo é a crítica ou negação da crença metafísica em Deus ou em seres divinos. O primeiro materialismo aconteceu na Grécia, com Demócrito e Epicuro. O agnosticismo estaria fundado numa série de sistemas filosóficos e Hume e Kant, no século XVIII, sem serem ateus, contestariam as tradicionais provas da existência de Deus. No século seguinte, Feuerbach e o marxismo, exemplificam o moderno materialismo, explicando a religião como uma projecção humana e Nietzsche proclamou a morte de Deus e a liberdade dos valores. O resumo da EB termina com o Positivismo Lógico e a sua ideia de que as afirmações sobre a existência ou não existência de Deus não têm sentido.
Entretanto, chegou-me às mãos, um livro de 2023, editado pela Relógio de Água, "Morte e Democracia". Nele, José Gil diz diz que a morte está na origem de todas as nossas representações metafísicas. E a morte, muito mais do que qualquer credo religioso, afirmação ou negação de Deus, com provas ou sem provas, é-nos intrinsecamente familiar. Ninguém, por mais beócio que se possa imaginar, a desconhece, embora sempre a dos outros. Esse é o ponto.
Há, evidentemente um curioso paralelismo entre a concepção da imortalidade, sob todas as formas possíveis, queremos dizer, a negação do fenómeno da morte (para aqueles que acreditam na sua fenomenalidade) e qualquer declaração sobre Deus.
Para José Gil, a morte não pode ser pensada (e a dos outros não é a morte, quando muito é a dor e o luto) porque é o nada. E, no entanto, todos a pensamos sob uma ou outra forma. O filósofo vai mais longe, dizendo que essa operação de pensar o nada e a sua reversão na linguagem está na origem da possibilidade de pensar 'tout court'.
O que são as pirâmides do Antigo Egipto, ou os túmulos de Fayum, a oeste do Cairo, como os túmulos dos Azetecas ou as lápides e as inscrições de qualquer cemitério dos nossos dias? O senso comum vê nisso a memória e o monumento. Assim, erguendo a estela conferimos uma espécie de segunda vida aos finados, para melhor nos esquecermos deles, sem nos rendermos ao nada. Nenhuma civilização conhecida fez outra coisa.
É essa capacidade de dar vida ao símbolo que é mais do que pensamento que nos permite converter o nada em espírito, isto é, o que está por detrás das nossas ideias e dos nossos sistemas, que graças a isso não são meras abstracções. José Gil, mais uma vez: "Pensar de uma certa maneira numa cadeira supõe que a cadeira não é um banco, uma mesa, etc., isto é, uma não-cadeira. É esta diferença entre um ente e um não-ente que o pensamento concebe como "não sendo nada" de pensável. Eis o grande paradoxo do nada: não é nada, pois não é pensável senão como impossibilidade de ser pensado, e, no entanto, é este nada (e não outro, do género "ausência" ou "privação") que permite todo o
pensar, todo o movimento de pensamento."
No filme de Fritz Lang, "Le Mépris" (1963), citado por Jacques Drillon, recita-se um poema de Brecht: "Todas as manhãs para ganhar o meu pão/ Vou ao mercado onde vendem mentiras/ E cheio de esperança/ Ponho-me ao lado do vendedor." O poema chama-se 'Hollywood'.
Passo a palavra a Drillon: "Eis o que eles querem e sempre quiseram; Hollywood. O cinema recria aos nossos olhos um mundo que concorda com os nossos desejos." E Hannah Arendt: "Hoje é quase universalmente admitido que temos de fabricar automóveis para alimentar o emprego e já não para assegurar o transporte das pessoas." O que andamos a fazer e as razões para tal nunca são as que pensamos se deixarmos de crer nisso.
Para não cairmos no cinismo, temos de concluir que não só não fazemos o que queremos, como queremos, mas a imagem que alimentamos sobre nós próprios é, de certeza, a que melhor convém às nossas ilusões.
Ateus? Ou crentes no 'Sunset Boulevard' e na Economia Política?
Ora, voltando a Francisco. Não é a sua figura, o seu exemplo, neste tempo de descrença programada, de 'fake news' como lhes chamam, de cinismo sem trela, a melhor demonstração de que precisamos de boas crenças, tão ameaçadas pelo mundo 'profano' como a cidade humana pela catástrofe climática?
E como acreditar quando se sabe que é uma crença, mesmo sendo a melhor? É o diabo. Sobretudo as perguntas certas são por ele inspiradas, mesmo se não se acredita nele nem na ideia do pecado.
O diabo é simplesmente a fadiga. Já dizia Émile Chartier que nos cansamos de ser sempre platónicos (ou católicos, islamistas ou ateus consequentes) e que isso explicaria o aparecimento de Aristóteles. "É preciso viver; e isso, todavia, foi o que Platão nunca disse."
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