01/03/24
NO CORRER DOS DIAS
Marques da Silva
Há momentos na vida em que não podemos ficar calados. Fazê-lo não só nos tornaria cúmplices como co-autores dos crimes. Como alguém escreveu num cartaz, “Devemos guardar silêncio quando as crianças dormem, mas não quando são assassinadas”. Há cinco meses que assistimos incrédulos e impotentes a uma monstruosa limpeza étnica sem precedentes na História moderna. Os números são assustadores e fazem desequilibrar qualquer tentativa de perceber o quão hediondo está a acontecer perante o nosso olhar. Trinta mil mortos civis, sendo que setenta por cento são mulheres e crianças, quinze mil crianças assassinadas, trezentas e sessenta mil casas destruídas, hospitais assaltados e desfeitos, mesquitas arrasadas pela base, bebés pré-naturos mortos nas incubadoras cujos médicos foram obrigados a abandoná-las pela força das armas, doentes mortos em unidades de cuidados intensivos por cortes da energia e de oxigénio, centenas de jornalistas assassinados, famílias inteiras bombardeadas e mortas, ambulâncias destruídas em sucessivos bombardeamentos, pessoal médico preso, cerca de duas centenas de trabalhadores das Nações Unidas assassinados, setenta mil toneladas de bombas sobre as casas de Gaza, ruas destruídas a buldózer em Gaza e na Cisjordânia, rebentamento das condutas de abastecimento de água, colunas de abastecimento bombardeadas, milhares de civis palestinianos presos, torturados e humilhados, populações intimadas a deslocarem-se para Sul e quando a Sul chegam são intimadas a fugir para Norte. Entretanto, são bombardeadas pelo caminho. Soldados judeus filmam-se enquanto destroem bairros inteiros e dedicam a proeza à mulher e aos filhos. É uma hecatombe. Procuramos palavras conhecidas como, infâmia, selvajaria, crime, mas são escassas para transmitirem o que ocorre na terra da Palestina. Temos de compor palavras novas. Não é inocente a acção de matar mulheres e crianças, é o futuro que estão a pretender dizimar. Israel é um país inventado. Forjado sobre uma das maiores aldrabices da História, “Um povo sem terra, para uma terra sem povo”. Nunca existiu, nem um aspecto nem o outro. Os judeus são unicamente um povo religioso, naturais e cidadãos dos mais diversos países do mundo, unidos apenas pela religião. Mais de noventa por cento dos actuais habitantes do Estado de Israel, são emigrantes ou filhos e netos de emigrantes. O que têm feito ao longo de setenta e seis anos é tornar a sua aldrabice em verdade através da expulsão maciça do povo autóctone. O Estado de Israel nunca cumpriu qualquer resolução das Nações Unidas, invadiu três vezes, o Líbano, a Síria, a Jordânia e o Egipto e ocupa ilegalmente territórios da Síria e da Palestina. Bombardeia outros países quando lhe apetece e lhe convém, sempre usufruindo de uma impunidade garantida pelas democracias coloniais. Não têm limite para as suas loucuras. Na definição do inenarrável George W. Bush, Israel é um Estado pária. Saramago escreveu um dia que no interior do Estado de Israel existe um campo de concentração onde vivem cinco milhões de palestinianos. Mas o Estado de Israel há muito se converteu num hospital psiquiátrico a céu aberto, onde psicopatas incuráveis se passeiam com toda a impunidade para os seus crimes. O à vontade com que descrevem os seus intentos criminosos não é apenas perturbadora, deixa-nos na perplexidade de tentar compreender como foi possível chegarmos aqui. As democracias coloniais inventam narrativas sempre que pretendem actuar como imperialismo colonizador. Para a destruição da Jugoslávia e da Líbia, auto-denominaram-se, «comunidade internacional». Para a guerra que grassa na Ucrânia há dez anos, a narrativa passou a ser, «Ocidente colectivo». Como já todos percebemos, o «Ocidente colectivo» são trinta e cinco países, mas como há dias concluiu o delicioso Borrell, “O domínio do «Ocidente colectivo» está a chegar ao seu fim”. Mas para a cobertura dos crimes aterrorizantes do Estado Judeu a narrativa passou a ser «Israel tem direito a defender-se». Pela primeira vez na História, o país colonizador e ocupante tem «direito a defender-se» perante os ocupados, os colonizados, como se a vítima se transformasse em opressor. A ser verdade esta narrativa ainda teríamos o exército nazi com direito a defender-se dos maquisards franceses. Como se a destruição de Oradour-sur-Glane, se transformasse de um miserável e monstruoso crime de guerra num direito de defesa. É em absoluto a perda total da razão, do equilíbrio, é o declive para o fim de um domínio colonial de quinhentos anos que leva as elites do «Ocidente colectivo» a um destempero sem freio. De resto, experiência de arrasar aldeias, expulsar e matar os seus habitantes e aplanar o terreno fazendo desaparecer qualquer evidência dos crimes, é experiência que não falta aos judeus do Estado de Israel. Mas a narrativa dos judeus não se queda no «direito a defender-se», criou uma outra para a acção militar dos grupos armados palestinianos no dia 07 de Outubro, «o horrendo massacre do Hamas». Quando as evidências, os factos e as provas começaram a acumular-se – dos 1200 mortos judeus, 40% eram militares no activo e na reserva, gente armada, e os restantes foram mortos pelo bombardeamento aéreo e de blindados do exército judeu ou em fogo cruzado -, o colectivo de loucura que domina o Estado, aprovou uma lei que criminaliza quem contestar a narrativa do governo. E a quem contesta qualquer direito ao Estado ocupante, transformam-no em «anti-semita» como se o povo árabe não fosse também um povo semita. A brilhante acção militar das forças palestinianas de Gaza, veio trazer para a arena política mundial o sofrimento de um povo que leva já oitenta anos de resistência, milhares e milhares de mortos, outros tantos milhares de prisioneiros e milhões e milhões de expulsos ou condenados a viver em autênticos campos de concentração. Apesar da fraulein europeia ter corrido para Jerusalém para abraçar o seu estimado Bibi, numa visita infamante e de absoluto desprezo pelo povo da Palestina, o seu Bibi na sua vivência demencial não se apercebeu que o mundo em redor está a mudar e nem as suas nem as narrativas do «Ocidente colectivo» têm caminho para singrar. Já não basta a frase dos senadores romanos, «até quando vais tu Catilina abusar da nossa paciência». Já não basta, a paciência esgotou-se perante gente a viver demencialmente na pré-história, acreditando, como os fanáticos do Texas e da Guiana nas décadas de 70 e 80, que são um «povo eleito e escolhido». Os mortos, feridos e amputados do exército judeu acumulam-se aos milhares e a resposta para os milicianos do Hezbollah ou dos Hutis do Iémen é já de quem está a perder o fôlego. O Estado de Israel na sua violência cruel, desumana e impune subiu tão alto que a partir de Outubro só pode descer e sem dúvida que vai declinar, até aprenderem a conviver, no território que assaltaram, com o povo milenar que ali habita. Como canta a cristã libanesa, Julia Boutros, «resistiremos» (1). Sim, os palestinianos continuarão a fazer o que fazem há oitenta anos, RESISTIR. É certo que sobre a terra queimada e revolvida pelas bombas de Gaza e da Palestina já não se ouve o chamamento à oração do muezzin. Mas do subsolo da terra ardida, nasce um grito dos sobreviventes que não perdoarão ao mundo se este permitir, de novo, que os crimes do Estado Judeu continuem impunes.
1) https://www.google.com/search?q=julia+boutros%2C+palestina&rlz=1C1GCEA_enPT795PT795&oq=julia&gs_lcrp=EgZjaHJvbWUqBggBECMYJzIGCAAQRRg5MgYIARAjGCcyDggCECMYExgnGIAEGIoFMgcIAxAuGIAEMgoIBBAuGNQCGIAEMgoIBRAuGNQCGIAEMhMIBhAuGIMBGK8BGMcBGLEDGIAEMg0IBxAuGIMBGLEDGIAEMgYICBAAGAMyBggJEAAYA9IBCTU0NDNqMGoxNagCALACAA&sourceid=chrome&ie=UTF-8#fpstate=ive&vld=cid:3b744042,vid:834tyxBxksU,st:0
A CRUCIFICAÇÃO BRANCA
António Mesquita
O passado não passa. Transforma-se, como disse Lavoisier de tudo.
Não se pode dizer que tudo começou com a criação do Estado de Israel na Palestina, num território já ocupado. Na altura todos éramos alemães, com uma inextinguível culpa colectiva. Porque o que se convencionou chamar de Holocausto que era, na Grécia Antiga, o sacrifício religioso dos animais na fogueira para agradar aos deuses, foi, na verdade, uma estreia do Estado moderno, com a técnica disponível na altura, na reconversão dum problema cultural de sempre que não estava só na cabeça dum cabo de guerra e pintor falhado. O que o distingue dos inúmeros 'progroms' da Idade Média é a escala e a forma estato-industrial do fenómeno.
Na Europa, o ódio ao judeu não nasceu num contexto muçulmano, nem religioso - não se queria vingar a crucificação do Cristo -, e no século XX tinha mais afinidade com as teorias sociais (ligadas à usura, ao enriquecimento e à finança) do que com a religião. Nos nazis, havia também, paradoxalmente, um darwinismo ideológico
que os levava a considerar o seu inimigo de eleição melhor tratado pelos veterinários do que pelos médicos.
Fomos todos coniventes por deixar que acontecesse. O preconceito estava lá bem no fundo. Para o que contribui enormemente o culto separado da identidade. O judeu não se imisce e pensa no espaço do Livro que só dum modo secundário é um espaço político.
Pode dizer-se que esse povo dentro do povo sempre foi, na essência, uma espécie de casta com vantagens organizacionais e cognitivas em relação ao comum dos cidadãos. A perseguição e a inveja foram em todos os tempos o seu lote.
Näo foi por acaso que os judeus dominaram a finança na Idade Média e no capitalismo moderno. Há razões para a elevada percentagem de genialidade nas ciências e na literatura provinda desse meio "protegido do tempo".
No livro de Martin Amis que inspirou o filme de Glazer "The zone of interest", Boris, um coronel da Waffen-SS, atribui aos seus compatriotas uma certa grosseria, face aos Franceses, por exemplo, que em qualquer classe têm mais 'finesse' e espírito. Teriam eles sido capazes de criar os 'Lager' e os camiões de gás, o Holocausto que todos os dias é recalcado nos media?
O caso da Alemanha é intrigante. Por que é que foi ali que o horror aconteceu? Não podemos salvar essa nação da responsabilidade ilimitada, mesmo se os factos ultrapassam cada indivíduo, seja ele qual for, muito para lá da ideia de vontade ou de destino. Dum lado, a música, a filosofia e os poetas. Do outro, a grosseria da nação, a sua insensibilidade cósmica - ou é outra coisa que só a tragédia grega pode abordar? Em Amis ainda, o militar que cogita no absurdo do extermínio em prejuízo das necessidades básicas da guerra mundial e que compara a finura de qualquer francês com o tosco germânico, dá voz a um sentimento comum a que uma personagem como Paul Doll (comandante do campo) só pode fugir pela completa alienação, conjugada com a ocasional revolta do corpo através do vómito.
Mas o passado não é ficção televisiva ou cinematográfica. E quem menos o sente assim são naturalmente os judeus. Para os Alemães pode ser um monstro íntimo de culpa (que não impede o ressurgimento de uma minoria nazi), mas para os judeus é um destino "bíblico" que, como se vê em Gaza, agora, se sentem investidos duma missão divina de resgatar o Holocausto, se for necessário impondo-o numa versão genocidária ao "outro" palestiniano.
Na actual situação em Gaza, duma certa maneira, tudo poderia ter sido previsto, em função da história viva. E é por isso que é difícil não nos sentirmos todos culpados. É por escapismo que acusamos Netanyahu, como se cada israelita no fundo de si mesmo não se identificasse com o massacre dos "amalecitas".
É pouco dizer que as partes directamente envolvidas, a nação-exército justiceira e o terrorismo subterrâneo apostado no extermínio do Inimigo de religião, são incapazes de deter o caos e a desumanização de todos os beligerantes. E nenhuma força exterior parece poder fazê-lo também. Acima de tudo, a paz é impedida pela ideia "total" de cada parte sobre a outra e sobre si própria. Porque os muçulmanos são o que são (fanáticos, mosóginos e dum anacronismo ululante) e os israelitas são o que são (sionistas, cúpidos e convencidos da sua superioridade - Boris, no romance, diz: "The Jews had to come down from their high horse." ).
Como diz Bruno Latour (*): "Nascemos no pós-guerra, tendo, atrás de nós, os campos negros, e depois os campos vermelhos, abaixo de nós, as fomes, por cima das nossas cabeças, o apocalipse nuclear, e diante de nós, a destruição global do planeta. É difícil, com efeito, negar os efeitos de escala, mas mais difícil ainda é crer sem hesitação nas virtudes incomparáveis das revoluções políticas, médicas, científicas ou económicas. E, no entanto, nascemos no meio das ciências, só conhecemos a paz e a prosperidade, e adoramos - é preciso confessá-lo - as técnicas e os objectos de consumo que os filósofos e os moralistas das gerações precedentes nos aconselham a abominar."
Ou seja, Latour está a dizer-nos que não devemos julgar para além do que sabemos, o que é um pensamento tão antigo como Sócrates. Mas o mais comum dos desfechos é, infelizmente, a cicuta. E como é que termina o filme de Kubrick "Dr. Strangelove"? Com cowboiadas e cogumelos atómicos...
(*) "Nous n'avons jamais été modernes"
DA VERDADE OBJECTIVA
Mário Martins
https://pt.quora.com/Qual-%C3%A9-a-sua-opini%C3%A3o-sobre-o-conceito-de-verdade-subjetiva
“A verdade é vista como um fenómeno oracular e não como uma realidade objectiva; é aquilo que o poder declarar que é verdadeiro, não há factos acima da opinião relativa do chefe e da sua ideologia.”
Timothy Snyder, citado por Henrique Raposo in “O fascismo tem um nome: pós-verdade”
Revista do Expresso, 2023-10-20
Partindo da consideração de que “O jargão pós-moderno, que manteve nas últimas décadas um mantra absoluto no coração da cultura ocidental (segundo o qual) não se pode ter discussões morais, pois tudo é relativo; não há uma verdade válida acima dos grupos historicamente situados, cada grupo tem a sua ‘verdade’; só há pontos de vista.”; bem como da identificação de casos típicos da pós-verdade (Trump é um homem amoral, e o trumpismo é a manifestação de um mal; os tories ingleses que promoveram a fraude do Brexit diziam que os factos são para totós), Raposo conclui, em forma de aviso, que “Se não reassumirmos que existe de facto uma verdade objectiva e impessoal acima de pessoas e facções, o mal triunfará e a esquerda pós-moderna e a direita randiana* serão os idiotas úteis do fascismo 2.0.”
Se subscrevo esta crítica da pós-verdade, essa espécie de guarda-chuva conceptual que abriga os sofistas da contemporaneidade, praticantes de toda a sorte de desmandos, desde o menosprezo da ciência e da prova, até ao logro da difusão de notícias falsas, importa, no entanto, examinar mais detidamente o conceito de verdade objectiva.
Contextualizemos, primeiro: o que queremos dizer quando falamos de verdade objectiva? No meu artigo de Dezembro passado defendi que não é humanamente possível aceder à verdade natural ou absoluta, ao âmago e ao sentido da Natureza. Donde, a verdade objectiva é a que se gera dentro do perímetro humano (o qual ninguém pode ultrapassar seja por que forma for), isto é, na relação entre os homens (a pessoa x está ou esteve com a pessoa y no local z) e entre estes e o mundo que os cerca (ontem, na praia, apanhei um valente escaldão). Verdade objectiva, sim, mas humana.
Dizem os filósofos clássicos (v.g. Kant – 1724-1804) que “A verdade material deve consistir na concordância do conhecimento com (um) objecto determinado ao qual se refere (…)” (Dicionário de Filosofia, de Jacqueline Russ)
Já na contemporaneidade, em Habermas (n. 1929) a verdade confunde-se com a validade intersubjectiva ou consenso. Se uma proposição não é submetida ao crivo da comunidade, nada se pode dizer sobre a sua falsidade (Wikipédia).
Asserções sobre as quais paira o fantasma do Relativismo, conceito segundo o qual os pontos de vista não têm uma verdade absoluta ou uma validade intrínseca, mas apenas um valor relativo, subjectivo, e de acordo com diferenças na percepção e consideração; conceito este que, no entanto, foi desde há muito refutado pelo filósofo grego Sócrates, pela pena de Platão: se são verdadeiras todas as opiniões mantidas por qualquer pessoa, então também é preciso reconhecer a verdade da opinião que considera que o relativismo é falso; ou seja, se o relativismo é verdadeiro, então ele é falso (desde que alguém o considere falso).
Ao invés, a imagem em epígrafe sugere que a verdade é relativa uma vez que, à primeira vista, o mesmo objecto aritmético tem duas leituras diferentes. O facto, todavia, é que não se trata de um único objecto aritmético, mas sim de dois: um 6 e um 9, tal dependendo da posição oposta dos dois observadores.
Em apoio da sua crítica à pós-verdade, Raposo invoca a ideia de razão em Platão a qual questiona e se fundamenta na ideia de justiça. “O que é a justiça? O que é uma sociedade justa? É a nossa sociedade actual uma sociedade justa? interroga Raposo para, de seguida, concluir: Este confronto entre a ‘medida justa’ – platónica e kantiana – e a realidade é a base da nossa civilização, da filosofia, do direito, da literatura. E esta ideia universal, esta ‘medida justa’ para a qual devemos apontar a nossa inteligência, é acessível a qualquer ser humano, seja qual for a sua raça, idade, sexo, nacionalidade ou mesmo época histórica.”
Observo porém, que as diferentes culturas e valores civilizacionais constituem muros altos que só a ciência, com o seu método e linguagem verdadeiramente universais, consegue transpor. A ciência une o que a cultura desagrega, infelizmente com grande vantagem para esta, a não ser que, eventualmente, venha a prevalecer uma cultura verdadeiramente planetária.
*Ayn Rand (pseudónimo de Alisa Rosenbaum), foi uma filósofa e romancista americana, de origem judaico-russa, que no seu mais famoso romance “A Revolta de Atlas”, coloca uma personagem a defender que “Não existem factos objectivos. Todos os relatos sobre os factos são apenas as opiniões de alguém. Por isso, é inútil escrever acerca de factos […] Nada é absoluto. Tudo é uma questão de opinião.”
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