Marques da Silva
Há momentos na vida em que não podemos ficar calados. Fazê-lo não só nos tornaria cúmplices como co-autores dos crimes. Como alguém escreveu num cartaz, “Devemos guardar silêncio quando as crianças dormem, mas não quando são assassinadas”. Há cinco meses que assistimos incrédulos e impotentes a uma monstruosa limpeza étnica sem precedentes na História moderna. Os números são assustadores e fazem desequilibrar qualquer tentativa de perceber o quão hediondo está a acontecer perante o nosso olhar. Trinta mil mortos civis, sendo que setenta por cento são mulheres e crianças, quinze mil crianças assassinadas, trezentas e sessenta mil casas destruídas, hospitais assaltados e desfeitos, mesquitas arrasadas pela base, bebés pré-naturos mortos nas incubadoras cujos médicos foram obrigados a abandoná-las pela força das armas, doentes mortos em unidades de cuidados intensivos por cortes da energia e de oxigénio, centenas de jornalistas assassinados, famílias inteiras bombardeadas e mortas, ambulâncias destruídas em sucessivos bombardeamentos, pessoal médico preso, cerca de duas centenas de trabalhadores das Nações Unidas assassinados, setenta mil toneladas de bombas sobre as casas de Gaza, ruas destruídas a buldózer em Gaza e na Cisjordânia, rebentamento das condutas de abastecimento de água, colunas de abastecimento bombardeadas, milhares de civis palestinianos presos, torturados e humilhados, populações intimadas a deslocarem-se para Sul e quando a Sul chegam são intimadas a fugir para Norte. Entretanto, são bombardeadas pelo caminho. Soldados judeus filmam-se enquanto destroem bairros inteiros e dedicam a proeza à mulher e aos filhos. É uma hecatombe. Procuramos palavras conhecidas como, infâmia, selvajaria, crime, mas são escassas para transmitirem o que ocorre na terra da Palestina. Temos de compor palavras novas. Não é inocente a acção de matar mulheres e crianças, é o futuro que estão a pretender dizimar. Israel é um país inventado. Forjado sobre uma das maiores aldrabices da História, “Um povo sem terra, para uma terra sem povo”. Nunca existiu, nem um aspecto nem o outro. Os judeus são unicamente um povo religioso, naturais e cidadãos dos mais diversos países do mundo, unidos apenas pela religião. Mais de noventa por cento dos actuais habitantes do Estado de Israel, são emigrantes ou filhos e netos de emigrantes. O que têm feito ao longo de setenta e seis anos é tornar a sua aldrabice em verdade através da expulsão maciça do povo autóctone. O Estado de Israel nunca cumpriu qualquer resolução das Nações Unidas, invadiu três vezes, o Líbano, a Síria, a Jordânia e o Egipto e ocupa ilegalmente territórios da Síria e da Palestina. Bombardeia outros países quando lhe apetece e lhe convém, sempre usufruindo de uma impunidade garantida pelas democracias coloniais. Não têm limite para as suas loucuras. Na definição do inenarrável George W. Bush, Israel é um Estado pária. Saramago escreveu um dia que no interior do Estado de Israel existe um campo de concentração onde vivem cinco milhões de palestinianos. Mas o Estado de Israel há muito se converteu num hospital psiquiátrico a céu aberto, onde psicopatas incuráveis se passeiam com toda a impunidade para os seus crimes. O à vontade com que descrevem os seus intentos criminosos não é apenas perturbadora, deixa-nos na perplexidade de tentar compreender como foi possível chegarmos aqui. As democracias coloniais inventam narrativas sempre que pretendem actuar como imperialismo colonizador. Para a destruição da Jugoslávia e da Líbia, auto-denominaram-se, «comunidade internacional». Para a guerra que grassa na Ucrânia há dez anos, a narrativa passou a ser, «Ocidente colectivo». Como já todos percebemos, o «Ocidente colectivo» são trinta e cinco países, mas como há dias concluiu o delicioso Borrell, “O domínio do «Ocidente colectivo» está a chegar ao seu fim”. Mas para a cobertura dos crimes aterrorizantes do Estado Judeu a narrativa passou a ser «Israel tem direito a defender-se». Pela primeira vez na História, o país colonizador e ocupante tem «direito a defender-se» perante os ocupados, os colonizados, como se a vítima se transformasse em opressor. A ser verdade esta narrativa ainda teríamos o exército nazi com direito a defender-se dos maquisards franceses. Como se a destruição de Oradour-sur-Glane, se transformasse de um miserável e monstruoso crime de guerra num direito de defesa. É em absoluto a perda total da razão, do equilíbrio, é o declive para o fim de um domínio colonial de quinhentos anos que leva as elites do «Ocidente colectivo» a um destempero sem freio. De resto, experiência de arrasar aldeias, expulsar e matar os seus habitantes e aplanar o terreno fazendo desaparecer qualquer evidência dos crimes, é experiência que não falta aos judeus do Estado de Israel. Mas a narrativa dos judeus não se queda no «direito a defender-se», criou uma outra para a acção militar dos grupos armados palestinianos no dia 07 de Outubro, «o horrendo massacre do Hamas». Quando as evidências, os factos e as provas começaram a acumular-se – dos 1200 mortos judeus, 40% eram militares no activo e na reserva, gente armada, e os restantes foram mortos pelo bombardeamento aéreo e de blindados do exército judeu ou em fogo cruzado -, o colectivo de loucura que domina o Estado, aprovou uma lei que criminaliza quem contestar a narrativa do governo. E a quem contesta qualquer direito ao Estado ocupante, transformam-no em «anti-semita» como se o povo árabe não fosse também um povo semita. A brilhante acção militar das forças palestinianas de Gaza, veio trazer para a arena política mundial o sofrimento de um povo que leva já oitenta anos de resistência, milhares e milhares de mortos, outros tantos milhares de prisioneiros e milhões e milhões de expulsos ou condenados a viver em autênticos campos de concentração. Apesar da fraulein europeia ter corrido para Jerusalém para abraçar o seu estimado Bibi, numa visita infamante e de absoluto desprezo pelo povo da Palestina, o seu Bibi na sua vivência demencial não se apercebeu que o mundo em redor está a mudar e nem as suas nem as narrativas do «Ocidente colectivo» têm caminho para singrar. Já não basta a frase dos senadores romanos, «até quando vais tu Catilina abusar da nossa paciência». Já não basta, a paciência esgotou-se perante gente a viver demencialmente na pré-história, acreditando, como os fanáticos do Texas e da Guiana nas décadas de 70 e 80, que são um «povo eleito e escolhido». Os mortos, feridos e amputados do exército judeu acumulam-se aos milhares e a resposta para os milicianos do Hezbollah ou dos Hutis do Iémen é já de quem está a perder o fôlego. O Estado de Israel na sua violência cruel, desumana e impune subiu tão alto que a partir de Outubro só pode descer e sem dúvida que vai declinar, até aprenderem a conviver, no território que assaltaram, com o povo milenar que ali habita. Como canta a cristã libanesa, Julia Boutros, «resistiremos» (1). Sim, os palestinianos continuarão a fazer o que fazem há oitenta anos, RESISTIR. É certo que sobre a terra queimada e revolvida pelas bombas de Gaza e da Palestina já não se ouve o chamamento à oração do muezzin. Mas do subsolo da terra ardida, nasce um grito dos sobreviventes que não perdoarão ao mundo se este permitir, de novo, que os crimes do Estado Judeu continuem impunes.
1) https://www.google.com/search?q=julia+boutros%2C+palestina&rlz=1C1GCEA_enPT795PT795&oq=julia&gs_lcrp=EgZjaHJvbWUqBggBECMYJzIGCAAQRRg5MgYIARAjGCcyDggCECMYExgnGIAEGIoFMgcIAxAuGIAEMgoIBBAuGNQCGIAEMgoIBRAuGNQCGIAEMhMIBhAuGIMBGK8BGMcBGLEDGIAEMg0IBxAuGIMBGLEDGIAEMgYICBAAGAMyBggJEAAYA9IBCTU0NDNqMGoxNagCALACAA&sourceid=chrome&ie=UTF-8#fpstate=ive&vld=cid:3b744042,vid:834tyxBxksU,st:0
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