António Mesquita
Maquiavel, nos seus "Discursos Sobre a Primeira Década de Tito Lívio" reflecte sobre as relações entre a religião e a política. Como diz Hannah Arendt, para ele, "o ponto decisivo era que todo o contacto entre a religião e a política tem de corromper ambos, e que uma Igreja não corrompida, se bem que consideravelmente mais respeitável, seria ainda mais destrutiva para o domínio público que a Igreja corrompida de então."
À primeira vista, pode parecer que a melhor ilustração da ideia de Maquiavel e do seu acerto seria o moderno radicalismo islâmico. Como se sabe, a história da religião muçulmana mostra-nos períodos de grande tolerância, inclusivé para com o povo judeu. O contrário disso, foi a política dos Reis Católicos que inspirou a expulsão dos judeus em Portugal por D. Manuel I. O terrorismo, ao arrepio dessa história, parece duma "pureza" intratável".
Numa entrevista recente, Marc David Baer, diz: "Os otomanos eram práticos. Acolhiam todo o tipo de pessoas que achavam poder ajudar a dinastia, o império. Quando no resto da Europa os judeus eram convertidos à força, massacrados ou expulsos, muitos acabavam no império otomano. Tendo sido obrigados a tornar-se católicos em Espanha e em Portugal, voltavam a ser judeus no império otomano. E subiam nas hierarquias, tornando-se os principais tradutores, diplomatas, médicos e espiões na dinastia otomana."(Expresso de 10/3/23)
Mas como doença senil do islamismo, o fenómeno do terrorismo é quase incompreensível. A motivação dum homem como Bin Laden ou a dum imigrante radicalizado num país ocidental não tem nada a ver com a dum crente que siga a tradição muçulmana, embora os apelos à matança dos infiéis não faltem no seu livro sagrado, como de resto não faltam no Antigo Testamento. O terrorismo é uma língua exclusiva de toda a comunicação com o Outro.
Henrique Raposo(*) fustiga a ideia de que o terrorismo é uma consequência da globalização que favoreceria uma irresponsabilização da violência, na esteira dos argumentos dum Immanuel Wallerstein: "A cultura da desculpabilização termina o seu percurso argumentativo na rejeição de qualquer contra-resposta ocidental. Mais uma vez, a ideia é simples de seguir: não se pode combater directamente o terrorismo, porque a responsabilidade é um exclusivo das estruturas económicas; os terroristas e as suas ideias são inimputáveis."
Por sua vez, António Guerreiro escreve no Público (22/7/2016); "Agora, em Nice, temos novamente um indivíduo do qual não se conhece qualquer ligação ao Islão religioso nem ao Islamismo político radical. E cujo “modo de vida” conhecido parece mais consentâneo com a paixão narcísica do Ocidente do que com a paixão ascética do Islão.", o que leva o articulista a falar duma "islamização da revolta". Da revolta social que não tem um fundo religioso, mas é uma condição do homem moderno, que já foi tema dum livro de Albert Camus ("L'Homme Revolté").
É que a religião neste indivíduo revoltado, sem poder dar um nome à sua oposição, depois da falência da explicação pelo sistema político ou pelo sistema "tout court", está mais próxima do niilismo e da impossibilidade de qualquer discussão. Essa posição confunde-se aqui com a intransigência ética, que caracteriza, aos seus próprios olhos, este terrorismo e, idealmente, o mártir da causa.
Voltando à ideia da corrupção no ilustre florentino. Ele começa por dizer nos "Discorsi" que a religião é necessária se for introduzida num estado já armado, como teve que fazer Numa Pompílio: "Tanto que, se tivéssemos de decidir a qual príncipe Roma devesse mais, se a Rômulo ou a Numa, creio que, certamente, Numa obteria o primeiro lugar porque, onde há religião, facilmente se pode introduzir as armas e, onde há armas e não há religião, dificilmente se pode introduzir esta. E se vê que Rômulo, para organizar o Senado e para instituir outras ordens civis e militares, não necessitou da autoridade de Deus, mas esta foi bem necessária a Numa, que fingiu ter familiaridade com uma Ninfa, que o aconselhava sobre o que ele tinha de dizer ao povo, e a causa de tudo isso era que ele desejava impor ordens novas e inusitadas naquela cidade e duvidava que a sua autoridade bastasse."
Segundo o autor do "Príncipe", a igreja romana, não podendo unificar a península italiana, tratou de gerir, de acordo com os seus interesses, a desunião dos povos. Isto pode ser entendido como um efeito maior do contacto corruptor com a política. Aqui a pergunta a fazer não seria sobre o grau de destruição do âmbito político por uma Igreja autenticamente cristã. Porque Maquiavel não fala nesta acepção, mas duma Igreja não corrompida pela política, o que pode ser entendido como uma Igreja supremacista, impondo o seu ponto de vista político-religioso à sociedade como um todo.
Essa não separação das águas, sob a égide da doutrina ou da ideologia em nome de Cristo, é que é o verdadeiro índice da corrupção do religioso. Foi isso que se viu no período das cruzadas e durante a Inquisição.
Só podemos entender essa militância eclesial, com os meios profanos, como um caso de corrupção do espírito cristão e de fraqueza da organização política. Mas seria nesse sentido que Maquiavel entendia uma hipotética não-corrupção da Igreja, como um fechamento da instituição sobre si própria com a consequente ingurgitação do político, que não me parece o caso do terrorismo islâmico? No seu artigo, António Guerreiro cita uma entrevista de Peter Sloterdijk em que este diz: “na perspectiva da realpolitik, se o terrorismo não existisse teria de ser inventado”. Perspectiva em que o terrorismo já não é, evidentemente, um fenómeno religioso, islâmico ou outra coisa.
Se pensarmos que o objectivo desejado por Maquiavel da unidade da Itália foi preterido pela corrupção da igreja, o que faltou foi um novo Rómulo e não uma religião mais pura ou mais supremacista.
* (https://ipri.unl.pt/images/publicacoes/revista_ri/pdf/r5/RI5_rec03_HRaposo.pdf)
CINEMA
"TUDO EM TODO O LADO AO MESMO TEMPO"
(Filme de Daniel Kwan e Daniel Scheinert de 2022)
Pode um ritmo tão frenético ser repetivo e maçador? Pode, desde que se esqueçam os tempos e a lei musical dos andamentos.
O caos aparente pode fazer sentido, como o faria um argumento escrito pelo Chat GPT, projectado para sacudir o espectador e deixá-lo atordoado como sob o efeito da droga. São 139 minutos dentro duma centrifugadora, talvez porque as personagens são os donos duma lavandaria.
E foi isto que levou todos os óscares e que fez preterir um filme como "Tár"? Uma outra geração de críticos tomou o poder. Alguém já falou na geração Tik Tok...
É o sinal que as modas como a do cancelamento ou a do politicamente correcto já não são temporárias nem minoritárias. A cultura é a do tudo se vale e está em rede.
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