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01/04/23

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NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva








Todos os países possuem estradas emblemáticas. Umas pelas paisagens que atravessam, outras pela delicadeza do seu traçado, outras pelo património que albergam nas suas margens. Na pequena grandeza do nosso território, também essas estradas não faltam, pese embora, algumas quase desconhecidas. Sobretudo a Norte, caracterizam-se pelas longas distâncias na ligação de pontos extremos. Duas delas, unem o litoral marítimo à fronteira interior. Ambas acompanham rios, mas se a N16 que vai de extremo a extremo, perde o Vouga a meio do caminho, a N222 segue o Douro de princípio ao fim, sem descanso e sem temor atravessando dez concelhos. É uma estrada plena de passado, de presente e, sem dúvida, com imenso futuro. Foi à procura do passado e do presente que iniciei o percurso pela sua longa rota. A N222 inicia o seu traçado a cerca de quinhentos metros do princípio da velhinha N1. Esta segue para Sul, aquela ruma a Leste. Se queremos conhecer o que esconde esta estrada extraordinária temos de olhar, antes de mais para o lugar onde começa. Vila Nova de Gaia há muito que já não é Gaia nem Vila Nova, mas um espaço que se uniu e cresceu tão desmesuradamente que nos tapa o olhar com o grande e o pequeno numa amálgama arquitectónica que só os insaciáveis apetites imobiliários conseguem encontrar beleza no que fazem nascer em vidro e cimento. Mas alguns aspectos merecem relevo. O espaço mais aprazível da cidade para visitar é o Jardim do Morro. Não pelo jardim em si, mas tão só por ser da sua varanda sobre o Douro que se pode contemplar a mais bonita imagem do Porto, as suas vetustas casas penduradas no morro, o do outro lado, com as suas cores delicadas e cativantes. Antes de uma viagem tão longa apetece descansar o olhar sobre tão formoso casario. Por ali ficamos, dilatado tempo, sem que qualquer cansaço nos apressasse. Sobretudo porque à memória chegou outra viagem interrompida que esta veio permitir. Há longos dias acompanhávamos o percurso do rio Arax ao longo da fronteira do Naquichevão no Sul do longínquo Cáucaso através de estreitos vales, ladeados por cumes agrestes de montanhas elevadas, e pouco habitados. É um território pacífico e a quietude que sentimos transporta-nos para um tempo de aprazível sossego. Mas como em tantos lugares, as fronteiras mesmo quando invisíveis, tudo dificultam e separam os povos. Enquanto durou o mais bonito sonho da humanidade, essas linhas imaginárias que se constroem, não dividiam nem as utopias nem os humanos que as podem construir. Bastou que esse mundo ruísse para o passado regressar com a sua sombra de violência e os enclaves de arménios e azeris explodiram com o fulgor de vulcões. Se já não bastasse a mão do «Ocidente colectivo» perdido no lodo que chama os «nossos valores», a criminalidade do estado judeu decidiu aproximar-se da fronteira dos persas. Foi neste cenário entre a farsa e a tragédia que o silêncio de uma manhã auspiciosa foi interrompido pelo estrondo dos aviões de combate iranis a romperem a velocidade do som. Era tempo de regressar e aqui estamos olhando a velhinha cidade que cresceu em direcção ao topo. Poderíamos visitar a igreja do antigo mosteiro da Serra do Pilar onde o General Torres defendeu com valentia o Porto dos bombardeamentos miguelistas. Mas está encerrado por estes dias. Abaixo deste Jardim do Morro espraia-se a Vila Nova que D. Afonso fez erguer para que o Bispo dividisse as rendas com o Estado que nascia e à esquerda ligeiramente afastado é de visita obrigatória percorrer as vielas e becos da antiga Cale ou Gale, subindo até ao castelo que já não existe. Dali se via o Porto no interior das suas muralhas. Dali também as baterias miguelistas bombardearam o Palácio das Carrancas procurando alcançar o rei libertário. No dia seguinte, a partir das Virtudes as tropas sitiadas arrasaram o que restava do castelo. Até hoje. Ainda há tempo para uma visita à Casa-Museu Teixeira Lopes para de seguida entrarmos, por fim, na N222. Mas como Vila Nova de Gaia não é apenas a cidade, logo após atravessarmos os Arcos do Sardão procurarmos o Parque Biológico acabadinho de comemorar o seu quadragésimo aniversário. Visita demorada que o espaço que nos acolhe é sedutor. Estamos em Avintes ao sexto quilómetro dos muitos que há para percorrer, mas seria impensável não visitarmos Adriano Correia de Oliveira ali naquele lugar onde repousa e acaba de celebrar os seus oitentas anos. Em silêncio deixamos o pensamento viajar e lembramos a sua voz que se erguia com vigor nas palavras, “erguem-se muros em volta do corpo quando nos damos / amor semeia a revolta que neste instante calamos." São palavras cantadas que incentivam a memória a vadiar e sem razão aparente, recuamos trinta e sete anos e descobrimos uma sala pouco iluminada numa noite de Verão na cidade da Figueira e num silêncio profundo ouve-se um palestiniano contar a tragédia do seu povo, o martírio de setenta anos de ocupação com a complacência, a colaboração e o dinheiro do «Ocidente colectivo». Envoltos numa tristeza revoltada, despedimo-nos de Adriano quando a tarde já vai avançada. Rodeamos a Quinta de Santo Inácio e não visitamos o Zoo, pois temos arrepios perante criaturas presas. Por ruas estreitas, descemos até ao rio. É o Douro nos seus últimos lamentos antes de alcançar o oceano. Numa mistura de almoço e de lanche ficamos em descanso na Tasquinha do Cais da Azenha. É já tarde quando saciados, subimos ao encontro da N222. O sol parece esmorecer quando deixamos a variante e procuramos o primitivo traçado. Chega-nos ainda a voz do cantor visitado, em despedida, “Moça tão formosa não vi na fronteira, como uma ceifeira que cantava, Rosa / Foi em Barca d’Alva quando o sol nascia, uma ceifeira cantava, cantando vertia trovas na fronteira quando o sol nascia”. Aí vamos, à procura do sol nascente em Barca d’Alva, o nosso destino. 

EVOCAÇÃO

Manuel Joaquim


https://images.app.goo.gl/kXyonHN8UEqHmNoM7





No próximo Sábado, dia 1 de Abril, o Núcleo do Porto da URAP – União de Resistentes Antifascistas Portugueses vai realizar uma excursão a Aveiro, para comemorar os 50 anos do 3º Congresso da Oposição Democrática que se realizou naquela cidade entre os dias 4 e 8 de Abril de 1973, no Cine-Teatro Avenida.

Apesar das forças repressivas da época foi um grande acontecimento que mobilizou largas dezenas de milhares de pessoas de todos os cantos de Portugal. Sindicalistas, intelectuais, trabalhadores e pessoas das mais diversas opiniões participaram directamente naquele grande acontecimento político. Os jornais deram notícias da forma como puderam, condicionados à censura da época. O Comércio do Porto publicou a notícia na primeira página, com fotografia.

Um grupo de jovens do Porto, trabalhadores de seguros, organizados em actividades sindicais, decidiram participar no Congresso. Deslocaram-se num mini, muito apertados, mas chegaram ao destino. O trabalho que tinha sido elaborado foi apresentado numa das secções do Congresso.

Entretanto, a polícia de choque tomou conta da cidade. Quando foi decidido fazer uma romagem ao túmulo do Dr. Mário Sacramento, a polícia de choque, com toda a brutalidade, tentou impedi-la. As pessoas fugiram para os mais diversos locais. Manuel António Pina, jornalista, advogado e escritor, que estava entre as pessoas, prezado Amigo, juntou-se na fuga.

O regresso ao Porto não foi fácil. As saídas da cidade estavam controladas pela polícia. Ruas secundárias foram as utilizadas com grande esforço da suspensão do mini.

Passados alguns meses deu-se o 25 de Abril de 1974.

Foi um dia de trabalho, condicionado pelas notícias que apareciam constantemente. As emoções aconteciam mas o levantamento das Caldas da Rainha, de Março, preocupavam por ainda ser desconhecido o rumo dos acontecimentos.

A saída do trabalho no final da tarde deu-se à hora habitual. Eu e António Moutinho da Rocha, como sempre, saímos juntos e fomos ver o que se estava a passar na Avenida dos Aliados. Grande movimento de pessoas, manifestações junto aos bancos, alguns atropelos com a polícia.

Antes do 25 de Abril, eu e António Moutinho da Rocha não usávamos gravata. Decidimos, a partir daquele dia passar a usar gravata. Alguns dias depois, os colegas deixaram de usar gravata.

Agora, vamos festejar o 50º Aniversário da Revolução de Abril.

Passados 50 anos, parece que foi ontem.

SE BEM ME LEMBRO

Mário Martins


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Durante alguns anos, nos idos de 70, o autor desse grande livro “Mau Tempo no Canal” e eminente professor que foi Vitorino Nemésio, irrompia, é o termo, pelo ecrã negro fora, sem cumprimentar os telespectadores (fazendo, com isso, lembrar o pianista que acompanhava o cineasta apoiante da ditadura, António Lopes Ribeiro, na apresentação do cinema mudo, o qual só dizia boa noite a pedido deste, que, invariavelmente, se virava para ele e dizia: ó Melo, diz boa noite), Nemésio, dizia eu, iniciava os seus programas, “Se bem me lembro”, indo directamente ao assunto, quantas vezes um não-assunto, mas cuja comunicabilidade nata e a sua cultura sempre nos prendiam à cadeira.

Ora acontece, como dizia o jornalista Carlos Pinto Coelho, já falecido, que estou sem assunto e não me apetece procurá-lo, estando naquela fase, verdadeira em termos axiomáticos, mas seguramente insalubre, e por isso convenientemente passageira, em que tudo me parece “espuma dos dias”, por mais sérios, benévolos ou trágicos que sejam os acontecimentos que, em cada época, ocupam o dia a dia dos humanos. Isto porque, debaixo da espuma, corre a onda da Natureza, essa Mãe, a nossos olhos, tão misteriosa e absurda quanto inacessível e caprichosa, a qual, curiosamente, os não crentes tendem a “endeusar”.

O Gosto pela Música” foi outro grande programa televisivo, igualmente dos anos setenta, da autoria do musicólogo e matemático João de Freitas Branco, como Nemésio, um comunicador nato e senhor de grande cultura, especialmente no domínio musical, personalidade que o crítico musical Jorge Calado considera ter sido “sem dúvida, o grande educador musical dos portugueses".

Até que, nesses riquíssimos anos 70, emergiu do ecrã uma autêntica lufada de ar fresco com o programa “Histórias da Música”, vinda de Viena d’Áustria, onde o autor, mais novo e irreverente, António Victorino de Almeida, pianista e compositor, outro grande comunicador e homem culto, estudou e viveu cerca de 30 anos.

Enfim, para quem não tinha assunto…

O SENTIDO DA CORRUPÇÃO

António Mesquita

https://images.app.goo.gl/8ADW2w7DK9GtoFgf6



Maquiavel, nos seus "Discursos Sobre a Primeira Década de Tito Lívio" reflecte sobre as relações entre a religião e a política. Como diz Hannah Arendt,  para ele, "o ponto decisivo era que todo o contacto entre a religião e a política tem de corromper ambos, e que uma Igreja não corrompida, se bem que consideravelmente mais respeitável, seria ainda mais destrutiva para o domínio público que a Igreja corrompida de então." 

À primeira vista, pode parecer que a melhor ilustração da ideia de Maquiavel e do seu acerto seria o moderno radicalismo islâmico. Como se sabe, a história da religião muçulmana mostra-nos períodos de grande tolerância, inclusivé para com o povo judeu. O contrário disso, foi a política dos Reis Católicos que inspirou a expulsão dos judeus em Portugal por D. Manuel I. O terrorismo, ao arrepio dessa história, parece duma "pureza" intratável".

Numa entrevista recente,  Marc David Baer, diz: "Os otomanos eram práticos. Acolhiam todo o tipo de pessoas que achavam poder ajudar a dinastia, o império. Quando no resto da Europa os judeus eram convertidos à força, massacrados ou expulsos, muitos acabavam no império otomano. Tendo sido obrigados a tornar-se católicos em Espanha e em Portugal, voltavam a ser judeus no império otomano. E subiam nas hierarquias, tornando-se os principais tradutores, diplomatas, médicos e espiões na dinastia otomana."(Expresso de 10/3/23)

Mas como doença senil do islamismo, o fenómeno do terrorismo é quase incompreensível. A motivação dum homem como Bin Laden ou a dum imigrante radicalizado num país ocidental não tem nada a ver com a dum crente que siga a tradição muçulmana, embora os apelos à matança dos infiéis não faltem no seu livro sagrado, como de resto não faltam no Antigo Testamento. O terrorismo é uma língua exclusiva de toda a comunicação com o Outro.

Henrique Raposo(*) fustiga a ideia de que o terrorismo é uma consequência da globalização que favoreceria uma irresponsabilização da violência, na esteira dos argumentos dum Immanuel Wallerstein: "A cultura da desculpabilização termina o seu percurso argumentativo na rejeição de  qualquer contra-resposta ocidental. Mais  uma vez, a ideia é simples de seguir: não  se pode combater directamente o terrorismo, porque a responsabilidade é um exclusivo das estruturas económicas; os terroristas e as suas ideias são inimputáveis."

Por sua vez, António Guerreiro  escreve no Público (22/7/2016);  "Agora, em Nice, temos novamente um indivíduo do qual não se conhece qualquer ligação ao Islão religioso nem ao Islamismo político radical. E cujo “modo de vida” conhecido parece mais consentâneo com a paixão narcísica do Ocidente do que com a paixão ascética do Islão.", o que leva o articulista  a falar duma "islamização da revolta". Da revolta social que não tem um fundo religioso, mas é uma condição do homem moderno, que já foi tema dum livro de Albert Camus ("L'Homme Revolté").

É que a religião neste indivíduo revoltado, sem poder dar um nome à sua oposição, depois da falência da explicação pelo sistema político ou pelo sistema "tout court", está mais próxima do niilismo e da impossibilidade de qualquer discussão. Essa posição confunde-se aqui com a intransigência ética, que caracteriza, aos seus próprios olhos, este terrorismo  e, idealmente, o mártir da causa.

Voltando à ideia da corrupção no ilustre florentino. Ele começa por dizer nos "Discorsi" que a religião é necessária se for introduzida num estado já armado, como  teve que fazer Numa Pompílio: "Tanto que, se tivéssemos de decidir a qual príncipe Roma devesse mais, se a Rômulo ou a Numa, creio que, certamente, Numa obteria o primeiro lugar porque, onde há religião, facilmente se pode introduzir as armas e, onde há armas e não há religião, dificilmente se pode introduzir esta. E se vê que Rômulo, para organizar o Senado e para instituir outras ordens civis e militares, não necessitou da autoridade de Deus, mas esta foi bem necessária a Numa, que fingiu ter familiaridade com uma Ninfa, que o aconselhava sobre o que ele tinha de dizer ao povo, e a causa de tudo isso era que ele desejava impor ordens novas e inusitadas naquela cidade e duvidava que a sua autoridade bastasse."  

Segundo o autor do "Príncipe",  a igreja romana, não podendo unificar a península italiana, tratou de gerir, de acordo com os seus interesses, a desunião dos povos. Isto pode ser entendido como um efeito maior do contacto corruptor com a política. Aqui a pergunta a fazer não seria sobre o grau de destruição do âmbito político por uma Igreja autenticamente cristã. Porque  Maquiavel não fala nesta acepção, mas duma Igreja não corrompida pela política,  o que pode ser entendido como uma Igreja  supremacista, impondo o seu ponto de vista político-religioso à sociedade como um todo.

Essa não separação das águas, sob a égide da doutrina ou da ideologia em nome de Cristo, é que é o verdadeiro índice da corrupção do religioso. Foi isso que se viu no período das cruzadas e durante a Inquisição.

Só podemos entender essa militância eclesial, com os meios profanos,  como um caso de corrupção do espírito cristão e de fraqueza da organização política. Mas seria nesse sentido que Maquiavel entendia uma hipotética  não-corrupção da Igreja, como um fechamento da instituição sobre si própria com a consequente  ingurgitação do político, que não me parece o caso do terrorismo islâmico? No seu artigo, António Guerreiro cita uma entrevista de Peter Sloterdijk em que este diz: “na perspectiva da realpolitik, se o terrorismo não existisse teria de ser inventado”. Perspectiva em que o terrorismo já não é, evidentemente, um fenómeno religioso, islâmico ou outra coisa.

Se pensarmos que o objectivo desejado por Maquiavel da unidade da Itália foi preterido pela corrupção da igreja, o que faltou foi um novo Rómulo  e não uma religião mais pura ou mais supremacista.


* (https://ipri.unl.pt/images/publicacoes/revista_ri/pdf/r5/RI5_rec03_HRaposo.pdf)



CINEMA

"TUDO EM TODO O LADO AO MESMO TEMPO"
(Filme de Daniel Kwan e Daniel Scheinert de 2022)

Pode um ritmo tão frenético ser repetivo e maçador? Pode, desde que se esqueçam os tempos e a lei musical dos andamentos. 

O caos aparente pode fazer sentido, como o faria um argumento escrito pelo Chat GPT, projectado para sacudir o espectador e deixá-lo atordoado como sob o efeito da droga. São 139 minutos dentro duma centrifugadora, talvez porque  as personagens são os donos duma lavandaria.
 
E foi isto que levou todos os óscares e que fez preterir um filme como "Tár"? Uma outra geração de críticos tomou o poder. Alguém já falou na geração Tik Tok...

É o sinal que as modas como a do cancelamento ou a do politicamente correcto já não são temporárias  nem minoritárias. A cultura é a do tudo se vale e está em rede.
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