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01/03/23

UMA HISTÓRIA ALEMÃ

António Mesquita




Em "Morte em Veneza", filme de 1971, Lucchino Visconti socorre-se do adagietto da 5a. sinfonia de Mahler para nos transmitir aquela atmosfera de deliquescência sentimental e moral que envolve Aschenbach, a personagem interpretada por Dirk Bogarde.

No filme "Tár", de Todd Field, que promete uma auspiciosa carreira junto da crítica cinematográfica, o "adagietto de Visconti" é brandido pela regente como um exemplo de interpretação a evitar, por banal e demagógica. Mas foi a resposta do cineasta italiano ao drama finissecular do seu filme.

Numa entrevista ao "New Yorker", a propósito do prelúdio em dó menor de Bach, ilustrando o seu método pedagógico, Lydia diz que o compositor nessa obra faz perguntas e dá respostas continuamente, e, para quem ouve, são as perguntas que contam: envolvemo-nos mais quando temos de procurar as respostas por nós mesmos. É por isso que a maior parte da música que se ouve é preguiçosa e soporífera.

Parece com este intróito que o filme de Todd Field é sobretudo sobre música e a incultura musical. Mas a história de Lydia Tár (excelente Cate Blanchett) que cai abruptamente dos píncaros da Filarmónica de Berlim para o mundo dos vídeojogos pode ser uma ilustração da moda do cancelamento, em que as redes sociais, como se sabe, julgam na praça pública os pêlos púbicos das personalidades em vista do presente e do passado, mas o facto de se tratar duma maestrina americana a trabalhar em Berlim tem outra ressonância.

Fogosa, imperial e manipuladora, com a boa consciência de que tudo é feito pela arte, quem quer saber dos seus "rabos de palha"? Demasiado humanos somos todos. Porque não perdoaríamos ao grande artista os seus caprichos e as manias? Mas não é isso que Todd quer que relevemos.

O talento de Lydia é reconhecido. A sua condução é original, apaixonada, o que é um defeito para alguns. Numa aula, nas "Julliard Lectures" envergonha um aluno depreciativo de Bach pelo facto de ser cisgénero, ainda que no século XVII ou XVIII. Os insultos que ela recebeu em troca estão na ordem das coisas.

Lydia vive com uma alemã e ambas adoptaram uma criança. O retrato de Tár assume uma cor mais sombria quando, para responder ao "bullying" de que a menina era vítima na escola, aterroriza a criança agressora, com ameaças fora de tom.

A música é o astro que tudo ilumina. E estamos na Alemanha, país musical entre todos. O espírito que plana sobre as águas tem aí a sua pátria de eleição. Mas a história da Alemanha é o mais eloquente possível sobre a fragilidade desse espírito. A massa coral mais poderosa do mundo sucumbiu a um maestro surgido dos infernos da normalidade.

Esse transe parece repetir-se na história de Tár, a maestrina da Filarmónica de Berlim que ensaia a 5a. sinfonia de Malher no meio das atribulações que são as do nosso tempo. Questões de género e de religião ou da falta dela, redes sociais e desinformação. A sua vida privada descamba na desordem em que a música parece a bagagem que flutua num naufrágio.

Os curadores retiram-lhe o apoio. Perde o seu lugar. Como no filme de Coppola, uma excursão no sudoeste asiático parece-se com o embrenhamento na selva escura. Um estabelecimento de "massagens" oferece-lhe uma vitrina de jovens numeradas.

O prestíssmo do final responde à quase imobilidade da cena inicial em que peroram o entrevistador e a entrevistada, logo a seguir à inversão do lugar do genérico. Pretensiosismo ou tempo musical?

E a vocação? Estamos no seu nadir. A última cena do filme é um concerto sob a batuta de Tár num vídeo jogo, "Monster Hunter", em que os participantes enfiaram as máscaras do mundo animal. Todd filmou uma Paixão moderna ou a resistência da heroína que se transforma com a música?

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