Marques da Silva
Há lugares que nos cativam de uma forma específica. Na aparência parecem idênticos a qualquer espaço que encontramos ao longo da vida. Só quando o nosso olhar pousa de forma reflectida e serena, começamos a encontrar o que faz reter-nos a alma. Perdi a noção das vezes que me sentei nestas pedras que se elevam da calçada cuja inclinação não permitia a entrada no portão, à minha esquerda. Descida íngreme, complementada com degraus que entre paredes, baixa para a margem do rio e nos dias de sol fazem a luz resplandecer entre o verde das árvores escondidas por altos muros e a cor vermelha dos telhados. As águas aparecem por uma nesga deslizando suavemente em direcção ao mar. Por aqui ficava longos espaços de tempo imaginando encontrar o que não podia aceder. Há realidades que se transformam em sonhos míticos quando não alcançamos as estradas a que elas conduzem. Por hoje, não me detive aqui à procura de sonhos, antes vim na peugada de Saramago. O autor de “Levantados do Chão” visitou o Porto há distantes quarenta e cinco anos e decidi olhar esse Porto comparando-o com o que ele encontrou nessa época que já se perde na longitude do tempo. Começou por olhar a cidade do Terreiro da Sé e creio que fez bem. Esta urbe que se ergue nas margens do Douro, cresceu do rio para o alto e de cima para baixo e foi encurtando as distâncias até ser um povoado único amuralhado. O poder residia no topo da colina, o trabalho labutava junto às águas que o rio levava. O escritor ribatejano nada nos diz sobre a beleza do que viu, mas é encantadora a velha urbe quando com tempo observamos o latejar do seu traçado antigo com tanto de medieval. Seria Inverno e o frio devia arrastar-se pela pedra granítica do chão o que retiraria esplendor ao que via e passeantes de outros mundos deveria ser algo raro nessa época que quase já só recordamos de velhos postais a preto e branco. Aqui regressou no fim do dia para se enfeitiçar com o Chafariz do Pelicano que lhe disseram ser a Fonte do Pássaro e prometeu que se um dia voltasse ao Porto e não a encontrasse teria um grande desgosto. Mas mais acrescentou em relação à fonte, dizendo que “Quando no dia seguinte estiver de partida, (…), tornará a ir à Fonte do Pelicano, olhará aquelas iradas mulheres que presas à pedra se desafiam, saberá que há ali um segredo que ninguém lhe vem explicar, e é isso que leva do Porto, um duro mistério de ruas sombrias e casas cor de terra, tão fascinante tudo isto como ao anoitecer as luzes que se vão acendendo nas encostas, cidade junta com um rio que chamam Doiro.” A fonte lá permanece aguardando o regresso de Saramago, agora limpa, como tantos outros espaços da cidade, para que outros olhares a vejam sem que a imundície de outrora perturbe a riqueza das formas talhadas na pedra. Escolheu o viajante escritor descer pelas Virtudes em direcção ao Barredo, impressionado pelas águas sujas e sebentas que escorriam deslizantes nessa época, a céu aberto, antes deste Porto se alindar para os que de outros lugares o procuram hoje para seu deleite. Que diria desta limpeza o escritor do “Ensaio sobre a Cegueira”, dessa limpeza que levou o sujo e os habitantes juntos e selecciona no presente quem deve usufruir de tão excelso lugar. Que diria ainda se saísse neste tempo, como saiu naquele, pelo arco dos Canastreiros e encontrasse a Ribeira que vemos hoje, e quase não pudesse caminhar pela multidão de forasteiros que ali desaguam por terra e rio. Saramago passou no tempo em que alguém vinha com uma chave para abrir a porta da Igreja de S. Francisco onde se perturbou, como me perturba sempre a exibição da talha dourada. Subiu e desceu as ruas desse Porto inesquecível para quem nele nasceu. Já não o consigo acompanhar hoje nas visitas que foi levando num só dia, subindo Belomonte e tendo a sorte de visitar o desaparecido Museu Etnográfico. Carmo e Cedofeita são caminhados a passos largos pelo viajante após ter “esgarfejado uma posta de bacalhau”. Há-de terminar o dia no Terreiro da Sé por onde começou e deixará umas palavras de grandeza para Santa Clara, “a Igreja de Santa Clara, com o seu portal onde o Renascimento aflora, com a sua talha barroca que concilia outra vez o bem querer do viajante, com aquele seu pátio resguardado e antigo para onde dá a antiga portada do convento”. Que pena, Saramago não poder voltar para ver agora Santa Clara renascida das cinzas apesar do meu horror à talha barroca. Já cansado de tanto tentar acompanhar a passada do viajante, afastei-me para os Caminhos do Romântico até este recanto onde posso olhar o rio como quem tenta adivinhar os mistérios que estão para além do que as paredes escondem. Já encontrei rios formosos, mas nunca nenhum como o Douro. Gosto de o ver dos jardins de Nova Sintra onde aparece com aquela curva delicada de Avintes para o Freixo, do Alto da Arrábida abraçando-se eternamente ao oceano, dos Jardins do Palácio para a Foz abrindo-se por debaixo do arco majestoso da ponte, mas aqui, entre este casario tardio, entre quintas e casas escondidas, conforta-nos o sossego, a quietude quase silenciosa da tarde que se esvai e vemos à distância, tal como a vida, a água que chega e a água que vai. Fica para outro dia voltar a seguir Saramago.
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