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01/01/23

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O CAMINHO DE DAMASCO

António Mesquita

"A conversão de S. Paulo" (Caravaggio)



Traduzir para dar lugar aos novos tempos, ao novo homem. Há apenas três ou quatro décadas, a palavra seria Revolução. Tolentino fala duma personagem sem a qual não se compreenderia o sucesso  do Cristianismo e,  desde logo, a extraordinária ideia da sua organização.

Já se comparou S. Paulo a Vladimir Illich e ao seu papel na formação e consolidação do Estado soviético. Mas o empreendimento de Lenine desfez-se em caruncho burocrático, há 30 anos, por ser incapaz de se renovar (com a sua segunda morte, espectral esta, pela mão dum ex-tenente do KGB em Fevereiro de 2022). Alguns foram enganados pela nostalgia. Enquanto o homem da Estrada de Damasco fundou uma civilização que já prometeu várias vezes o ocaso, mas que, de crise em crise, se segura nos seus pilares metafísicos.

Não podendo a ideia do cristianismo ser refutada por nenhuma verificação científica, nenhuma experiência provante, tem a seu crédito a inspiração dum passado monumental e artístico que enriquece o presente e lhe promete uma espécie de  futuro. Mas tudo muda: ficam os símbolos e os valores, vai-se a fé.

S. Paulo não surgiu de nenhum aparelho teatral, como no teatro grego. Era um judeu do seu tempo que se distinguiu  por perseguir os seus irmãos convertidos pelo  exemplo do nazareno. Mas o teatro não deixa de surgir no episódio da queda do cavalo. O homem cegou para ver a nova realidade à sua volta. Essa a famosa conversão que o pôs no caminho dum extraordinário destino.

As suas epístolas, peças literárias de grande eficácia, são anteriores ao Evangelho e são a primeira pedra da nova organização. Não são apenas doutrina, nem apelam a uma adesão tão-só simbólica. O  corpo é implicado desde o nascimento por uma abstenção, modelo de muitas outras que se hão de seguir na sua história. Os judeus praticavam o corte do prepúcio, tradição, segundo uns com origem no Egipto, para se identificarem como raça eleita, prática que para sempre os constituiu num povo separado. 

S. Paulo afirma-se contra essa separação. A circuncisão torna-se simbólica, em vez de se realizar na carne, abrindo ao mesmo tempo à nova religião um espaço universalista. O futuro desta ideia é tão vertiginoso que nele não podemos deixar de incluir os rasgos mais importantes da modernidade, a começar pela ideia duma consciência pessoal e duma visão do mundo unificada que pôs fim ao politeísmo e que por imprevisíveis caminhos levou à aventura científica

Tolentino de Mendonça é um insigne poeta e bastava observar o seu uso das metáforas para o pressentir. 

Na apresentação do seu livro "Metamorfose necessária", ocorrida no passado dia 18 de Dezembro  no Museu Soares dos Reis, é sobre a figura de S. Paulo que sobretudo nos fala. Chama a nossa atenção para o valor da nova linguagem introduzida pelos seus textos: "Paulo estava apto não só para protagonizar a passagem da oralidade à escrita, mas também para realizar uma das operações teológicas mais criativas e complexas de sempre: a tradução cultural da mensagem cristã." (...) Pelo baptismo, mulheres e homens puderam conjugar a sua religiosidade na primeira pessoa do singular, puderam reivindicar um espaço inédito de liberdade face aos vários poderes e ordenamentos (...)" 

A alavanca que, para Oulianov, constituiu o partido e o apuramento da linguagem com base na doutrina marxista, percorreu os mesmos passos de filtragem e demarcação de qualquer outro pensamento e que a Igreja, afinal conheceu e exacerbou no seu período militante e inquisitorial.

Notei o cuidado em evitar o paradigma revolucionário, com toda a sua carga política e todo o balanço de frustração e negatividade, nesta apresentação, embora seja a palavra que ocorre espontaneamente a alguém da minha geração. S. Paulo, nos termos que os anos sessenta do século passado definiram, foi um verdadeiro revolucionário e a espada que o vemos empunhar na iconografia está aí para o atestar. O sujeito que emerge da nova relação com a divindade anuncia Agostinho e Rousseau e toda a visão do mundo pós medieval.

É por isso que um "não crente" pode reconhecer-se no estudo desta personagem fulcral do Cristianismo. De resto, a possibilidade de avaliarmos o drama da História nunca é mais do que uma busca do sentido ao alcance da subjectividade.

Neste âmbito, alguns verão erros e injustiças onde outros lerão determinismos não melhor fundamentados.

Se nos interessa hoje Paulo de Tarso será, talvez, porque uma mesma era de trevas feita de ruído e luzes artificiais, espera uma ruptura como a protagonizada pelo apóstolo.


       
                           

AINDA SOBRE A GUERRA



Sabemos como o história, a factual (que cada um interpreta à sua vontade) ou a mitológica, sustenta a reivindicação dum direito. É o que vemos dum lado e do outro, sem possibilidade de acordo. Pareceu-me a propósito citar o que sobre o direito como justificação da guerra diz o filósofo Émile Chartier (Alain):

"Alain denuncia a fórmula "a paz pelo direito" como um grito de guerra, porque o direito, é o que se quiser. A verdadeira paz é pela arbitragem [...]. O homem perigoso é aquele que quer a paz pelo direito, dizendo que de modo nenhum usará da força, e que isso jura, desde que o seu direito seja reconhecido. É a promessa dum belo futuro [...]. O acto jurídico essencial consiste nisto: que se renuncia solenemente a apoiar o seu direito pela força."




NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva




Reencontrei Lawrence Durrell no Mediterrâneo, num desses dias de sol calmo, mar chão e a pureza do azul a misturar os horizontes. Conhecemo-nos há muito na RTP2 aos Domingos à noite nesse tempo em que a mãe levou os filhos para a ilha de Corfu para que o dinheiro chegasse. Era então um jovem adulto extravagante que se divertia mais do que conseguia escrever. Agora, regressava de Alexandria. Por mim regressava do Norte de África onde tinha vivido as últimas semanas na companhia de Isabelle Eberhardt. Levou-me a reconhecer e a amar o deserto, com as suas dunas, as suas cores transmutando-se ao longo do dia, a leveza do seu ambiente tão acolhedor em longos passeios solitários. Aprender a recostar-nos entorpecidos quando o siroco invade as terras e os lugares e as emoções adormecem num tempo infindável. Descobrir no céu nocturno os mundos que rodam sobre as areias no sossego eterno do firmamento. Vadear na quietude do fim do dia entre oueds e oásis e escutar o chamamento para a oração num canto dolente voando como aves em sonho. É difícil deixar o deserto após uma vivência que transcende os limites do que conhecemos. Isabelle ficou, naquele oued que subitamente se encheu e arrastou o que pôde ao longo das suas margens. Restaram a beleza das suas palavras, a riqueza da literatura que saiu da sua pena tão jovem e que tanto prometia. Que pena, na beleza do deserto, adormecer tão cedo quem tanto o tinha amado. Procurava aquietar o pensamento ao sabor da navegação tranquila quando Durrell apareceu. Já nos havíamos encontrado em Alexandria aquando da guerra e ali nos contou ao longo de páginas imensas e numa escrita entre a delícia e o belo de personagens inesquecíveis. A cidade que conhecemos de tempos imemoriais, aparece-nos nas suas palavras na simplicidade dos dias, na riqueza das vidas de pessoas comuns. A urbe alexandrina é-nos mostrada num tempo, que sendo de guerra, é também de refúgio, num contraste entre o real e o fantástico. Entre o jovem de Corfu e o adulto de Alexandria há uma diferença quase abismal. Neste encontro marítimo, Durrell levou-nos então a percorrer as Ilhas Gregas, não apenas a de Corfu mas todas aquelas dos mares entre o continente grego e a Anatólia, do Jónico ao Egeu. Foi uma viagem pela sua história, os seus mitos, a sua evolução, as suas gentes, as suas peculiaridades, da rudeza de alguns à simpatia de outros. Essas ilhas que conheceu durante a guerra e onde voltou até à década de oitenta, certamente, muitas delas, foram já engolidas pela civilização turística, mas  talvez algumas tenham resistido e seja possível visionar o mundo que Durrell retratou. Em Creta que recordávamos numa fotografia distante, coberta dos pára-quedas brancos das tropas nazis, apresentou-nos a Nikos Kazantzákis que estava na companhia de Alexis Zorba. O escritor grego falou-nos então de uma Creta ancestral, onde a tradição e os costumes quantas vezes superavam a razão substituindo-a por um conceito de honra que nos fez lembrar a Calábria. Após a despedida ainda houve um outro encontro com Durrell na Sérvia, mas nesta ocasião com alguma desilusão, talvez de parte a parte, pois o escritor decidiu adoptar alguns daqueles mitos que os ingleses criaram e difundem como verdades absolutas. No entanto, marcamos novo encontro para breve. Ainda tive tempo para aceitar um convite de Steve Backshall para descer o Kronotskaia em caiaque. Floresta virgem, rio caudaloso de corrente forte com as enchentes primaveris das neves que derretem do vulcão Kronotski imponente nos seus três mil e quinhentos metros, ali ao lado, vigilante e na margem direita o Krasheninnikov olhando-nos da altura de mil e quinhentos metros. As águas palpitando, as margens por vezes agrestes e de florestas baixas mas impenetráveis, os ursos vagueando no meio da corrente, livres, saudáveis, sem receio humano, agarrando os salmões numa pesca certeira. A alegria de Steve, quando o caiaque encontrou a ondulação do Pacífico, levou-o a falar de forma exaltante, de lugares pristinos. É difícil desejar melhor para terminar a minha viagem. 


A GUERRA DA ENERGIA

Manuel Joaquim

https://images.app.goo.gl/JH6Azd8BvnUMcvjWA



No Periscópio de Janeiro de 2022, Prendas de Natal, escrevi que alguns dirigentes políticos, cheios de arrogância e agressividade, que trabalhavam para a militarização da União Europeia, a par da Nato, com o objectivo de provocar guerra na Europa, deveriam obter do Pai Natal frascos cheios de frescura para desenvolver a sua inteligência. Outra prenda que deveriam obter do Pai Natal era um grande penico para que o novo governo da Alemanha não mijasse fora dele.

Infelizmente, não aproveitaram as prendas que o Pai Natal lhes quis dar e, tristemente, aconteceu a guerra que tanto almejavam. No dia 24 de Fevereiro seguinte deu-se o início da guerra na Ucrânia, apesar dos acontecimentos bélicos terem tido início em 2014. É a segunda guerra na Europa, depois da Segunda Guerra Mundial, pois a primeira deu-se com a destruição da Jugoslávia por intervenção directa dos EUA e da Nato, onde ainda se encontram tropas portuguesas, com possibilidades de reacendimento muito em breve.

É cada vez mais claro que a guerra actual é alimentada pelos EUA e que os dirigentes da Ucrânia são os seus mandaretes, não se importando com a destruição completa do seu País.

Com esta guerra os EUA conseguiram transformar a União Europeia numa verdadeira colónia, impondo os seus interesses, eliminando concorrentes, destruindo economias e a venderem os seus produtos a preços por eles determinados.

O aumento dos preços do gás na EU não se deu com o início da guerra em 24 de Fevereiro de 2022. Em 2021 o aumento do preço deu-se de forma explosiva. Isto resultou do facto da Comissão da EU e os respectivos governos terem alterado a forma de determinação do preço do gás natural e pretenderem “descarbonizar” a economia até 2050, eliminando os combustíveis de petróleo, gás, e carvão. São os grandes interesses financeiros, os grandes bancos de Nova YorK e da City de Londres que pretendem controlar todo o mercado energético.

Em 2019 a Comissão Europeia, a partir de várias directivas, permitiu que o comércio de gás fosse totalmente desregulado. O Presidente da Rússia, em meados de 2021, teve uma intervenção sobre as alterações introduzidas no mercado da energia pela EU, que está publicada, onde alertava para as consequências negativas da sua liberalização e do erro que os políticos estavam a fazer. ” Em 22 de Agosto de 2022, o preço de mercado negociado em bolsa para o gás natural hub alemão, estava a ser negociado a mais de 1000% acima do que há um ano atrás” ( F. William Engdahl, in resistir.info).

Hoje, quase ninguém fala no chamado “Pico Petrolífero”, quando em 1973, na crise do petróleo, foram publicados diversos estudos sobre o assunto. Mas o Pico do Petróleo é uma realidade. E poucos países são ainda grandes produtores de petróleo.

O que hoje se vê é a procura pouco discreta de fornecimentos como pão para a boca. Biden esqueceu os direitos humanos e foi à Arábia pedir petróleo e não foi bem-sucedido. Pediu ao Catar petróleo que este negou e, entretanto, assinou um contrato com a China por um prazo de 27 anos. A partir desse momento é desencadeada uma campanha internacional sobre os direitos humanos nesse país a pretexto das construções dos estádios para o campeonato do mundo, quando os mesmos começaram a ser construídos quase dez anos antes.

A Rússia continua a ser o maior fornecedor para a Europa com 600.000 barris/dia e outros (Arábia Saudita, EUA, India) cerca de 200.000 barris/dia.

A Europa e Reino Unido continuam a comprar à Rússia cerca de 1.000.000 barris/dia de derivados do petróleo, principalmente diesel, óleo combustível e nafta, de acordo com declarações do Director de Energia e Finanças da Rússia, publicado na Sputnik em 30 de Dezembro de 2022.

Por aqui, o governo português anda entretido a fechar a refinaria de Matosinhos, a encerrar centrais de produção de electricidade, a discutir a construção de cais para petroleiros, a construção de gasodutos de Marrocos, da Argélia ou da Nigéria, a produção e transporte de hidrogénio, para abastecer a Europa central, abafando a sagrada ignorância com almoços, jantares e viagens. O Zé pagode anda a ver o dinheiro a desaparecer com a comida e os encargos a aumentarem todos os dias.


A PENSADORA

Mário Martins

https://www.google.com/search?source=univ&tbm=isch&q=hannah+arendt


Para Arendt, a pergunta era: qual a diferença entre os que participaram (no holocausto) e os que decidiram desistir? A resposta é: pensar.”
Samantha Rose Hill

As coisas tinham outro aspecto depois de ela ter olhado para elas”

Hans Jonas, amigo de Hannah Arendt
Revista do Expresso, 14Out2022


A filósofa adolescente judia que não se considerava filósofa desde que emigrara, nos inícios da ascensão dos nazis na Alemanha, da filosofia académica para o pensamento político, “A partir desse momento, senti-me responsável. Nunca mais fui da opinião de que uma pessoa pode ser simplesmente espectadora”, pouco tempo antes da sua fuga para França e depois para a América, criticava abertamente os académicos, (entre os quais se contava o filósofo Martin Heidegger, seu amante, a quem, durante 17 anos, nunca mais falou) que cegaram perante o advento do nacional-socialismo.

Consciente de que pensar é em si mesmo perigoso, defendia: “O que proponho é muito simples: nada mais do que pensar no que estamos a fazer.”

O julgamento de Adolf Eichmann (um dos principais organizadores do holocausto), já nos anos sessenta, de que Arendt fez a cobertura para uma revista americana e que deu lugar ao seu polémico livro “Eichmann em Jerusalém: uma reportagem sobre a Banalidade do Mal”, “falhou porque ele tecnicamente não violara nenhuma lei, pois cumpria leis que nunca deveriam ter sido feitas.” 

Durante o processo, em vez do monstro sanguinário que todos esperavam ver, surge um funcionário, um burocrata. É justamente aí que Hannah Arendt descobre a Banalidade do Mal (Wikipédia). 

Penso que o mal, em todas as ocorrências, é apenas extremo, não radical; não tem profundidade, portanto não tem em si nada de demoníaco.”

Esta frase de Arendt dá que pensar (o conselho é da própria…). No caso concreto de Eichmann, que Arendt considerava um palhaço, a afirmação é inteiramente compreensível, tendo em conta o carácter do personagem. Mas Arendt salta do particular para o geral “em todas as ocorrências”, implicitamente defendendo que o Mal não tem raízes na natureza humana, lá onde reside o símbolo satânico. Para a pensadora, o Mal seria então qualquer coisa que se passaria à superfície do comportamento humano, horizontalmente, desligado da sua condição natural, como se, em última análise, as relações sociais em que o Mal se concretiza (para não falar das patologias individuais) fossem, nos antípodas do pensamento de Marx, expressão da livre vontade dos homens. O que responderia ela a uma crítica deste tipo?

Nos finais dos anos 40 aborda o tema do totalitarismo político, de uma forma premonitória do que se passa nos dias de hoje: 

O súbdito ideal do regime totalitário não é o nazi convicto nem o comunista convicto, mas sim aquele para quem a distinção entre factos e ficção e entre o verdadeiro e o falso já não existem.” 

Esta é uma tese que, no entanto, carece de actualização, já que ninguém acusa um país como os Estados Unidos, onde grassam as notícias falsas e a confusão entre factos e ficção, de ser governado por um regime totalitário.

Este mundo dá muitas voltas, mesmo aos melhores pensadores…


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