António Mesquita
Traduzir para dar lugar aos novos tempos, ao novo homem. Há apenas três ou quatro décadas, a palavra seria Revolução. Tolentino fala duma personagem sem a qual não se compreenderia o sucesso do Cristianismo e, desde logo, a extraordinária ideia da sua organização.
Já se comparou S. Paulo a Vladimir Illich e ao seu papel na formação e consolidação do Estado soviético. Mas o empreendimento de Lenine desfez-se em caruncho burocrático, há 30 anos, por ser incapaz de se renovar (com a sua segunda morte, espectral esta, pela mão dum ex-tenente do KGB em Fevereiro de 2022). Alguns foram enganados pela nostalgia. Enquanto o homem da Estrada de Damasco fundou uma civilização que já prometeu várias vezes o ocaso, mas que, de crise em crise, se segura nos seus pilares metafísicos.
Não podendo a ideia do cristianismo ser refutada por nenhuma verificação científica, nenhuma experiência provante, tem a seu crédito a inspiração dum passado monumental e artístico que enriquece o presente e lhe promete uma espécie de futuro. Mas tudo muda: ficam os símbolos e os valores, vai-se a fé.
S. Paulo não surgiu de nenhum aparelho teatral, como no teatro grego. Era um judeu do seu tempo que se distinguiu por perseguir os seus irmãos convertidos pelo exemplo do nazareno. Mas o teatro não deixa de surgir no episódio da queda do cavalo. O homem cegou para ver a nova realidade à sua volta. Essa a famosa conversão que o pôs no caminho dum extraordinário destino.
As suas epístolas, peças literárias de grande eficácia, são anteriores ao Evangelho e são a primeira pedra da nova organização. Não são apenas doutrina, nem apelam a uma adesão tão-só simbólica. O corpo é implicado desde o nascimento por uma abstenção, modelo de muitas outras que se hão de seguir na sua história. Os judeus praticavam o corte do prepúcio, tradição, segundo uns com origem no Egipto, para se identificarem como raça eleita, prática que para sempre os constituiu num povo separado.
S. Paulo afirma-se contra essa separação. A circuncisão torna-se simbólica, em vez de se realizar na carne, abrindo ao mesmo tempo à nova religião um espaço universalista. O futuro desta ideia é tão vertiginoso que nele não podemos deixar de incluir os rasgos mais importantes da modernidade, a começar pela ideia duma consciência pessoal e duma visão do mundo unificada que pôs fim ao politeísmo e que por imprevisíveis caminhos levou à aventura científica
Tolentino de Mendonça é um insigne poeta e bastava observar o seu uso das metáforas para o pressentir.
Na apresentação do seu livro "Metamorfose necessária", ocorrida no passado dia 18 de Dezembro no Museu Soares dos Reis, é sobre a figura de S. Paulo que sobretudo nos fala. Chama a nossa atenção para o valor da nova linguagem introduzida pelos seus textos: "Paulo estava apto não só para protagonizar a passagem da oralidade à escrita, mas também para realizar uma das operações teológicas mais criativas e complexas de sempre: a tradução cultural da mensagem cristã." (...) Pelo baptismo, mulheres e homens puderam conjugar a sua religiosidade na primeira pessoa do singular, puderam reivindicar um espaço inédito de liberdade face aos vários poderes e ordenamentos (...)"
A alavanca que, para Oulianov, constituiu o partido e o apuramento da linguagem com base na doutrina marxista, percorreu os mesmos passos de filtragem e demarcação de qualquer outro pensamento e que a Igreja, afinal conheceu e exacerbou no seu período militante e inquisitorial.
Notei o cuidado em evitar o paradigma revolucionário, com toda a sua carga política e todo o balanço de frustração e negatividade, nesta apresentação, embora seja a palavra que ocorre espontaneamente a alguém da minha geração. S. Paulo, nos termos que os anos sessenta do século passado definiram, foi um verdadeiro revolucionário e a espada que o vemos empunhar na iconografia está aí para o atestar. O sujeito que emerge da nova relação com a divindade anuncia Agostinho e Rousseau e toda a visão do mundo pós medieval.
É por isso que um "não crente" pode reconhecer-se no estudo desta personagem fulcral do Cristianismo. De resto, a possibilidade de avaliarmos o drama da História nunca é mais do que uma busca do sentido ao alcance da subjectividade.
Neste âmbito, alguns verão erros e injustiças onde outros lerão determinismos não melhor fundamentados.
Se nos interessa hoje Paulo de Tarso será, talvez, porque uma mesma era de trevas feita de ruído e luzes artificiais, espera uma ruptura como a protagonizada pelo apóstolo.
AINDA SOBRE A GUERRA
Sabemos como o história, a factual (que cada um interpreta à sua vontade) ou a mitológica, sustenta a reivindicação dum direito. É o que vemos dum lado e do outro, sem possibilidade de acordo. Pareceu-me a propósito citar o que sobre o direito como justificação da guerra diz o filósofo Émile Chartier (Alain):
"Alain denuncia a fórmula "a paz pelo direito" como um grito de guerra, porque o direito, é o que se quiser. A verdadeira paz é pela arbitragem [...]. O homem perigoso é aquele que quer a paz pelo direito, dizendo que de modo nenhum usará da força, e que isso jura, desde que o seu direito seja reconhecido. É a promessa dum belo futuro [...]. O acto jurídico essencial consiste nisto: que se renuncia solenemente a apoiar o seu direito pela força."
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