Marques da Silva
Reencontrei Lawrence Durrell no Mediterrâneo, num desses dias de sol calmo, mar chão e a pureza do azul a misturar os horizontes. Conhecemo-nos há muito na RTP2 aos Domingos à noite nesse tempo em que a mãe levou os filhos para a ilha de Corfu para que o dinheiro chegasse. Era então um jovem adulto extravagante que se divertia mais do que conseguia escrever. Agora, regressava de Alexandria. Por mim regressava do Norte de África onde tinha vivido as últimas semanas na companhia de Isabelle Eberhardt. Levou-me a reconhecer e a amar o deserto, com as suas dunas, as suas cores transmutando-se ao longo do dia, a leveza do seu ambiente tão acolhedor em longos passeios solitários. Aprender a recostar-nos entorpecidos quando o siroco invade as terras e os lugares e as emoções adormecem num tempo infindável. Descobrir no céu nocturno os mundos que rodam sobre as areias no sossego eterno do firmamento. Vadear na quietude do fim do dia entre oueds e oásis e escutar o chamamento para a oração num canto dolente voando como aves em sonho. É difícil deixar o deserto após uma vivência que transcende os limites do que conhecemos. Isabelle ficou, naquele oued que subitamente se encheu e arrastou o que pôde ao longo das suas margens. Restaram a beleza das suas palavras, a riqueza da literatura que saiu da sua pena tão jovem e que tanto prometia. Que pena, na beleza do deserto, adormecer tão cedo quem tanto o tinha amado. Procurava aquietar o pensamento ao sabor da navegação tranquila quando Durrell apareceu. Já nos havíamos encontrado em Alexandria aquando da guerra e ali nos contou ao longo de páginas imensas e numa escrita entre a delícia e o belo de personagens inesquecíveis. A cidade que conhecemos de tempos imemoriais, aparece-nos nas suas palavras na simplicidade dos dias, na riqueza das vidas de pessoas comuns. A urbe alexandrina é-nos mostrada num tempo, que sendo de guerra, é também de refúgio, num contraste entre o real e o fantástico. Entre o jovem de Corfu e o adulto de Alexandria há uma diferença quase abismal. Neste encontro marítimo, Durrell levou-nos então a percorrer as Ilhas Gregas, não apenas a de Corfu mas todas aquelas dos mares entre o continente grego e a Anatólia, do Jónico ao Egeu. Foi uma viagem pela sua história, os seus mitos, a sua evolução, as suas gentes, as suas peculiaridades, da rudeza de alguns à simpatia de outros. Essas ilhas que conheceu durante a guerra e onde voltou até à década de oitenta, certamente, muitas delas, foram já engolidas pela civilização turística, mas talvez algumas tenham resistido e seja possível visionar o mundo que Durrell retratou. Em Creta que recordávamos numa fotografia distante, coberta dos pára-quedas brancos das tropas nazis, apresentou-nos a Nikos Kazantzákis que estava na companhia de Alexis Zorba. O escritor grego falou-nos então de uma Creta ancestral, onde a tradição e os costumes quantas vezes superavam a razão substituindo-a por um conceito de honra que nos fez lembrar a Calábria. Após a despedida ainda houve um outro encontro com Durrell na Sérvia, mas nesta ocasião com alguma desilusão, talvez de parte a parte, pois o escritor decidiu adoptar alguns daqueles mitos que os ingleses criaram e difundem como verdades absolutas. No entanto, marcamos novo encontro para breve. Ainda tive tempo para aceitar um convite de Steve Backshall para descer o Kronotskaia em caiaque. Floresta virgem, rio caudaloso de corrente forte com as enchentes primaveris das neves que derretem do vulcão Kronotski imponente nos seus três mil e quinhentos metros, ali ao lado, vigilante e na margem direita o Krasheninnikov olhando-nos da altura de mil e quinhentos metros. As águas palpitando, as margens por vezes agrestes e de florestas baixas mas impenetráveis, os ursos vagueando no meio da corrente, livres, saudáveis, sem receio humano, agarrando os salmões numa pesca certeira. A alegria de Steve, quando o caiaque encontrou a ondulação do Pacífico, levou-o a falar de forma exaltante, de lugares pristinos. É difícil desejar melhor para terminar a minha viagem.
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