António Mesquita
"A minha imaginação não é tão perversa que seja capaz de inventar as situações que estão no filme. E uma coisa lhe posso dizer. Em todos estes três filmes com temática social de que estamos a falar, as histórias estão sistematicamente abaixo das que me contaram. Sempre. Se não o fizesse, a ficção pareceria grotesca. - ”Algum dia as vai pôr em cinema? - “Não sei. Se o fizer, o filme vai ter que ser uma espécie de comédia. Negra, cínica, completamente verdadeira, mas que vai parecer falsa.”
(Entrevista de Stéphane Brizé)
"Um Outro Mundo" de Stéphane Brizé relata os problemas dum gestor do topo, Philippe Lemesle, interpretado visceralmente por Vincent Lindon. Philippe é um homem honesto que acredita no que faz. Não é prepotente, nem um pau-mandado acéfalo do patrão americano que diz que também ele tem um patrão que é... Wall Street. Mas a pressão para o rendimento e a redução dos custos faz-lhe a vida negra e arruina a sua vida familiar. Em piores lençóis, ainda, porque não tem a expectativa revolucionária, que Engels que se lamenta ao seu melhor amigo (carta de 27 de abril de 1867), "nada que deseje mais do que poder escapar deste comércio miserável, que me está desmoralizando completamente pelo tempo que me faz perder. Enquanto permanecer neste mundo não poderei fazer nada; e o facto de me ter convertido em um dos directores da empresa vai piorar muito mais a minha situação devido ao aumento das responsabilidades."
O filme começa com uma cena de divórcio. A sua mulher Anne, resolveu acabar com uma situação intolerável. Mas hesita, porque não estão em causa os sentimentos e os advogados depressa reduzem a questão à indemnização e ao dinheiro.
O cargo de Philippe exige também que dê a face junto dos trabalhadores pelas medidas que a empresa e a sua direcção querem ver implementadas, medidas dolorosas e mesmo incompreensíveis, a não ser dum ponto de vista estratégico que é, putativamente, o do interesse dos accionistas. O "boss", nos States, explica que estes esperam de toda a cadeia de comando uma espécie de coragem que é a de cumprirem ordens mesmo contra a sua vontade (e, compreende-se, até contra a sua consciência). Philippe que tinha contraproposto ao licenciamento de operários, indispensáveis, na sua opinião, uma redução dos bónus de gestão, viu-se ele próprio despedido, não sem o confrontarem com uma alternativa insultuosa: a de denunciar um outro colega como responsável da "rebelião".
Phillippe vai para a rua, ao reencontro da mulher que nunca quis de facto separar-se dele. Uma cena eloquente é a da venda do apartamento em que os comentários do casal comprador, eufóricos com a nova casa, flutuam à volta dum grande plano do rosto acabrunhado de Philippe.
Neste filme, Brizé faz uma análise que não é a da "luta de classes", mas duma "máquina com alma", em que a "exploração" não é económica, a apropriação não é a da "mais-valia", em que o indivíduo é como que esmagado numa engrenagem anónima em que os valores nem são já os da eficácia remuneradora dos detentores do poder, seja ele o do capital ou do estado, ou da intermediação proliferante, mas o não-valor duma lógica e dum algoritmo duma sociedade-Bolsa, sistema que tem a sua fauna e os seus "entendidos", e que ignoram tudo de tudo.
A desumanização deste sistema só encontra uma aproximação definidora na expressão de Arendt de "banalidade do mal". Um anonimato da violência e uma ausência de pensamento que ninguém expressou melhor do que a filósofa da "Condição Humana".
A entrevista de Brizé coloca ainda outro problema interessantíssimo. A das condições de transmissão da verdade. O simples desejo de ser fiel aos factos pode deturpar a realidade e ficar aquém da comunicação. Brizé fala no aspecto grotesco que a verdadeira violência, a realidade tal qual, assumiriam num filme que não as convertesse em arte, neste caso, em arte do cinema, em ficção mais verdadeira, afinal, do que a crueza dos factos.
E que outro mundo é este? Um mundo em que os Philippe Lemesle fossem a norma dos cidadãos, em que as mulheres tivessem sempre como Anne, a coragem de romper com o absurdo e a violência, mesmo sem a ideia dum mundo melhor? Ou o outro mundo é o que não sabemos (nem queremos saber, para proteger o nosso conforto e as nossas ilusões) da nossa e da vida dos outros, da engrenagem em que uns e outros podem ser "competentes" sem, no fundo, compreenderem o que se passa? Como diz Dennett (*), "Para fazer uma perfeita e belíssima máquina de cálculo não é necessário conhecer a aritmética. O que quer que seja que Darwin ou Turing tenham descoberto, cada um a seu modo, foi a existência duma "competência sem compreensão."
*(Daniel Dennett; "La rivoluzione silente di Alan Turing", il Sole 24 ore)
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