Marques da Silva
Há nomes que, só por si, identificam um país, uma nação ou um povo, na sua sensibilidade, na sua história, nas suas características mais profundas. Se o nome de Nefertiti, nos conduz de imediato ao longínquo Egipto, a excelsa beleza dessa rainha arrasta-nos para a ideia de que, essa época milenar que existiu nas margens do Nilo era, também ela, sinónimo de uma grandeza equiparada aos traços resplandecentes de «A Bela chegou». Viajando para mais próximo do nosso tempo, o nome de Natacha projecta-nos de imediato para as extensões infinitas das estepes e da taiga que se estendem ao longo de dois continentes num espaço que não sendo infinito é longo e belo. Quer seja, a Natacha de Tolstói (1) ou a Natacha de Dostoievski (2), sentimos como um clamor, um apelo, a mergulhar no território da nação eslava que hoje pulsa ao longo de onze fusos horários. Natacha é quase um símbolo dos eslavos da Rússia, mas não foram apenas os escritores do século XIX que desenharam a Rússia através da imagem de Natacha, pois quase cem anos depois, Gilbert Bécaud não resistiria à sedução de outra Natacha que o cantor francês espalhou afrancesando o nome para Nathalie (3). A Natália Ilinitsna de Tolstói, a jovenzinha condessa dos Rostov que vivia essa idade adolescente em que as palavras entram no ouvido como serpentes encantadas, viveu numa época diferente da Natália Nicolaievna de Dostoievski. A condessinha é de um tempo em que a aristocracia russa saía de um isolamento secular e afirmava a sua grandeza. Pedro tinha catapultado a nação dos eslavos de Leste para territórios imensos. Vencera os suecos de Carlos XII, avançando até à Polónia cujo reino quase desaparecera, libertara o território báltico dos nórdicos, fundara a cidade que haveria, até ao presente, traduzir no oriente da Europa a excelência de estilos arquitectónicos que são um expoente de magnitude e de sedução do olhar e estendera as suas conquistas para Leste. A Natacha que Tolstói construiu é contemporânea de uma nova invasão da terra eslava de novo vinda do ocidente. Entre a guerra e a paz, Natália Ilinitsna vai viver os seus amores de adolescente entre o feitiço de príncipes e condes, entre a riqueza sumptuosa e a que se apresentava arruinada, como a da sua família cuja sobrevivência dependia de um bom casamento, sendo que o bom não tinha de incluir necessariamente o amor, mas sobretudo, o espólio que poderia trazer. A jovem Natacha tinha a sua ternura, a sua beleza, o sorriso com que encantava os seus pretendentes e assim, entre um príncipe que perdeu acabou por ganhar um conde que preenchia as condições que ela desejava e salvariam a família. Com Borodino pelo meio, a mística Moscovo invadida e incendiada, Napoleão perdido no inferno do severo Inverno russo, Natacha terminou numa vivência feliz e amante. A Natália Nicolaievna de Dostoievski chega mais tarde, umas décadas depois. Não tem títulos nobiliárquicos, nem riqueza, é filha de pequenos proprietários de aldeia, gente honesta e está já numa idade adulta após a adolescência e ao contrário dos amores da Natacha de Tolstói, esta Natacha desenvolve uma paixão doentia pelo filho de um príncipe, um adolescente que não sabe exactamente o que deseja, onde está e qual é o seu papel na sociedade. Naturalmente que no bom estilo romântico, Natália Nicolaievna fica sozinha, sacrifica-se à felicidade dos outros e, mesmo reconhecendo o grande amor do amigo que a ampara, a socorre, que não desiste dela, nunca vai acolher esse amor, preferindo a solidão e a recordação dessa paixão perdida. De certa forma, a Natacha de Dostoievski traduz a Rússia de então, com a aristocracia em declive, encerrando-se nos seus privilégios, muitas vezes arruinada pelas suas extravagâncias, a sua vida vazia e preguiçosa, auferindo rendimentos da exploração de populações aldeãs atrasadas que viviam numa miséria insuportável, numa Rússia que começava a despertar para tempos revolucionários e de mudança. De qualquer forma, ambas as Natachas, traduzem o ambiente tranquilo, alimentado por uma ternura campestre em que o tempo parecia imutável e a que o romantismo literário alindava e aprimorava, através dos seus personagens. Sobretudo, a Natacha de Tolstói vai cativar-nos para a vivência dos eslavos na profundidade do território que habitam. E ainda hoje, seja nas margens geladas do Árctico, nas montanhas do Daguestão, na estepe do Tartaristão, na cordilheira do Altái ou nas terras virgens de Kamchatka, encontraremos sempre uma Natacha, símbolo do que se convencionou chamar, a alma russa, que é esse caminhar pela história de um povo que se move pacientemente pelas longas estepes ocidentais do seu espaço territorial ou pela solidão da taiga siberiana, que se fundiu e convive com os autóctones polares ou com os turcomanos do Sul. Secularmente invadido, resistiu à avalanche tártaro-mongol, às estravagâncias imperiais de Napoleão e às bestiais hordas nazis e as Natachas que continuamos a poder encontrar nessa imensidão terrena, insistem em simbolizar o enternecimento, a candura desses eslavos que abraçam metade do planeta, como o comprovou Bécaud com a sua Nathalie, num tempo que mediou entre a esperança do futuro e a incerteza do presente. Não chegou à intimidade de lhe chamar Natacha, mas o Nathalie francês dá-lhe a mesma graça e encanto. No final de uma das suas obras literárias (4), Dostoievski coloca um discurso de esperança, através do narrador, no futuro do personagem central cuja vida se desenrolou entre o drama e a tragédia, muito característico destes eslavos, uma esperança que bem pode ser o que desejamos para o tempo que nos é dado viver.
(1) Liev Tolstoi, “Guerra e Paz”, 2 Vols., Editora Arcádia, Lisboa, 1969
(2) Fiodor Dostoievski, “Humilhados e Ofendidos”, Círculo de Leitores, Lisboa, 1978
(3) https://www.youtube.com/watch?v=TilQ8BIHisw
(4) Fiodor Dostoievski, “Crime e Castigo”, Editorial Presença, Lisboa, Novembro de 2007
Após o bombardeamento da televisão sérvia pela NATO, em 1999, a destruição do edifício da Associated Press em Gaza pelo exército Judeu em 2021 e o silêncio ensurdecedor em torno, da prisão que vai em dez anos de Julian Assange, do bestial assassínio do jornalista Jamal Khashoggi, do fuzilamento pelo exército judeu da jornalista palestina Shireen Abu Akleh, da prisão do jornalista espanhol Pablo González que apodrece há cinco meses sem culpa formada nas prisões polacas, e da condenação a três anos de prisão de uma jornalista alemã, por fazer reportagens da guerra da Ucrânia que contrariavam a versão do governo, bem podemos dizer que a liberdade de expressão se transformou naquilo que sempre foi, um grande mito.
Carmo Afonso escreveu numa das suas crónicas no Público que a Comissão Europeia se colocou no âmbito do crime ao proibir a emissão dos canais russos, RT e Sputnik. Não se colocou apenas no âmbito do crime, escreveu uma das páginas mais negras do livro da infâmia.
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