António Mesquita
"Será então que o problema é a democracia, quando são a China e outros regimes autocráticos e autoritários que se tornam fortes protagonistas da cena mundial? A democracia é um modelo sustentável e apetecível? Como assegurar a competitividade e a liderança mantendo os princípios da democracia, da sustentabilidade e da inclusão social?"
(III Encontros de Cascais, Expresso de 23/10/2021)
Vivemos tempos em que a democracia não só não nos parece um bem em todas as ocasiões (para suscitar uma adesão incondicional) ou para cujo aperfeiçoamento se possa trabalhar, como se duvida que esteja melhor equipada para defrontar a era tecnológica e a adulteração da opinião pública pelas redes sociais.
Na celebrada Atenas da Antiguidade, a liberdade dos cidadãos e o florescimento das artes e da filosofia só foram possíveis graças à existência da escravatura que assegurava as tarefas básicas. Os revisionistas da história e os apóstolos do politicamente correcto, para serem consequentes, deviam deitar abaixo o que resta do Parthénon e repudiar o legado grego no pensamento, na literatura e na própria ciência, por causa daquele "pecado original".
A ideia democrática não confundia, então, o povo e a cidadania. A igualdade em relação ao poder era só para uma parte da sociedade. E assim continuou a ser, por séculos e séculos, até à ideia da sociedade sem classes que os filósofos inventaram. Um dos mais influentes, talvez fosse Hegel e a sua dialéctica do senhor e do escravo, inspirada na Revolução Francesa. Marx alegou que a teoria hegeliana estava "de pernas para o ar" e "corrigiu" a posição, com o sucesso planetário que se sabe.
As eleições livres de hoje, em que todas as classes, em princípio, podem votar, só alusivamente significam a "vontade popular". É quase impossível, de facto, saber quem é o sujeito dessa vontade, o que é que ela poderia significar e por quanto tempo seria representativa. Digamos que existe um consenso, mais ou menos alargado, para considerar que esses problemas ficam resolvidos com a escolha dum ou outro candidato. Na origem desse consenso, estão, evidentemente, as várias formas actualizadas daquilo a que Marx chamava de "ópio do povo".
A desigualdade social, pela lição da história, não está longe de ser um problema insolúvel, e o que se tem conseguido nas democracias é temperá-la, quanto mais não seja pela gradual melhoria das condições de vida e pela estigmatização da inveja. O crescimento económico tem permitido, quando existe, pôr em surdina o problema de um cidadão ter um padrão de vida mais ou menos "decente" e um outro gastar uma fortuna num passeio espacial.
Nas ditaduras, "populares" ou não, este mecanismo funciona com outra espécie de consenso que é o do medo. Entre as opções do "cidadão" não se encontra nunca a ilusão de expressar uma vontade. A não ser, como em 1933, na Alemanha, quando o medo da desordem era mais forte do que qualquer opiáceo político.
A história recente estabeleceu que o desenvolvimento das forças produtivas, por si só, não engendra as contradições revolucionárias que se esperavam, sem que por isso o sistema deixe de estar sujeito a outras leis de mudança não menos espectaculares – como são as consequências da tecnologia. Por outro lado, sociedades industriais modernas como a China não são sociedades sem classes, longe disso, sem deixarem de continuar uma tradição, sob outras roupagens.
Poderá, por isso, estar ainda na ordem do dia uma teoria anticlassista e que vise mais ou menos a longo prazo o "deperecimento" do estado?
De qualquer modo, entre um regime em teoria anticlassista, mas que é incapaz de promover a melhoria das condições de vida dos seus governados e um regime que fomenta um nível de desigualdade "consensual", mas que é propício ao desenvolvimento social em todos os aspectos, a escolha racional, se a razão puder prevalecer em política, só pode ser uma.
A verdade é que a luta de classes afirmada e assimilada pelo sistema dá a este uma vantagem, a todos os títulos, sobre uma organização que não pode ter uma ideia clara dos seus conflitos. Onde o regime é dogmático, o discurso é paranóico por existir à margem da vida e dos interesses dos cidadãos.
A democracia é não só compatível com uma desigualdade relativa, como não se pode conceber sem ela. Para além disso, o Estado moderno é o princípio anti-democrático por excelência. O divórcio entre a fraseologia democrática e as verdadeiras relações de poder é, por isso, inevitável. Mas mais grave do que isso é a centralização das funções económicas e políticas, que torna quimérica qualquer intervenção dos cidadãos e a correcção atempada das medidas. Pode dizer-se que os espaços de liberdade e de acção cívica se devem às imperfeições do sistema. Um povo lúcido sobre estas determinantes recusaria ao príncipe o álibi da co-responsabilidade, ou do mandato popular. Toda a uniformidade é destruidora. Por isso o centralismo deve ser condenado. E acima de todos, o dos meios de comunicação. É talvez legítimo procurar nos modelos de conformidade e repetição vertiginosa da televisão e da internet a raiz da violência juvenil. As mesmas mensagens difundidas por milhões criam uma carga de identidade social que só os velhos podem assimilar (ou melhor, mastigar sem dentes).
Este estado de coisas levanta uma questão paradoxal, porque ao arrepio da ideia que expus mais atrás: pode a humanidade continuar a dar-se ao luxo de considerar a invenção e a comercialização das tecnologias de massa fora duma ética e dum projecto de civilização? Estamos à espera de se tornar demasiado tarde a salvação, como pode ser já o caso da crise climática?
0 paradoxo está, como se vê, na necessidade duma pedagogia e duma acção coordenada a um nível superior, para lá dos limites regionais e nacionais.
Será o museu de antiguidades o destino da democracia? Desde o assalto ao Capitólio pelos apaniguados de Trump e o modo como alguns países lidaram com a pandemia que a questão se põe.
Vi recentemente um documentário brasileiro, de Marcelo Gomes ("Estou-me guardando para quando o Carnaval chegar") em que uma comunidade pernambucana se dedica 16 a 18 horas por dia à fabricação de jeans, sem capataz e sem patrão, emulando-se uns aos outros num ritmo frenético, para poderem ir à praia uma vez por ano, gozar o Carnaval. É isto capitalismo e exploração do trabalho? Talvez, por causa do contexto. Mas quando os regimes de poder chegarem a esta "perfeição" da moderna escravatura, através da conformidade política, das câmaras de vigilância, ou seja o que for, a questão da liberdade será uma falsa questão.
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