António Mesquita
Quatro histórias sobre culpados sem culpa, à maneira atormentada de Dostoiewski. A primeira distingue-se, pela forma, de todas as outras. É um quotidiano cinzento entre o arrumar o carro ( as voltas do túnel não nos são poupadas), ajudar a sogra ou a mulher a tingir o cabelo e as compras no supermercado ou a cozinha em casa. Heshmat (Ehsan Mirhosseini), um normalíssimo cidadão, na aparência, levanta-se todos os dias às 3 da manhã, toma um duche e dirige-se para o emprego numa sala de controlo onde só tem de carregar num botão verde para que suceda o que veremos na sequência final: uma fila de corpos esperneando e perdendo urina. Que Heshmat mande sempre a mulher ao banco levantar o cheque do seu salário ou hesite diante dum semáforo verde é o único sinal dum escrúpulo ou resquício de culpa.
Na segunda, vemos uma caserna de milicianos que discutem por causa do banco do condenado à forca que um deles, Pouya (Kaveh Ahangar), se recusa a empurrar. Uns acham que a lei é o que é e só lhe resta cumprir. Outro oferece-se para o substituir por alguns milhões. Mas é da namorada e através do telemóvel que lhe chega o plano salvador. O roubo duma arma e os guardas algemados num armário numa fuga "tirada pelos cabelos" até à jovem que o espera num automóvel à saída do quartel.
Segue-se um pedaço de cinema do melhor que existe. Um jovem soldado, Javad (Mohammad Valizadegan), consegue uns dias de licença para visitar a namorada na montanha, com a intenção de lhe propor casamento. O idílio parece ter futuro, até que ele descobre que a família da rapariga está enlutada pela condenação à morte do professor da aldeia que era por todos admirado. Ao ver a sua fotografia tem um choque: é o homem que teve de matar para conseguir a licença. Não pode escondê-lo da amada, mas é o fim da relação.
O filme termina com a história de uma jovem, Darya (Baran Rasoulof, filha do realizador) que vem visitar os tios que vivem retirados no deserto criando colmeias. Ele é médico, mas nunca exerceu. Está a morrer e combinou com o irmão aproveitar a oportunidade para revelar o segredo das suas vidas: o homem do deserto é o verdadeiro pai de Darya. A reacção desta é recusar reconhecê-lo como pai e culpá-lo de transtornar por completo a sua vida.
Uma das personagens de Dostoiewski dizia que se Deus não existe, tudo é permitido. É uma maneira de ir ao encontro do título do filme.
Rasoulof explicou que o filme é sobre as pessoas "tomando responsabilidade" pelos seus actos e cada história baseia-se na sua experiência. Como se sabe, o seu país é campeão mundial em execuções. Faz toda a diferença "ser uma peça do sistema" e dar um pontapé no banco do enforcado.
Mohammad Rasoulof ganhou o Urso de Ouro de Melhor Filme no 70º Festival Internacional de Cinema de Berlim. O realizador não pôde estar presente por lhe ter sido recusado o visto para sair do Irão, enfrentando uma possível ordem de prisão por apresentar neste filme uma imagem "negativa" do seu país, na opinião das autoridades.
1 comentário:
Há 60 anos, no exame de aptidão a Direito na Univ. de Coimbra, entupi-me na prova escrita (duas horas) de Filosofia com esta questão a que não respondi e que não mais me saiu da cabeça: "António Gouveia, filósofo português (nunca ouvi nas aulas ou li em textos) escreveu o seguinte no seu livro (esqueci o título): 'O mal não tem essência real. Comente usando conceitos ontológicos'". Deixei em branco a resposta, mas devo ter respondido bem às outras 4 questões, porque me deram 12 valores, o que dispensava da prova oral. Sempre a refletir no caso, inclino-me para a tese do Gouveia por entender que o mal de uns é o bem de outros. Cotovelaço deste murcom-jubilado, <:-) Gaspar M.
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