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01/01/21

O "LUXO" DA DEMOCRACIA

Mário Martins

https://www.google.com/search?source=univ&tbm=isch&q=atenas+imagens


Está estabelecido que a democracia nasceu há 2500 anos na cidade-estado de Atenas, numa sociedade e num tempo em que um ponto de vista crítico sobre a escravatura ou sobre o papel da mulher seria considerado impertinente. A mensagem cristã de igualdade entre todos os seres humanos teria ainda de aguardar a passagem de cinco longos séculos para irromper da escuridão.

No entanto, as características da democracia ateniense não podiam ser mais diferentes das actuais. Segundo um didáctico artigo, publicado em 1998, (https://run.unl.pt/), do democrata e intelectual de nomeada que foi Mário Sottomayor Cardia, apenas uma pequena minoria da população podia (e devia) participar nas reuniões da assembleia política da cidade, onde as decisões eram tomadas por maioria e braço levantado, num modelo de democracia directa que não confiava na profissionalização da política, proibia a existência de facções ou partidos, e em que os cargos públicos eram preenchidos por sorteio entre os candidatos com mais de 30 anos.

Em todo o caso, o novo princípio está lá, o de que a fonte legítima do poder político é o conjunto dos cidadãos que integram uma sociedade.

Entretanto, a perspectiva histórica, que, inexoravelmente, mede a distância entre a teoria e a prática, diz-nos que a democracia ateniense durou menos de duas centúrias e que as democracias modernas não existem há mais tempo, o que significa que, no tempo histórico de milhares de anos, que atravessa várias civilizações e diversas formas de exercício do poder político, a democracia é a excepção e não a regra. E se atendermos ao que se passa na actualidade, em que, segundo dados de 2018 da revista inglesa “The Economist”, já citados nestas páginas, mais de metade da população mundial vive em regimes autoritários, e em que os regimes democráticos remanescentes sofrem uma enorme pressão, teremos a noção de quão rara e frágil é a democracia.

Sottomayor Cardia faz uma distinção entre Democracia Substantiva e Democracia Institucional. Enquanto aquela, diz, procura “a justa organização da vida em sociedade”, esta visa “a justa organização do exercício do poder político”. Para o autor, “a Democracia Substantiva foi assumida, no século XX, em formas extremas, pelos partidários da sociedade sem classes e, em formas moderadas, pelos defensores do Estado Providência ou da igualdade de oportunidades.” Daí concluindo que “A democracia aparece assim confundida com a ideia de justiça social: uma sociedade seria tanto mais democrática quanto maior fosse o nivelamento ou igualização das condições sociais.”

Não obstante, como a experiência histórica mostra, confundir a democracia com a justiça social (que é uma ideia necessária, mas utópica, na medida em que, no concreto, nunca é obra acabada), faz relegar para segundo plano o exercício do princípio de legitimação popular, em condições de liberdade, do poder político, quando, ao invés, seria desse exercício democrático que deveria resultar, em cada momento, a justiça social possível, animada pelo fim ideal de uma “justa organização da vida em sociedade”.

Mas, se a ideia de justiça social “em formas extremas” tende, na prática, a desvalorizar e suspender a democracia, a experiência também mostra que a descrença da sociedade na reparação de injustiças sociais para lá do aceitável, provoca a erosão e, no limite, o soçobro de um regime paradoxalmente fundado nas regras da liberdade e da maioria. Donde, mais do que qualquer outro regime, a viabilidade da democracia, dada a sua permanente exposição aos barómetros de opinião - classicamente alimentada pela liberdade de imprensa, mas hoje também sujeita a altos níveis de intoxicação e à superficialidade das redes sociais - e aos conflitos entre os diferentes interesses, careça de um delicado equilíbrio com a justiça social, ou seja, na terminologia de Cardia, com a Democracia Substantiva, sem a qual a Democracia Institucional se afunda. Nada, enfim, que o Nobel Saramago não tenha dito de outra maneira: "Sem democracia não pode haver direitos humanos, mas sem direitos humanos também não haverá democracia”.

Em democracia, tal como hoje é concebida - liberdade, sufrágio universal, igualdade perante a lei, separação e transitoriedade de poderes, laicidade -, nenhum indivíduo ou grupo tem legitimidade para exercer poder não delegado pelos cidadãos, seja qual for a razão ou intenção invocadas. Mas este modo de vida, afinal tão raro e precioso, é um “luxo” que precisa de ser bem cuidado e guardado dos que, de dentro ou de fora, querem acabar com ele. Porque há sempre “salvadores” à espreita…

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