Marques da Silva
É uma história antiga. Nesse tempo ainda não tinhas chegado e se não a contei até hoje foi porque a memória sentia-se demasiado magoada, pelo drama e tragédia que guardava. Foram demasiados crimes ao longo daquela Primavera. Vinha de Alepo e pretendia embarcar em Latakia rumo a Chipre. Passara o Outono com os beduínos do deserto sírio e procurava um lugar de descanso. Mas um dia de atraso, impediu que a viagem seguisse o rumo programado.
Quis então o acaso que rumasse para Norte para alcançar a Europa através do planalto da Anatólia. Foi assim que quase no fim do Inverno alcancei a terra dos eslavos do sul. Nuvens cinzentas de guerra cobriam os céus, as ruas, os rios, as palavras, entrava pelas casas dentro e sentava-se à mesa com as pessoas. Ninguém podia ignorar que os ventos e os tambores soavam violência. Uma escumalha humana que se auto-intitulava, «comunidade internacional», salivava no desejo e vontade de fazer correr o sangue e destruir o que restava da antiga Jugoslávia. Alojei-me em Жарково, nos arredores da capital e fui vivendo aqueles dias, que sem ser de medo eram, sobretudo, de preocupação e grande ansiedade. A armadilha de mentiras estava a ser montada a cada dia que passava. Eram passos pensados e planeados para desencadear a força das armas, das bombas e dos mísseis. As acções das empresas de fabrico de armas subiam e a promessa de dividendos era auspiciosa. No início da Primavera quando as árvores iniciavam a floração, chegou o ultimato e no dia 24 de Março, todos espreitavam ansiosamente o céu. Os dias que se seguiram eram de notícias de mísseis, de bombas aéreas e marítimas. Um energúmeno que dava pelo nome de Jamie Shea, gabava-se diariamente das centenas de missões diárias dos aviões da NATO, sobre a Sérvia e o Montenegro. Chamava missões aos bombardeamentos e culpava os jugoslavos por não se renderem. A 4 de Abril, os bombardeios alcançaram Belgrado. Os civis morriam diariamente em cada um dos massacres de bombas despejados sobre a terra eslava. No dia 12, foi atingido um comboio em Grdelica quando atravessava uma ponte, morrendo dezenas de passageiros; a 14 um outro bombardeamento alcança uma coluna de refugiados e a 21 bombardeiam um campo dos mesmos. A 23 de Abril é atingido por mísseis o edifício da Televisão Sérvia vindo a falecer 13 jornalistas. Hospitais, autocarros, refinarias, estruturas institucionais, cidades sem qualquer objectivo militar, tudo servia de alvo aos heróis da NATO. Quando 78 dias depois os dirigentes jugoslavos aceitaram render-se, o que restava do seu país tinha regredido 50 anos em termos de infra-estruturas, nos cemitérios jaziam agora, pelo menos, 2 500 civis, incinerados no crematório guerreiro dos senhores da NATO. Quando deixei Belgrado, o que a memória retinha era o heroísmo dos habitantes da capital de mãos dadas sobre as pontes que atravessam o Sava vestindo camisolas com um alvo no peito, desafiando a perversidade dos senhores da guerra da NATO e dos seus brinquedos com asas, dos seus mísseis alados. O edifício da Televisão, mantém-se esventrado como símbolo do horror e da ignomínia e treze árvores plantadas não deixam esquecer os jornalistas cremados nas fogueiras inquisitoriais do século XX. No silêncio do vale de Grdelica, junto à ponte destruída, num memorial onde repousam alguns dos civis assassinados pelas bombas, pode ler-se, «não temos medo dos loucos, mas da sua desumanidade». Mais tarde, o Tribunal Penal Internacional de Haia, numa declaração sem pudor nem vergonha, declarou que, tanto o bombardeamento da Televisão como do comboio, não constituíam crimes de guerra, pelo facto de ambos serem objectivos militares. Estas maldades ficaram impunes. Foi o triunfo dos porcos.
No livro intitulado, “Kosovo. A Incoerência de uma Independência Inédita”, do Major-General Raul Cunha, Edições Colibri, Lisboa, Outubro de 2019, é traçado um libelo acusatório, sobre os canalhas que deram ordem, traçaram os planos e comandaram as operações de bombardeamento da NATO sobre a antiga Jugoslávia. O Major-General não acusa, documenta amplamente os factos, o suficiente para não deixar qualquer espécie de dúvida sobre quem se escondeu matreiramente através do pano chamado, «comunidade internacional». Não foram condenados em Tribunal, é certo, mas sê-lo-ão pelo objecto da História. O livro não menciona, mas António Guterres também por lá andou, dizendo que a terra do Kosovo era a ancestral terra dos Ilírios e…, que triste figura.
Sem comentários:
Enviar um comentário