António Mesquita
O filme de Mark Cousins (realizador de "A Story of Film: An Odyssey", de 2011), é, antes de mais, uma interessante ilustração de uma tese, a de que a criação cinematográfica de Welles começa por um desenho. Esse seria, aliás, o meio privilegiado de entrar no mundo subconsciente do seu cinema. Numa entrevista, o relizador serve-se mesmo do exemplo de Marcel Proust e da sua célebre evocação da 'madeleine' e do chá em que, na infância, mergulhava o famoso biscoito, em casa da tia Leónia. Como se sabe, é a partir desse sabor reencontrado que se desenrola o passado, como o génio de Aladino se agiganta a partir da lâmpada que se esfrega.
Essa faceta do cineasta do 'Citizen Kane', confesso que me era desconhecida na sua importância. Um trabalho de pesquisa sobre o espólio de Welles e a colaboração da sua terceira filha, Béatrice, o pagem em 'Chimes at Midnight', tornou possível a descoberta.
Tudo parece começar pelo esboço de um cenário que dá o cunho visual ao filme. Não esqueçamos que, homem do teatro, em que se estreou como encenador aos 20 anos, com um "McBeth" representado por negros, conseguiu o prodígio de fazer filmes originais que nada deviam à arte de Talma. A visualidade e o movimento, o ângulo da câmera, a montagem, os célebres 'travellings', como o de 'Touch of Evil', toda a ferramenta de edição contrastam com a abordagem teatral. Como alguém assinalou, comparem-se apenas os filmes de Olivier, o portentíssimo actor que conhecemos, inspirados no vate de Stratford-upon-Avon com o seu ''McBeth", o seu "Othelo", ou Falstaff ("Chimes at Midnight"), filmados com relativamente poucos meios.
É certo que a tese de Cousins é fértil em ideias de explicação. Mas é sempre uma tentativa de racionalizar e compreender o génio. Permite dar uma unidade a esta 'carta' fictícia que acompanha a biografia de um artista muito admirado, mas em que, como acontece em todos os casos, a transcendência tem a "última palavra" (perdoe-se o oxímero).
Estou pronto a embarcar na aventura, de resto simpática e até original, de Cousins. Porém, esta 'madalena' é apenas uma faceta da nossa necessidade de perscrutar o imperscrutável.
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