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01/07/19

NASCIDA PARA ESCREVER

Mário Martins

https://www.google.com/search?q=agustina+bessa+luis


“A grandeza dum espírito está na pluralidade e plenitude da sua sensibilidade. Todo o vasto espírito é sempre um tanto santo e outro tanto demoníaco. Todo o artista exagera ou dilui, aviva ou simplifica."
Agustina Bessa-Luís


Numa derradeira prova de vida, Agustina morreu. Que tenha dado, decerto involuntariamente, a ilusão de morrer duas vezes, é coisa que se não deve estranhar em personalidade tão invulgar, que, dizem, não descria em fantasmas. 

Agustina dizia que é difícil fazer um leitor, e embora eu não encaixe, com perfeição, naquele tipo de leitor revelado pela autora, que, amiúde, a abordava na rua: “Eu gosto muito de si. Qualquer dia até vou ler um livro seu”, - se uma vez, há muitos anos, tenha deparado com a silhueta fugaz da escritora, como que numa saída precária da literatura, ali para as bandas do Bom Sucesso -, a verdade é que Saramago teve que ganhar o Nobel para me decidir a ler e fruir o “Memorial do Convento”, e que “A Sibila”, apesar da justa fama - que alvoroço não deve ter causado ao júri que lhe atribuiu o prémio Delfim Guimarães, nos idos de 53! -, quase teve que esperar a morte da romancista. Manias de leitor que acompanham bem as dos escritores… 

Uma leitura impressionada de “A Sibila” levou-me a ler, de rajada, os “Deuses de Barro”, escrito aos 19 anos, que prenuncia a escrita madura e profunda do romance que, uma dúzia de anos mais tarde, lhe abriria as portas da fama literária, e a mergulhar na recente biografia, da autoria de Isabel Rio Novo. O que li, sem dúvida que fundamenta o sentimento da ilustre autora, de que nasceu para escrever.

Terá Agustina, enfim, sentido ou lembrado a morte que romanceou de Quina, a Sibila?:

Sentiu que os joelhos se lhe esfriavam e como que um banho de gelo a ia atingindo até à cinta, e subindo; as mãos guardavam algum calor, mas não as movia mais. Um sopro mais brusco do vento fez entreabrir as portadas da varanda, e Quina, num último olhar, abrangeu aquele céu esverdeado do amanhecer e que era imenso, e que, como em ondas do espaço, continuava mesmo através dos mundos, das estrelas vivas ou extintas. Os seus lábios emudeceram, e o som dos passos deteve-se, por fim, sobre o seu coração. A mão, um instante depois, deslizou e ficou fora do leito, com a palma voltada para cima, numa atitude toda confiante no seu abandono, cortando de través o bastãozinho de luz que escorria sempre, sereno, até à porta; via-se-lhe, no pulso, a mancha arruivada, que ela, no mais inviolável segredo de si própria, acreditara sempre uma marca de predestinação.” 

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