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01/07/19

AÇORES

Manuel Joaquim

Pico, Açores


Visitar ilhas açoreanas é um acontecimento deslumbrante. O verde, as cidades e aldeias,  a arquitectura, os locais históricos, os escritores, os vulcões adormecidos, a pesca, o trabalho agrícola e pecuário, os queijos, os vinhos,  o chá, os jardins, a cozinha,  a hospitalidade,  tudo é belo e muito bom. 

O que não é belo e muito bom  é o  trabalho das pessoas que vivem de salários muito baixos, sem regras, ou de graça,  como acontece com a maior parte da juventude que passa o tempo “em formação”, recebendo simplesmente subsídio de refeição e de transporte, quando recebem. Serviços públicos, hotelaria e restauração são os locais privilegiados para este tipo de contratação.

A maior parte da população, que vive fora das cidades e que tem actividade profissional, pratica ainda uma economia de subsistência, trabalhando a terra de madrugada, antes de ir para o trabalho,  para produzir batatas (doce), hortaliças, animais,  frutos e vinha.

A produção de vinho na ilha do Pico é verdadeiramente impressionante. É património da Humanidade, classificação dada pela Unesco. As videiras estão plantadas entre quatro muros de pedra, com altura de 1m/1,20m,   com áreas muito pequenas, onde vivem uma ou duas plantas, a que chamam currais, para protecção dos ventos. Curiosamente também vivem nesta situação as figueiras que são muito baixas. 

Os vinhos do Pico são muito bons e muito apreciados, mas são muito caros e cada vez mais caros. Enquanto as uvas do continente são vendidas mais ou menos por quarenta cêntimos o quilo, no Pico as uvas são vendidas a quatro euros ou mais o quilo. Todo o trabalho é braçal. E os vinhos vão ser cada vez mais caros porque há interesses económicos nacionais e internacionais a posicionar-se na produção. 

Visitar Ponta Delgada na altura da procissão do Senhor do Santo Cristo permite apreciar a maior procissão religiosa organizada em Portugal. Milhares e milhares de pessoas de todas as partes de Portugal e do mundo participam na procissão. A igreja, chamada de Santuário do Senhor Santo Cristo dos Milagres, tem o seu edifício iluminado com milhares de lâmpadas.

Na parte lateral esquerda desta igreja existe um banco de jardim, onde  costumava sentar-se uma Mulher, açoreana, Natália Correia, lendo  poesia de Antero de Quental, poeta açoreano. Existe gente que se lembra desse quadro.

Os Açores são uma parte de Portugal onde se concentra, provavelmente, o maior número de escritores  de grande qualidade. João de Melo,  Cristóvão de Aguiar, Natália Correia, Antero de Quental, Vitorino Nemésio, são alguns desses grandes escritores.

A obra de Vitorino Nemésio que tem andado afastada do grande público, começou a ser editada no final do ano passado, pela Imprensa Nacional e pela Companhia das Ilhas, como  Obra Completa de Vitorino Nemésio. 

Vou transcrever o texto que Vitorino Nemésio  escreveu em Angra,  em Julho de 1916,  e que consta no Canto Matinal, publicado com 16 anos, tentando, assim,  contribuir para a leitura das obras de Vitorino Nemésio.


Proémio

Este livrinho é filho dos meus primeiros sonhos de Amor.

Não o encarem os críticos sob o ponto de vista da técnica. Profaná-lo-iam em virtude das imperfeições de que está eivado. É uma obrinha para se ver através da lente cristalina da benevolência, ela que constitui a alma do seu autor, ela que traduz apenas um canto da alvorada da vida.

Leiam este livro os Bons, a quem se destina. Compreendam-no os sentimentalistas como um hino à Arte. Decorem as suas pobres notas bocas vermelhas de crianças, como orações que as mães lhes ensinassem, à tarde, quando a brisa murmura no arvoredo, quando bandos de pombas mansas vão voando na serenidade do Azul, puro como um lago suíço.

Assim aceite, pode regozijar-se, pode dizer que cumpriu a missão que lhe foi destinada pelo seu autor.

Quando, no outono da vida, eu vir tombar exânimes as minhas ilusões fagueiras, hei de refugiar-me no oásis destas páginas singelas, mas que serão para mim o escrínio sagrado dos meus afetos, das minhas esperanças.

Parti, então, Canto Matinal! Ide pelas colinas terceirenses até à minha terra, onde, em noites de Luar, eu ouvia soluçar huris encantadas, ao ritmo plangente das vagas da sua baía larga… abraçando centelhas fulvas de areia.

Vitorino Nemésio
Angra, Julho de 1916


NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva
Mileva Maric Einstein


Hoje é dia de visita. Não que seja um dia especial, pois todos estes dias possuem uma característica própria, um sentimento acrescido, uma emoção recordatória. São visitas que se alargam no Inverno e se estreitam no Verão, pois a terra começa a secar e a endurecer à superfície e se nos atrasamos essa secura vai-se estendendo pelo interior podendo chegar até à raiz e tornar irreversível o fenecimento da planta que a água alimenta. De qualquer forma, é bom estar aqui, sentado nestes degraus de pedra, coberto pela imensa copa desta árvore grande, olhando a outra margem do rio e o silêncio de reflexão a ser interrompido alguns minutos pelo som abafado de uma composição ferroviária atravessando a ponte, num misto de sonho e nostalgia. Alimentar as plantas, é como alimentar as relações humanas, se nos descuidamos, vão secando, esmorecendo e se o tempo passar demasiado, podem até sucumbir a esse estado de hibernação que as torna uma recordação distante. Estar aqui a observar o horizonte é similar a quando paramos numa montra para apreciar o conteúdo que se guarda para além do vidro. Quando esta matéria transparente se encontra limpa, podemos ao mesmo tempo olhar para o presente e o futuro. O presente aparece-nos no que nos fornece o conteúdo exposto com que nos procuram seduzir o interesse, umas vezes útil, outras nem tanto. Mas no vidro espelhado, podemos também alcançar as imagens exteriores que aparecem na nossa retaguarda. Vemos a nossa composição humana, fisicamente falando. Uns gostam do que vêem, outros censuram a sua própria aparição. Mas atrás de nós, alcançamos o passado, desde o longínquo tempo dos nómadas embrionários ao pretérito recente, onde tribos minoritárias de saqueadores, vampirizam sem lei, uma humanidade tristemente empobrecida, na sua miséria esfomeada, na sua inibição cultural, nos horizontes perdidos de uma esperança que morre amordaçada, aprisionada e torturada por aqueles que se apoderaram do mando de Estados inteiros. Usam palavras doces, ou a agressividade dos ignorantes, conforme a estupidez do sátrapa que rege as instituições civis e armadas. A cultura, nos seus maís ínfimos pormenores é sequestrada em sótãos sem ar nem luz, amarrotada pela estupidez de arcontes de um poder bastardo. É verdade, que no meio deste horror, também nos aparece a beleza, material e humana. Quando atravessamos o lago Aisén, sentimos as emoções nessa impotência de se expressarem, esmagadas pela beleza inquietante, nessa mistura da água, da terra e do silêncio. As lágrimas correm-nos pela face perante o estonteante cenário de perfeição da natureza, num desses momentos que certamente levaram um dia Sophia a exprimir-se, «Obrigado Deus, por ter existido» e no entanto, quando desembarcamos e voltamos à realidade, surge-nos em esplendor diabólico a maldade humana e os seus intérpretes. Sorridente entre os «mordomos do universo todo, mandadores sem lei», surge o democratíssimo príncipe saudita, Salman de sua graça, a esquartejar jornalistas, o errático Donald, num dos seus momentos de imbecilidade esclarecida a perguntar, «quantos vão morrer? Cento e cinquenta? É muito, arranjem outro bombardeamento com menos mortos», como uma ementa que se apresenta, uma sobremesa que se serve. Ah!, depois descobrem que afinal Einstein batia na mulher. Afinal, o sábio, o génio, tinha as suas fraquezas, mas não sei se quem pretende agora ganhar dinheiro com esta revelação da maldade humana que se esconde também entre os melhores, não cometeu também a sua própria maldade, ignorando que a sérvia Milena Maric Einstein foi também ela um talento no estudo da Física. Numa madrugada de Abril, um soldado caminha sozinho entre o empedrado de uma rua da capital de um império que se desmorona, enquadrado pela enormidade de dois carros de combate que dominara com a palavra e a certeza da justiça. Trinca o lábio para não chorar, comovido pela grandeza do feito acabado de realizar. Sente o peso da história sem se aperceber totalmente do passo significativo que deu e ajudou um povo inteiro a libertar-se das trevas do mal. Já quase todos o esqueceram e muitos não o conhecem. Lembro nestas imagens que passam o tempo da nossa juventude, não com a auréola da melancolia, mas antes com a vontade de que as maldades não se repitam, não esfrangalhem este sonho que se ergueu, esta utopia que não deixamos de prosseguir, como amantes que resistem às adversidades, aos encontrões da vida, aos obstáculos que monstros de fato e gravata, vão semeando pelo chão do caminho. Fiquemos pela quimera do impossível, como uma caravela que procura entre o infinito azul, o porto onde residem, as células da alegria que não permitirão que a iniquidade espalhe o esterco da sua imundície. O sol declina, a tarde amaina no seu aquecimento o fim do dia aproxima-se de mansinho. É tempo de retirada. Havemos de chegar ao nosso porto de destino.

Após a audição de Joe Berardo na Assembleia da República, tive de rever a teoria de Marx sobre a existência de classes, pelo menos no caso português. A sociedade portuguesa divide-se em duas classes, os inteligentes e os espertos e entre estes uma sub-classe, a dos trafulhas. Há também um sub-grupo de gente honesta, mas não faz parte da história.

O comum dos portugueses sabe que as PPPs rodoviárias são um caso de polícia. Há semanas atrás, a chamada comunicação social, noticiava que os Linos, os Mendonças e os Campos iam ser constituídos arguidos, dez anos depois. Mas não foram e o crime vai ficar impune.

Quando a Esquerda reclama para a Lei de Bases do SNS, a gestão pública, é acusada de ideologia. Quando a Direita reclama que a ganância dos privados aceda também ao bodo de milhões que vale o SNS, dizem que é no interesse do país. 

NASCIDA PARA ESCREVER

Mário Martins

https://www.google.com/search?q=agustina+bessa+luis


“A grandeza dum espírito está na pluralidade e plenitude da sua sensibilidade. Todo o vasto espírito é sempre um tanto santo e outro tanto demoníaco. Todo o artista exagera ou dilui, aviva ou simplifica."
Agustina Bessa-Luís


Numa derradeira prova de vida, Agustina morreu. Que tenha dado, decerto involuntariamente, a ilusão de morrer duas vezes, é coisa que se não deve estranhar em personalidade tão invulgar, que, dizem, não descria em fantasmas. 

Agustina dizia que é difícil fazer um leitor, e embora eu não encaixe, com perfeição, naquele tipo de leitor revelado pela autora, que, amiúde, a abordava na rua: “Eu gosto muito de si. Qualquer dia até vou ler um livro seu”, - se uma vez, há muitos anos, tenha deparado com a silhueta fugaz da escritora, como que numa saída precária da literatura, ali para as bandas do Bom Sucesso -, a verdade é que Saramago teve que ganhar o Nobel para me decidir a ler e fruir o “Memorial do Convento”, e que “A Sibila”, apesar da justa fama - que alvoroço não deve ter causado ao júri que lhe atribuiu o prémio Delfim Guimarães, nos idos de 53! -, quase teve que esperar a morte da romancista. Manias de leitor que acompanham bem as dos escritores… 

Uma leitura impressionada de “A Sibila” levou-me a ler, de rajada, os “Deuses de Barro”, escrito aos 19 anos, que prenuncia a escrita madura e profunda do romance que, uma dúzia de anos mais tarde, lhe abriria as portas da fama literária, e a mergulhar na recente biografia, da autoria de Isabel Rio Novo. O que li, sem dúvida que fundamenta o sentimento da ilustre autora, de que nasceu para escrever.

Terá Agustina, enfim, sentido ou lembrado a morte que romanceou de Quina, a Sibila?:

Sentiu que os joelhos se lhe esfriavam e como que um banho de gelo a ia atingindo até à cinta, e subindo; as mãos guardavam algum calor, mas não as movia mais. Um sopro mais brusco do vento fez entreabrir as portadas da varanda, e Quina, num último olhar, abrangeu aquele céu esverdeado do amanhecer e que era imenso, e que, como em ondas do espaço, continuava mesmo através dos mundos, das estrelas vivas ou extintas. Os seus lábios emudeceram, e o som dos passos deteve-se, por fim, sobre o seu coração. A mão, um instante depois, deslizou e ficou fora do leito, com a palma voltada para cima, numa atitude toda confiante no seu abandono, cortando de través o bastãozinho de luz que escorria sempre, sereno, até à porta; via-se-lhe, no pulso, a mancha arruivada, que ela, no mais inviolável segredo de si própria, acreditara sempre uma marca de predestinação.” 

OS OLHOS DE ORSON WELLES

António Mesquita




O filme de Mark Cousins (realizador de "A Story of Film: An Odyssey", de 2011), é, antes de mais,  uma interessante ilustração de uma tese, a de que a criação cinematográfica de Welles começa por um desenho. Esse seria, aliás, o meio privilegiado de entrar no mundo subconsciente do seu cinema. Numa entrevista, o relizador serve-se mesmo do exemplo de Marcel Proust e da sua célebre evocação da 'madeleine' e do chá em que, na infância, mergulhava o famoso biscoito, em casa da tia Leónia. Como se sabe, é a partir desse sabor reencontrado que se desenrola o passado, como o génio de Aladino se agiganta a partir da lâmpada que se esfrega.

Essa faceta do cineasta do 'Citizen Kane', confesso que me era desconhecida na sua importância. Um trabalho de pesquisa sobre o espólio de Welles e a colaboração da sua terceira filha, Béatrice, o pagem em 'Chimes at Midnight', tornou possível a descoberta. 

Tudo parece começar pelo esboço de um cenário que dá o cunho visual ao filme. Não esqueçamos que, homem do teatro, em que se estreou como encenador aos 20 anos, com um "McBeth" representado por negros, conseguiu o prodígio de fazer filmes originais que nada deviam à arte de Talma. A visualidade e o movimento, o ângulo da câmera, a montagem, os célebres 'travellings', como o de 'Touch of Evil', toda a ferramenta de edição contrastam com a abordagem teatral. Como alguém assinalou, comparem-se apenas os filmes de Olivier, o portentíssimo actor que conhecemos, inspirados no vate de Stratford-upon-Avon com o seu ''McBeth",  o seu "Othelo", ou  Falstaff ("Chimes at Midnight"), filmados com relativamente poucos meios.

É certo que a tese de Cousins é fértil em ideias de explicação.  Mas é sempre uma tentativa de racionalizar e compreender o génio. Permite dar uma unidade a esta 'carta' fictícia que acompanha a biografia de um artista muito admirado, mas em que, como acontece em todos os casos, a transcendência tem a "última palavra" (perdoe-se o oxímero).

Estou pronto a embarcar na aventura, de resto simpática e até original, de Cousins. Porém, esta 'madalena' é apenas uma faceta da nossa necessidade  de perscrutar o imperscrutável.

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